domingo, 27 de janeiro de 2019


Amigos – 21
Um primo com muita história



Primo direito do meu pai, filho da irmã mais velha do meu avô, que casou com um jovem tenente de artilharia. Lembro ainda bem do seu pai. Este, general, aposentado, nos seus oitenta anos, grande bigodão amarelecido do tabaco, almoçava muitas vezes aos domingos em casa do meu avô, seu cunhado. Nós, pequenos, tínhamos que ir dar um beijo àquele velho “tio”, magrinho, que ficava estático sentado numa cadeira, e de lá saíamos cheios de cócegas porque o bigode ou nos entrava nas orelhas ou num olho!
O filho, muito amigo do meu pai, sem irmãos e não se dando bem com a mulher, de quem acabou por se afastar de vez, almoçava muitas vezes em nossa casa, e daí me lembrar bem dele, tranquilo, um pouco sobre o gordo, monóculo, sempre atencioso e muito inteligente.
Dizia a minha mãe que ele só gostava de bifes com batatas fritas, e não comia outra coisa. Nós riamo-nos com isso, mas penso ter descoberto a causa desse problema. Antes dele os pais tiveram primeiro um filho que morreu com 6 anos, quando este apareceu tinha apenas 2, e talvez por isso, tudo o que menino queria, era uma ordem que se cumpria. Deve vir daí essa história de só comer os tais bifes.
Engenheiro químico, trabalhava na altura na Fosforeira Portuguesa, sendo um técnico de tal calibre que me lembro do meu pai contar que a empresa lhe mandava o salário a casa para que ele não permanecesse na fábrica, onde a sua capacidade criativa e genial provocava muita confusão nas mentes mais reles. Mas, quando um fósforo não acendia bem... aqui del-rei... chamem o engenheiro Parreira.
Iam buscá-lo a casa e num instante os fósforos voltavam a acender com perfeição!
Depois que o meu pai nos deixou creio que perdi esse primo de vista.
Até um dia, em Luanda, 1958, cruzo-me na rua, perto da entrada de um hotel, com um senhor de monóculo, acompanhado de outro bem mais jovem, e a ficha caiu! Parei, olhei para trás, vi-os entrar no hotel e fui lá. Estava o mais jovem a deixar o senhor na recepção, mas na dúvida perguntei como se chamava o senhor.
- Engenheiro Henrique Parreira.
Era ele, que eu não via desde criança, há uns 16 anos.
- E o que ele faz aqui?
- Viemos a um Congresso de Pescas. E quando o engenheiro Parreira emite uma opinião, ela é unanimemente acatada e aceite sem mais discussão!
Fui até ao balcão, parei a seu lado, ele olhou para mim e diz:
- Ó Chico! Há quantos anos não te vejo!
Ele, na altura com 61 anos, reconhecer-me logo, tocou-me fundo. Dei-lhe um forte abraço. Perguntou por nós, minha mãe e irmãos, o que eu fazia em Angola, etc., e fui-lhe dizendo que ali vivia há quatro anos e que acabara de nascer o meu terceiro filho.
Vivia em Goa, onde já se notabilizara, tendo escrito “A Pesca no distrito de Goa”, publicado na Revista da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar / Ministério do Ultramar. - Lisboa, 1956 e estava em Luanda para o Congresso. Foi jantar ou almoçar a nossa casa, simpático como sempre, e quando o fui levar ao hotel, fez questão que passássemos num lugar de onde se via, lá no alto das barrocas da cidade, para os lados do Cacuaco, um edifício grande que estava abandonado.
-Sabes o que aquilo era?
Não fazia ideia. Contou-me então.
Angola quis também uma fábrica de fósforos, bom negócio e ótimo para os impostos, e ele tinha sido quem fizera todos os planos, escolha do equipamento, enfim tudo quanto era necessário, e montou-se naquele armazém que estás vendo ali.
- No dia que estava prevista a inauguração da fábrica chegou um telegrama de Lisboa, proibindo a sua fabricação. E tudo ficou ao abandono.
Era assim que a Metrópole tratava as suas eufemisticamente chamadas de províncias. O lucro e os impostos tinham que ficar em Portugal. Os impostos eram tão chorudos que era proibido usar isqueiro!
Quem quisesse tinha que ter uma licença especial pagando imposto. 40$00 escudos mais 8$00 de selos colados no verso! Uma VERGONHA.


