domingo, 24 de fevereiro de 2019



Amigos – 24

Professor Dr. D. Fernando de Almeida Saldanha

Vamos continuar com a família. Tios por casamento, mas que sempre fizeram parte da família.
Ia começar com um primo deles, que por ser muito chegado, como irmão, está incluído no mesmo grupo, outro Dom Fernando, outro tio Fernando, mas após começar a procurar, investigar, tanta coisa interessante achei sobre este Senhor que teria que ficar para uma crónica separada. Aqui vai, muito resumida, porque a vida deste Grande Senhor, notável pelo seu polifacetismo., merecia ser conhecida, não só nos meios técnicos em que trabalho, e onde é muito reconhecido, devia ser um exemplo mais para os portugueses e, porque não, estrangeiros.
A ele, além da imensa amizade, sempre lhe fiquei devendo duas (três?!) especiais atenções:
- Foi ele que ajudou a pôr neste mundo os nossos dois primeiros filhos, em Lisboa (Jorge e Luis);
- E foi também no belo jardim da sua casa que aconteceu o “copo de água” do meu, nosso, casamento.
Desde os seus 15 ou 16 anos, quando numas férias foi “trabalhar” num sítio arqueológico, que a paixão pela arqueologia nunca mais o largou. Ficou-lhe no sangue como “doença” incurável! Já médico conceituado sempre aproveitava as férias para ir com a sua pazinha e martelo, cutucar em lugares por onde andaram os celtas, romanos, visigodos e outras gentes. E como sabia história!
Formou-se em medicina em 1924, um muito considerado ginecologista e obstetra, e professor na Faculdade. Em pouco mais de 50 anos publicou quarenta e seis trabalhos científicos de grande valor, tendo sido ainda o redator da revista Lisboa Médica.
Uma boa disposição contagiante, quando um dia estava em casa duns amigos (primos?) e alguns jovens ali hospedados já a caminho da faculdade, numa conversa em que entraram uns copos, talvez a mais, sabendo do seu interesse por arqueologia, convenceram o tio Fernando, com 46 anos, a também se matricular na Faculdade de Letras, apesar de ser já um grande médico, professor de medicina, muita obra publicada, e um reconhecimento que ultrapassava as fronteiras de Portugal.
Dois outros convivas, parentes, com aproximadamente a mesma idade, acharam a ideia de voltarem a estudar... divertida e decidiram, todos muito bem na vida, matricular-se também na Faculdade de Letras em ciências históricas e filosóficas..
O tio Fernando gostou da idéia e assim fizeram. Ele que tinha paixão pela história e sabia já muito, foi andando, sempre com boa classificação. Os primos, que se tinham matriculado mercê duma espécie de brincadeira, só apareciam na Faculdade quando lhes dava na gana! No fim do primeiro período um contínuo foi encarregado de levar uma mensagem ao Dr. D. Fernando:
- Os seus primos vão ter notas péssimas e é uma vergonha para eles. Era bom que cancelassem a matrícula.
É evidente que o fizeram, tanto mais que não estavam nada interessados em estudar! O tio Fernando seguiu, formou-se em 1954 e quando apresentou a sua tese de licenciatura quase envergonhou os examinadores porque sabia tanto ou mais do que eles, e logo foi convidado para professor assistente.
Foi tão importante esse trabalho que a Gulbenkian o publicou logo a seguir: “Egitânia, História e Arqueologia”.
Durante o curso, sem ter abandonado a sua já muito ativa vida de médico, e de professor de Medicina, passaram-se dois episódios que relatam, uma vez mais a nobreza deste senhor, e isto são palavras dele:
