Amigos – 24
Professor Dr. D. Fernando
de Almeida Saldanha
Vamos
continuar com a família. Tios por casamento, mas que sempre fizeram parte da
família.
Ia
começar com um primo deles, que por ser muito chegado, como irmão, está
incluído no mesmo grupo, outro Dom Fernando, outro tio Fernando, mas após
começar a procurar, investigar, tanta coisa interessante achei sobre este
Senhor que teria que ficar para uma crónica separada. Aqui vai, muito resumida,
porque a vida deste Grande Senhor, notável pelo seu polifacetismo., merecia ser
conhecida, não só nos meios técnicos em que trabalho, e onde é muito
reconhecido, devia ser um exemplo mais para os portugueses e, porque não,
estrangeiros.
A ele,
além da imensa amizade, sempre lhe fiquei devendo duas (três?!) especiais
atenções:
- Foi
ele que ajudou a pôr neste mundo os nossos dois primeiros filhos, em Lisboa (Jorge
e Luis);
- E foi
também no belo jardim da sua casa que aconteceu o “copo de água” do meu, nosso,
casamento.
Desde os
seus 15 ou 16 anos, quando numas férias foi “trabalhar” num sítio arqueológico,
que a paixão pela arqueologia nunca mais o largou. Ficou-lhe no sangue como
“doença” incurável! Já médico conceituado sempre aproveitava as férias para ir
com a sua pazinha e martelo, cutucar em lugares por onde andaram os celtas, romanos,
visigodos e outras gentes. E como sabia história!
Formou-se
em medicina em 1924, um muito considerado ginecologista e obstetra, e professor
na Faculdade. Em pouco mais de 50 anos publicou quarenta e seis trabalhos
científicos de grande valor, tendo sido ainda o redator da revista Lisboa
Médica.
Uma boa
disposição contagiante, quando um dia estava em casa duns amigos (primos?) e alguns
jovens ali hospedados já a caminho da faculdade, numa conversa em que entraram
uns copos, talvez a mais, sabendo do seu interesse por arqueologia, convenceram
o tio Fernando, com 46 anos, a também se matricular na Faculdade de Letras,
apesar de ser já um grande médico, professor de medicina, muita obra publicada,
e um reconhecimento que ultrapassava as fronteiras de Portugal.
Dois
outros convivas, parentes, com aproximadamente a mesma idade, acharam a ideia
de voltarem a estudar... divertida e decidiram, todos muito bem na vida,
matricular-se também na Faculdade de Letras em ciências históricas e
filosóficas..
O tio
Fernando gostou da idéia e assim fizeram. Ele que tinha paixão pela história e
sabia já muito, foi andando, sempre com boa classificação. Os primos, que se
tinham matriculado mercê duma espécie de brincadeira, só apareciam na Faculdade
quando lhes dava na gana! No fim do primeiro período um contínuo foi
encarregado de levar uma mensagem ao Dr. D. Fernando:
- Os seus primos vão ter notas péssimas e é
uma vergonha para eles. Era bom que cancelassem a matrícula.
É
evidente que o fizeram, tanto mais que não estavam nada interessados em
estudar! O tio Fernando seguiu, formou-se em 1954 e quando apresentou a sua
tese de licenciatura quase envergonhou os examinadores porque sabia tanto ou
mais do que eles, e logo foi convidado para professor assistente.
Foi tão
importante esse trabalho que a Gulbenkian o publicou logo a seguir: “Egitânia, História e Arqueologia”.