O primo regressou a Goa, de lá mandou um bilhete de Boas Festas e depois soube que tinha descansado poucos meses passados.
Há pouco descobri um magnífico livro, Mar Aberto – Viagens dos Portugueses, de uma historiadora e professora da Universidade de Roma, Luciana Stegagno Picchio, onde relata uma oferta enviada pelos produtores de açúcar da ilha da Madeira, ao Papa Leão X, em 1515, que fez um sucesso imenso, tal a qualidade e a quantidade de doces que lá chegaram intactos!
A autora passa pelas histórias do açúcar na Sicília e na Madeira, para chegar ao que os portugueses fizeram pelo mundo, e nota que, ao escrever sobre Storia dello zucchero siciliano, o investigador Carmelo Trasselli, refere que “todas notícias relativas ao açúcar na Madeira foram recolhidas no estudo de Henrique Gomes de Amorim Parreira, no trabalho História do Açúcar em Portugal.  Um estudo profundo de mais de 300 páginas.
Como era de esperar “parti à caça” desse livro e consegui obtê-lo, em fotocópia, na Sociedade de Geografia de Lisboa. In: Estudos de História da Geografia da Expansão Portuguesa. Vol. VII, tomo I, 1952.
São mais de 300 páginas com um interesse constante.
Nos tempos antigos o único edulcorante que era conhecido na Europa era o mel, a que, em alguns casos se lhe atribuiam virtudes especiais porque, misturado com água e deixado fermentar podia embebedar e assim “transformar” homens em videntes! Assim era muito usado em cerimónias religiosas.
O mel era um produto de valor considerável nas exportações de Portugal e, como ainda hoje, muitíssimo apreciado. Em 1552, segundo uma estatística da época havia vinte mulheres que vendiam mel em Lisboa. Alguns anos mais tarde já alguns comerciantes o vendiam na Rua da Ferraria de Haver o Peso, continuação da chamada Rua da Conceição, atrás da Conceição Velha.
A cana sacarina é originária da Índia Oriental, possivelmente no lado sul do Himalaia das margens do Ganges.
As primeiras notícias que chegam à Europa sobre essa planta foram trazidas por alguns generais de Alexandre Magno, que diziam ter visto uns “bambus que produziam mel servindo também para uma bebida inebriante”! Muito pouco chegava à Europa, por preços exorbitantes e só usado em medicina.
O nome que lhe davam, em sânscrito era “çarkarã” que significa pedrinha, porque o açúcar se apresentava de forma granulosa. Passou ao grego como sákchar ou sákcharon, e ao árabe sukkar, que com o pronome as ficou assuccar.
A cana entrou depois na Arábia e no Egito, e foram os árabes que acabaram por levá-la para a Europa. Pouco tempo depois da Conquista, em 712 já estavam a plantar cana, sobretudo na região de Córdova e no século XI também se produzia açúcar na Sicília.
O açúcar da região de Córdova rapidamente atingiu volume considerável e era exportado para África, constituindo uma elevada fonte de rendimento.
Começaram a adicionar-se especiarias, xaropes e frutas em calda, fazendo-se inúmeros doces. O “Calendário de Córdova” do ano de 961, ensina quais os passos a dar para o cultivo da cana e para a fabricação de doces, dizendo, por exemplo, que “em novembro ainda se fabricam confeitos de pêra, maçã e castanha”.
Da palavra phanita ou phani para o caldo concentrado, com que se faziam os doces, os árabes chamaram-lhe fani, ou al-fani, que acabou, em português o “alfenim”.
Não há um conhecimento exato sobre cultura da cana no Algarve, mas já em 1404 D. João I coutava uns terrenos em Quarteira a favor de João de Palma, genovês, para a sua produção. Também consta que se cultivava nos arredores de Coimbra, conforme escreveu um alemão, Lanckman von Falkenstein, que foi a Portugal para acompanhar a filha de D. Duarte que ia casar com o Imperador Frederico III. Há algumas referências mais, mas somente, pouco depois de descoberta a Ilha da Madeira (cuja data se desconhece) começa a colonização em 1425 e logo o Infante Dom Henrique ali incentivou o plantio de cana.
Dizem uns que mandou vir as canas e técnicos da Sicília, outros “estudiosos” afirmam que não teria sido necessário porque já havia esse conhecimento em Portugal, outros ainda que vieram de Granada ou Valência, ou até do norte de África, de Safim, etc.
A verdade é que num instante a cana sacarina se deu tão bem na Madeira que passou o seu açúcar a ser considerado o melhor de toda a Europa, e que valor mais alto conseguia. Como ao Infante “pertencia” um terço da produção, este não descurava tão importante negócio e numa carta enviada a Gonçalves Zarco, que estava no Funchal, insistia: “E que façam canaviais nas outras povoações”.