“Durante um exame escrito, a meio da prova veio o contínuo avisar-me que da maternidade me chamavam ao telefone; logo de início eu lhe tinha dado essas instruções e ele cumpriu sempre. Já se tinha passado uma outra vez na cadeira do Prof. Mário de Albuquerque, e este senhor me dissera logo, sem rebuço, ‘vá ao telefone e se puder volte para concluir a prova’, julguei poder repetir o pedido para o qual esperava idêntica resposta, que foi rápida: ‘o senhor pode ir ao telefone, mas não volta aqui!’ Fiquei estarrecido, era meu dever ir, e disse: ‘Pois vou, não volta, e acabo “isto” de qualquer maneira rápida’. Se bem o disse melhor o fiz. Preparava-me para rabiscar a assinatura quando me bateram no ombro: ‘Olhe eu fui ao telefone, é a senhora tal, que diz que está com dores, etc., etc. e está ao telefone’. O Professor parecia preocupado e eu tive a coragem de lhe responder; ‘Muito obrigado pelo favor e já agora pedia a V.Excia. para dizer à senhora para tomar o remédio x’, e retomei o exame. Poucos minutos depois volta o Professor: ‘A senhora diz que já tomou esses remédios e ficou na mesma’. ‘Pois então que tome este outro que dentro de maia hora já lhe telefono’. E lá voltou o santo Professor Mário Chicó com o recado. Ficámos amigos.
Numa das excursões com alunos, ao explicar o estilo da Igreja de São Francisco em Évora, viu, por detrás de um arco a palavra “encartado” (fazia parte de uma tabuleta de um “solicitador encartado”), e com o seu ar cativante pergunta ao assistente: “Olhe lá, está ali escrito encartado! O que é um arco “encartado”?
Continuou com a medicina, aulas aos futuros médicos e simultaneamente aulas também na Faculdade de Letras.
Uns anos depois, 1962, foi a vez de apresentar outra tese, de doutoramento, outra trabalho magistral “Arte Visigótica em Portugal”, obra que mereceu o prémio Calouste Gulbenkian de Arqueologia, o primeiro doutorado em Arqueologia em Portugal. Convidado para diretor da Faculdade, professor catedrático de Arqueologia, aceitou e abandonou a medicina! Ficou até se aposentar em 1973, acumulando as funções de Diretor do Museu Nacional de Arqueologia Leite de Vasconcellos, presidente ou vice da Associação Nacional dos Arqueólogos, membro da Academia Portuguesa de História desde 1958, Diretor do Museu Tavares Proença Jr. Em Castelo Branco, tem-se notabilizado em todos os ramos que abrangeu.
As opiniões e testemunhos de antigos alunos seus, não economizam loas ao seu saber e à sua maneira de ser, sedutor pela simplicidade e educação, dialogante vivo e sempre disponível, organizador e agitador benévolo e sorridente. Latinista, uma dos maiores epigrafistas que Portugal conheceu e professor, fez incursões pela entomologia e pela pintura, relojoaria, cerâmica e azulejaria. Estudou história, línguas, filosofia, teologia, matemática, ciências exatas e naturais. Acima de tudo, despertou-os para a liberdade e a ousadia plenamente vividas. A sua figura marcou em definitivo, como aconteceu com o Professor Agostinho da Silva, o século xx português.
Num dos últimos textos – Amigos 23 – falei na Mocidade Portuguesa e que um primo tinha tirado a carta de condução com 16 anos. Volto agora a falar nessa hoje tão comentada como desconhecida Mocidade Portuguesa. Contado pelo atual Prof. Dr. Luis Raposo, também arqueólogo:
Conheci pela primeira vez D. Fernando de Almeida, tinha eu acabado de fazer 16 anos, e frequentava o 5° ano do liceu. Por influência de um professor, jornalista e arqueólogo, inscrevi-me no núcleo de arqueologia ali existente e logo depois fui aceite para frequentar, e obter diploma, no 3° Curso de Iniciação à Arqueologia promovido pela Mocidade Portuguesa. Entre os professores contava-se o D. Fernando de Almeida. Recordo-me do seu inconfundível trato, de uma séria afabilidade, matizada com elegante boa disposição... Posso dizer que espertei para a arqueologia nessa ocasião.