Durante
o curso, sem ter abandonado a sua já muito ativa vida de médico, e de professor
de Medicina, passaram-se dois episódios que relatam, uma vez mais a nobreza
deste senhor, e isto são palavras dele:
“Durante um exame escrito, a meio da prova veio o
contínuo avisar-me que da maternidade me chamavam ao telefone; logo de início
eu lhe tinha dado essas instruções e ele cumpriu sempre. Já se tinha passado
uma outra vez na cadeira do Prof. Mário de Albuquerque, e este senhor me
dissera logo, sem rebuço, ‘vá ao telefone e se puder volte para concluir a
prova’, julguei poder repetir o pedido para o qual esperava idêntica resposta,
que foi rápida: ‘o senhor pode ir ao telefone, mas não volta aqui!’ Fiquei
estarrecido, era meu dever ir, e disse: ‘Pois vou, não volta, e acabo “isto” de
qualquer maneira rápida’. Se bem o disse melhor o fiz. Preparava-me para
rabiscar a assinatura quando me bateram no ombro: ‘Olhe eu fui ao telefone, é a
senhora tal, que diz que está com dores, etc., etc. e está ao telefone’. O
Professor parecia preocupado e eu tive a coragem de lhe responder; ‘Muito
obrigado pelo favor e já agora pedia a V.Excia. para dizer à senhora para tomar
o remédio x’, e retomei o exame. Poucos minutos depois volta o Professor: ‘A
senhora diz que já tomou esses remédios e ficou na mesma’. ‘Pois então que tome
este outro que dentro de maia hora já lhe telefono’. E lá voltou o santo
Professor Mário Chicó com o recado. Ficámos amigos.
Numa das
excursões com alunos, ao explicar o estilo da Igreja de São Francisco em Évora,
viu, por detrás de um arco a palavra “encartado” (fazia parte de uma tabuleta
de um “solicitador encartado”), e com o seu ar cativante pergunta ao
assistente: “Olhe lá, está ali escrito
encartado! O que é um arco “encartado”?
Continuou
com a medicina, aulas aos futuros médicos e simultaneamente aulas também na
Faculdade de Letras.
Uns anos
depois, 1962, foi a vez de apresentar outra tese, de doutoramento, outra
trabalho magistral “Arte Visigótica em
Portugal”, obra que mereceu o prémio Calouste Gulbenkian de Arqueologia, o primeiro doutorado em Arqueologia em
Portugal. Convidado para diretor da Faculdade, professor catedrático de
Arqueologia, aceitou e abandonou a medicina! Ficou até se aposentar em 1973,
acumulando as funções de Diretor do Museu Nacional de Arqueologia Leite de
Vasconcellos, presidente ou vice da Associação Nacional dos Arqueólogos, membro
da Academia Portuguesa de História desde 1958, Diretor do Museu Tavares Proença
Jr. Em Castelo Branco, tem-se notabilizado em todos os ramos que abrangeu.
As opiniões e testemunhos de
antigos alunos seus, não economizam loas ao seu saber
e à sua maneira de ser, sedutor pela simplicidade e educação, dialogante vivo e
sempre disponível, organizador e agitador benévolo e
sorridente. Latinista, uma dos maiores epigrafistas que Portugal conheceu e
professor, fez incursões pela entomologia e pela pintura, relojoaria, cerâmica
e azulejaria. Estudou história, línguas, filosofia, teologia, matemática,
ciências exatas e naturais. Acima de tudo, despertou-os para a liberdade e a
ousadia plenamente vividas. A sua figura marcou em definitivo, como aconteceu
com o Professor Agostinho da Silva, o século xx português.
Num dos
últimos textos – Amigos 23 – falei na Mocidade Portuguesa e que um primo tinha
tirado a carta de condução com 16 anos. Volto agora a falar nessa hoje tão
comentada como desconhecida Mocidade Portuguesa. Contado pelo atual Prof. Dr.
Luis Raposo, também arqueólogo:
“Conheci pela primeira vez D. Fernando de
Almeida, tinha eu acabado de fazer 16 anos, e frequentava o 5° ano do liceu.
Por influência de um professor, jornalista e arqueólogo, inscrevi-me no núcleo
de arqueologia ali existente e logo depois fui aceite para frequentar, e obter
diploma, no 3° Curso de Iniciação à Arqueologia promovido pela Mocidade
Portuguesa. Entre os professores contava-se o D. Fernando de Almeida.
Recordo-me do seu inconfundível trato, de uma séria afabilidade, matizada com
elegante boa disposição... Posso dizer que espertei para a arqueologia nessa
ocasião.