Com a produção a crescer muito – por volta de 1455 atingia mais 90 toneladas – e sendo o açúcar da Madeira o que mais valia em toda a Europa. Em 1480, dizia-se, os estrangeiros que trabalhavam na Madeira só com açúcar, “carregaram vinte naus de castelo d’avante e quarenta ou cinquenta outros navios”, em 1455 a produção chegava a cerca de 100 toneladas e em 1498 a exportação total atingia 120.000 arrobas, algo como 1.800 toneladas.
Não tardou que alguns agricultores se especializassem em doces, que faziam enorme sucesso na Europa, chegando a carregar mais de uma nau só com confeitaria, direto para as Flandres.
Vale referir que em 1516 foi enviada ao Papa Leão X uma escultura do Sacro Colégio e todos os cardeais em tamanho natural feitos em alfenim e cobertos com pó dourado, que foi oferta do Terceiro Capitão Donatário do Funchal, D. Simão Gonçalves da Câmara, que fez um sucesso enorme, porque, além da novidade, todos os doces, embalados em caixas de madeira, chegaram a Roma em perfeito estado. O Papa e os cardeais tiveram que praticar um pouco “antropofagia doce”!
Da Madeira o açúcar passou aos Açores, com sucesso fraco, mercê da irregularidade das chuvas, a Cabo Verde onde a secura do clima não permitia grande produção e a pouca que lá se cultivava era praticamente toda destinada a fazer aguardente. Em São Tomé a cultura da cana teve uma razoável expansão, mas em meadas do século XVI foi saqueado pelos piratas franceses, em 1574 os escravos revoltaram-se e queimaram todas as plantações e, mesmo recomeçando, em 1641 Maurício de Nassau, para destruir a indústria portuguesa atacou São Tomé, destruiu 61 engenhos e queimou na capital milhares de caixas de açúcar. A maioria dos colonos decidiu abandonar a ilha e passar-se para o Brasil levando toda a aparelhagem possível, para aqui recomeçarem a trabalhar.
Foi no Brasil que essa cultura atingiu níveis nunca antes imaginados. O clima era muito violento para os europeus, que não aguentavam trabalhar de sol a sol no campo, como nas suas terras de origem, e os indígenas habituados a uma vida de liberdade, não se fixavam nas plantações. A única solução se deve aos homens fortes e adaptados a climas quentes, de África. Foram os escravos que praticamente tudo fizeram nas plantações de cana, e o Brasil, se é o que é hoje deve a sua grandeza ao açúcar e este deve-o aos africanos.
O principal centro de distribuição de açúcar na Europa estava nas Flandres.
Com a coroa de Portugal na cabeça dum inimigo da Holanda, levou os holandeses a assaltarem as regiões de produção, na Bahia e Pernambuco, para se apoderarem, sem intermediários, do comércio, riquíssimo, que já faziam nas Flandres. Por aqui estiveram pilhando o trabalho já estabelecido, durante 24 anos. Tiveram até tempo para conquistar Angola para poderem trazer por menor preço os escravos indispensáveis.
Em Angola e Moçambique só nos finais do século XIX é que se encarou, a sério a exploração da cana, chegando a produzir, no tempo colonial 75.000 toneladas. Durante as guerras civis que a seguir enfrentaram, a produção caiu a quase nada, começando agora a recuperar, mas ainda longe, mesmo com técnicas e capitais novos, de atingir o que tinham há quase meio século.
Moçambique com uma produção atual de 450 mil toneladas, nas quatro empresas que funcionam no país, enquanto Angola, só com uma (montada pela Odebrecht naquelas negociatas... estranhas!) ainda não passou de 45 mil. Em 1894 produzira 774.714 quilos e em 1940 78.000 toneladas.
O Brasil continua a ser o maior produtor de açúcar do mundo, exportando entre 25 a 30 milhões de toneladas por ano. Só o Estado de São Paulo tem cerca de 4,5 milhões de hectares de plantação da cana sacarina.
E é no Brasil que existe a melhor definição para o açúcar:
“É AQUELE PRODUTO QUE QUANDO NÃO SE USA DEIXA O CAFÉ AMARGO!”