Como Diretor da Faculdade de Letras, foi convidado algumas vezes para ir dar aulas em Luanda e Lourenço Marques (Maputo) onde eu tive a oportunidade de o ouvir. A sua forma descontraída e leve de se dirigir aos alunos e outros ouvintes cativavam de tal forma que as aulas terminavam sempre com uma longa salva de palmas.
Lembro, um tanto vagamente que numa dessas aulas explicava que os trabalhos desenvolvidos nas ruinas de um hipódromo, em Miróbriga (Santiago do Cacém, cerca de 150 kms a sul de Lisboa) já existente no tempo dos celtas (sec. IX aC) que os romanos depois desenvolveram, tinham lá encontrado os “sanitários”! E, espantem-se, separados para homens e mulheres. A sua explicação, sempre com a máxima simpatia e educação, detalhava até o modo como eram usados. Como é de imaginar, a assistência adorava e fartava-se de rir.
Numa dessas idas a Luanda, final de 1969, um fim de semana levámos o tio para passar o domingo conosco andando de barco (a motor) pelo Mussulo, o que ele, naturalmente muito apreciou. Para poder lá estar o máximo de tempo navegando pelas belezas daquela zona, preparou-se um farnel onde entravam uns croquetes de carne.
A Helena, filha, com 9 anos, amável, perguntou ao tio:
- Ó Tio! Quer mais um pastel de bife?
No fim do passeio fez questão de nos fotografar, todos ainda com traje de praia.... quase nus!!!
Regressado a Lisboa mandou a foto acompanhada desta tão simpática carta:
“Angola desconhecida
Tribu mossulense dos A-Morines em traje de festa (traje de banho, no barco!). Alimentam-nos, engordam-nos, e chamam-nos Ohtio! Esta tribo está aculturada. São muito inteligentes. Trabalham o dia todo desde antes de nasceram e são muito prolíficos. A-Morines, na sua língua tribal, quer dizer, segundo um Ohtio que por lá passou, encantadores. Dizem que tinha razão. Como se vê pela gravura junta (a tal foto que entretanto... se perdeu!) andam nus, por serem descendentes do “macaco nú”; mas usam artefactos de pano na cabeça, com o que ficam muito satisfeitos. Há a maior esperança de virem a povoar Angola por completo, com o que muito nos alegraremos todos por serem muito amáveis, simpáticos, enfim uns “taras”, mas verdadeiros A-Morines.
Aposentado em Portugal, em 1976 estava a dar umas aulas na Universidade em Recife a convite desta gente de cá. Agora insistem em levar-me para a Universidade de Marília, com um ordenado a sério. Não vou. Para quê? Já dei a chamada “última lição” por duas vezes e chega!
Devem-lhe muito os sítios de Idanha-a-Velha (Civitas Igaeditanorum), São Miguel de Odrinhas em Sintra, Olisipo, Sines, Mértola, Miróbriga e Tróia em Setúbal, São Cucufate e São Gião da Nazaré, e por todo o país, como Vidigueira, Portel, Monforte, Tomar, Serpa, etc., etc.
Publicou trabalhos sobre arquitetura romana tardia e paleocristã, pintura e mosaicos romanos, epigrafia paleocristã, numismática suevo-visigótica, ambientes funerários de inumação.
E um excelente livro intitulado Ruinas de Miróbriga dos Célticos.    
Um encanto de pessoa, desde a adolescência como irmão do seu primo Augusto (era como meu irmão, ou melhor), e deixou um vazio cheio de saudades.
Dizem os seus alunos que este Mestre nos legou nobreza da sangue, nobreza de alma, nobreza de coração, e é com toda a ternura filial que curvo diante da sua memória. (Palavras do Professor Dr. José d’Encarnação)
Um grande senhor D. Fernando de Almeida e Silva Saldanha (1903-1979)



9 Feb. 19

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