Como
Diretor da Faculdade de Letras, foi convidado algumas vezes para ir dar aulas
em Luanda e Lourenço Marques (Maputo) onde eu tive a oportunidade de o ouvir. A
sua forma descontraída e leve de se dirigir aos alunos e outros ouvintes
cativavam de tal forma que as aulas terminavam sempre com uma longa salva de
palmas.
Lembro,
um tanto vagamente que numa dessas aulas explicava que os trabalhos
desenvolvidos nas ruinas de um hipódromo, em Miróbriga (Santiago do Cacém,
cerca de 150 kms a sul de Lisboa) já existente no tempo dos celtas (sec. IX aC)
que os romanos depois desenvolveram, tinham lá encontrado os “sanitários”! E,
espantem-se, separados para homens e mulheres. A sua explicação, sempre com a
máxima simpatia e educação, detalhava até o modo como eram usados. Como é de
imaginar, a assistência adorava e fartava-se de rir.
Numa
dessas idas a Luanda, final de 1969, um fim de semana levámos o tio para passar
o domingo conosco andando de barco (a motor) pelo Mussulo, o que ele,
naturalmente muito apreciou. Para poder lá estar o máximo de tempo navegando
pelas belezas daquela zona, preparou-se um farnel onde entravam uns croquetes
de carne.
A
Helena, filha, com 9 anos, amável, perguntou ao tio:
- Ó Tio! Quer mais um pastel de bife?
No fim
do passeio fez questão de nos fotografar, todos ainda com traje de praia....
quase nus!!!
Regressado
a Lisboa mandou a foto acompanhada desta tão simpática carta:
“Angola desconhecida
Tribu mossulense dos A-Morines em traje de festa (traje de banho, no barco!). Alimentam-nos, engordam-nos, e chamam-nos Ohtio! Esta tribo está
aculturada. São muito inteligentes. Trabalham o dia todo desde antes de
nasceram e são muito prolíficos. A-Morines, na sua língua tribal, quer dizer,
segundo um Ohtio que por lá passou, encantadores. Dizem que tinha razão. Como
se vê pela gravura junta (a tal foto que entretanto... se perdeu!) andam nus, por serem descendentes do “macaco
nú”; mas usam artefactos de pano na cabeça, com o que ficam muito satisfeitos.
Há a maior esperança de virem a povoar Angola por completo, com o que muito nos
alegraremos todos por serem muito amáveis, simpáticos, enfim uns “taras”, mas
verdadeiros A-Morines.
Aposentado
em Portugal, em 1976 estava a dar umas
aulas na Universidade em Recife a convite desta gente de cá. Agora insistem em
levar-me para a Universidade de Marília, com um ordenado a sério. Não vou. Para
quê? Já dei a chamada “última lição” por duas vezes e chega!
Devem-lhe
muito os sítios de Idanha-a-Velha (Civitas
Igaeditanorum), São Miguel de Odrinhas em Sintra, Olisipo, Sines, Mértola,
Miróbriga e Tróia em Setúbal, São Cucufate e São Gião da Nazaré, e por todo o
país, como Vidigueira, Portel, Monforte, Tomar, Serpa, etc., etc.
Publicou
trabalhos sobre arquitetura romana tardia e paleocristã, pintura e mosaicos
romanos, epigrafia paleocristã, numismática suevo-visigótica, ambientes
funerários de inumação.
E um
excelente livro intitulado Ruinas de
Miróbriga dos Célticos.
Um
encanto de pessoa, desde a adolescência como irmão do seu primo Augusto (era como meu irmão, ou melhor), e deixou
um vazio cheio de saudades.
Dizem os
seus alunos que este Mestre nos legou
nobreza da sangue, nobreza de alma, nobreza de coração, e é com toda a ternura filial que curvo diante
da sua memória. (Palavras do Professor Dr. José d’Encarnação)
Um
grande senhor D. Fernando de Almeida e
Silva Saldanha (1903-1979)
9 Feb. 19
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