Vale muito a pena ler o magnífico trabalho de história, onde se encontram detalhes de imenso interesse, e também seria muito útil para a cultura geral, do Brasil e de Portugal, que alguém escrevesse a história deste grande engenheiro Henrique Gomes de Amorim Parreira (1897-1959)


27-jan-19

domingo, 20 de janeiro de 2019


Amigos – 20

Histórias da História de Moçambique


Tenho falado só nos amigos que já nos deixaram. Hoje vou contar uma pequena história em que participaram muitos amigos, uns que ainda estão conosco, outros que já descansam e uma boa porção de que perdi o rasto, mas a quem mando na mesma um abraço, virtual ou etéreo.
Em 1969 fui trabalhar, em Luanda para o BCCI, que mais não era do que o Banco Borges & Irmão em Angola e Moçambique.
Alguns anos antes já tinha sido desafiado, ou convidado, para assumir a direção comercial da Mac-Mahon, a cerveja 2M e Coca-Cola em Moçambique, cujo acionista majoritário era exatamente o BCCI, o que declinei por não querer sair de Angola.
Em princípios de 71 o diretor geral do Banco, em Luanda, meu patrão e muito amigo, regressa de Lisboa e diz-me que traz uma proposta do patrãozão! Já desconfiei!
Ir para Moçambique, diretor comercial, blá, blá, blá... Ainda pus o problema:
- Se eu disser que não... ele põe um teto na minha cabeça, não é ?
- Deve ser!
- E se for?
- Sobes dois furos na hierarquia dos diretores.
Fui!
Um ano e meio depois, instalado em Lourenço Marques – Maputo – onde fui encontrar amigos de infância e fazer outros novos, o patrãozão, decide, mandar o diretor geral de Angola para Moçambique e o de Moçambique, que também me acolhera com muita simpatia, regressar a Prtugal.
Achei que o melhor a fazer seria uma festinha de recepção a um e despedida a outro.
O meu colega na 2M, Rodrigo Pombeiro, grande artista gráfico, responsável pela publicidade da companhia, desenhou o convite que mandei aos amigos, convidando-os para um churrasco com batuque:


Dentro deste magnífico convite seguiam as “instruções”, em pura linguagem camoneana:

Lourenço Marques – Festa de Recepção e Despedida

l          ANDAVA O CÉU INQUIETO, REVOLVENDO,
AS GENTES INCITANDO AO SEU TRABALHO;
O QUINA(1) NELES SEMPRE REMEXENDO
DECIDIU FAZER MUDANÇA POR ATALHO.
FORAM-SE AS DÚVIDAS TODAS DESFAZENDO
E APARECEU A SOLUÇÃO JÁ SEM ORVALHO:
MANDOU-SE O COSTA(2) PARA A LUSITÂNIA,
TRANSFERIU-SE O ABREU(3) P'RÁ TAPROBANA!
2         CESSEM DO SÁBIO COSTA E DO ANGOLANO
AS MANIFESTAÇÕES GRANDES QUE TIVERAM;
CALE-SE O ALEXANDRE(4) ALENTEJANO
DOS CONHECIMENTOS QUE POR ELE OBTIVERAM;
QUE EU CANTO PEITO ILUSTRE MOÇAMBICANO
A QUEM MARRABENTA E CHURRASCO OBEDECERAM.
CESSE TUDO O QUE DOS LAURENTINOS CANTAM,
QUE OUTROS VALORES D’ANGOLA SE ALEVANTAM.

3         INCLINAI TODOS UM POUCO A MAGESTADE
AINDA QUE VOS PESE ESTRANHAMENTE;
POIS VIMOS O ABREU NESTA CIDADE
DESEMBARCAR, ALTIVO E SABIAMENTE.
QUAL GAMA NO SEU TEMPO E SUA IDADE,
TRAZEDO BEM ALTIVO E FIRMEMENTE,
UM MARCO(5) DE AFIRMAÇÂO LUSITANA,
NA COMPANHIA DA SUA TRIBU ANGOLANA.

4         DAI-ME UMA FÚRIA GRANDE E SONOROSA
E NÃO INDIFERENÇA MOLE COMO BUDA,
NEM TRISTEZA VELHA OU BELICOSA,
POIS ISTO AGORA OU RACHA OU MUDA!
DAI-ME IGUAL CANTO AOS FEITOS DA FAMOSA GENTE NOSSA,
QUE LÁ EM CASA TANTO AJUDA!
E QUE SE ESPALHE E SE CANTE SEM CESSAR,
QUE HÁ DEZOITO ANOS NOS FOMOS A CASAR!

5         ESTÁ NO FADO JÁ DETERMINADO
QUE TAMANHAS FARRAS, TÃO FAMOSAS,
HAJAM OS VIAJANTES ALCANÇADO
DAS AMIGAS GENTES TEMEROSAS,
QUE AO DAR-LHES SÓ CHURRASCO E MAL ASSADO,
SE ACHARAM 'INDA MUITO GENEROSAS.
OH! VÓS QUE FICAIS OU QUE IDES PR'ÓS CONFINS,
NÃO ESQUEÇAIS TÃO DEPRESSA OS AMORINS!

Em Lourenço Marques, no:
Centenário do Camões
Chegada dos Abreus
Partida dos Costas
Implantação dos Marcos
e outros festejos
em 16/17 - Julho – 1972

1.- Quina: o patrãozão, Miguel Quina, presidente por vias genitais do Banco Borges & Irmão, que depois do 25/Abril abandonou os seus principais colaboradores, foi para Paris onde ainda sobrava alguma coisa do banco, fez um monte de vigarices e até creio que foi preso.
2.- Costa: Afonso Costa, neto do célebre homónimo do princípio da República, era o simpático diretor geral do banco em Mçambique.
3.- Abreu: Manuel Teixeira de Abreu, de diretor geral em Luanda para Administrador em Moçambique;
4.- Alexandre... Duarte Silva, diretor do banco em Moçambique, alentejano de Évora, que me recebeu como irmão quando ali cheguei;
5.- Marco: João de Avillez Soares Cardoso (Marco), especialista em informática do banco.

O local escolhido foi um Drive-In que estava em construção, pertença dum Sul-Africano, Mr. Fick, com quem estava em negociações para instalar lá a nossa cerveja.
Foi uma grande farra, a que compareceram 49 amigos, que me vou limitar a escrever os seus nomes. De alguns eu já mal lembro. Perda grande! Paciência.
Os homenageados e citados no convite, José de Azeredo e Vasconcellos, Adalberto Correia Mendes, Manuel Quartim Basto, Nuno Gorjão Henriques, Duarte Nuno Gorjão Henriques, Carlos Soveral, Rui de Sousa, Luis Herédia, José Manuel Pinto Coelho, Palma Sequeira, António Jonet, Luis Reis Costa, António Braz Teixeira, Teófilo Esquível, Rui Sanches da Gama, João Faria, António Vaz, João(?) Perdigão, Luis Alvim Cardoso, com as respetivas esposas, os anfitriões, os donos da casa e mais um conjunto de músicos moçambicanos que batucaram até às tantas.
Destes, com saudade, muitos já cá não estão, mas continuam lembrados.
Pouco tempo depois o Rui Sanches da Gama, que estava como diretor na Biblioteca Nacional de Moçambique, telefona-me a pedir se eu lhe mandava algumas caixas de refrigerantes. Precisavam de fazer uma grande arrumação lá na Biblioteca, mas isso só podia ser feito fora de horas e não havia dinheiro para horas extras. Então teriam que comer qualquer coisa, à noite, mas nada tinham para beber. O Rui comprara umas sanduiches, mas precisavam algo para beber.
Mandei logo umas caixas de Coca-Cola, 7-Up e também a 2M (para o final da festa!).
Como agradecimento o Rui mandou-me um cartão muito especial que, como se vê guardo até hoje com o maior carinho e saudade:

Na mesma linguagem camoniana:
“Chiquíades”
Cessem das Reunidas e da Impala
A fama das bebidas que tiveram.
Ao pé desta que tanto nos regala,
Que da 2M, para cá, nos deram.
Gulbenkian, Rockefeller e outros assim
Não valem puto ao pé do Amorim.

Nota: Reunidas era a concorrente da 2M e Impala uma das suas cervejas.

Só para receber este cartão até teria mandado mais umas caixas!
Dois anos depois o vintecincobarraquatro desestabiliza tudo, e o Rui antevê que deixar livros extra na Biblioteca eles seriam saqueados, como mais tarde vi na Guiné, e pergunta-me se eu quero guardar alguns. Disse logo que quereria todos os que achasse que podia dispensar. E mandou-me uma boa quantidade deles, que durante anos fui lendo e pesquisando.
Passam anos, uns 26 ou 27. Uma das nutricionistas que trabalhava comigo, aqui no Rio, um dia diz-me que tinha conhecido um moçambicano... lindo!
Estava a completar um doutoramento. Não pela beleza, mas por ser moçambicano, quis conhecê-lo.
Fui para Moçambique em 2001, onde estive seis meses na Casa do Gaiato, e um dia apareceu lá, para me conhecer o “moçambicano lindão”! Foi um gesto de grande simpatia que criou entre nós um vínculo de amizade muito profundo que dura até hoje.
Encontrámo-nos ainda no Rio, e depois, doutorado, zarpou para a sua terra. Trabalhou para a Unesco, nos Parques Nacionais, a seguir é nomeado Reitor da Universidade de Nampula UNILIRIO, e mais tarde Ministro da Educação. O Prof. Dr. Jorge Ferrão, hoje reitor da Universidade Pedagógica em Maputo.
Na altura em foi Ministro da Cultura lembrei dos livros que o Rui me tinha dado. Escrevi-lhe:
Quando “rebentou” o 25 de Abril e o caos tomou conta das colónias - neste caso Moçambique e particularmente o “velho” Lourenço Marques – e começaram a acontecer saques e abandono de repartições, era nessa altura, diretor da Biblioteca Nacional de Lourenço Marques um amigo meu, a quem eu tinha já ajudado, quando diretor comercial da Mac-Mahon, em 1972, oferecendo-lhe umas quantas caixas de refrigerantes e cerveja, porque ele estava, depois do expediente, com os funcionários, a fazer ou obras ou remodelação das instalações e o pessoal não recebia hora extra. Ele pagou, do seu bolso, umas sanduiches e pediu-me refrigerantes que lhe mandei.
Bom, isto é só o preâmbulo.
Quando ele viu que a Biblioteca estava em riscos de ser assaltada, guardou, em lugar creio que meio escondido, uma única coleção completa da revista
“MOÇAMBIQUE – documentário trimestral”
e como tinha uma quantidade de números avulso a mais perguntou-me se eu queria guardar os que pudesse encontrar em bom estado. Como pode imaginar disse logo que sim, e essas revistas, interessantíssimas, ao longo dos anos têm-me mostrado muita coisa de Moçambique que por vezes ponho no meu blog.
Tratam essencialmente de história, etnografia, e ciência ligada a vários assuntos, desde mar a plantas e doenças, e algumas páginas dedicadas a visitas de ministros e até do PR de Portugal.
Enfim tenho 48 exemplares, que vão do nr. 31 - o mais antigo – de 1942, até ao 92 de 1957.
Ainda vou ler e retirar muita coisa para divulgar, mas, atendendo à minha provecta “juventude”, é minha opinião, e vontade, que voltem para casa, desta vez Moçambique, onde haverá muito lugar onde possam ser de interesse, até talvez numa faculdade (a UNILIRIO?).
Não me ofereço para os enviar porque não disponho de $$$ extra, mas posso embalar tudo em caixas de cartão
O que lhe parece?
Capa e contra-capa da revista

Como é evidente o meu amigo embandeirou em arco, e as revistas, enviadas através da Embaixada de Moçambique no Brasil, lá seguiram e foram bem festejadas à chegada.
O que começou com uma batucada, que também recordou, modestamente e alegremente Camões, e acabou com outra festa moçambicana!
O bom filho à casa torna.
Antes do retorno, porém, viajou muito: de Moçambique, a Angola, Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo), Portugal, volta ao Rio e daqui segue para casa. Viajaram mais de 30.000 quilômetros!
Foram quase intactos mas deixaram alguma saudade!
História é história, e é sempre bom revê-la.

10/01/2018

domingo, 13 de janeiro de 2019




Uma Ínclita Geração – (A saga de um juiz)

Ia também escrever sobre um primo deles, que por ser muito chegado, como irmão, está incluído no mesmo grupo, outro Dom Fernando, outro tio Fernando, mas após começar a procurar, investigar, tanta coisa interessante achei sobre este Senhor que terá que ficar para uma crónica separada. Lá para Março.
Chegou então a vez do terceiro filho, D. Augusto, o Augustinho como lhe chamaram durante muitos anos os irmãos mais velhos, o “Juje”, como carinhosamente o chamávamos (entre nós, e à sogra, a “Juja”), que se formou em Direito na Universidade de Coimbra, novo, com ótima classificação. Vivo, inteligente, porte digno como convinha a um aristocrata, atrevido, teimoso. Louro, desempenado, bonitaço, grande desportista.
Terminado o curso em 1924 foi convidado para assistente da faculdade mas não se interessou.
Na história da Associação Académica de Coimbra, fundada em 28 de Outubro de 1922, cuja equipa de futebol ficou conhecida como a Briosa, calção e camisa pretos, cor da capa dos estudantes, está registrado (ou registado) que começa com o primeiro jogo contra uma seleção de Braga, em 23 de Março de 1922, onde os estudantes venceram por 2x1.
Académica - 1922. Um ponto vermelho D.  Augusto; dois o irmão D. Fernando

O primeiro golo de toda a história desta Briosa equipa deve-se ao nosso futuro Juje. Foi ainda capitão da mesma Académica no ano em que esta foi à final do Campeonato de Portugal, 1923, contra o Sporting, capitaneado pelo grande internacional Jorge Vieira.
Além disto, no I Torneio de Atletismo organizado pelo jornal “A Voz Desportiva”, também em 1923, o nosso estudante de Direito ganhou o primeiro lugar na corrida dos 100m com 11s e 7/10, venceu a estafeta 3 x 100m em que participou o seu irmão caçula, Fernando, que foi mais tarde bibliotecário da Biblioteca da Universidade, e o colega Luís Rodrigues, e ainda conquistou o 2º lugar no arremesso do disco com a marca de 26,74m.
Além disto gostava de treinar boxe, nunca tendo competido.
Enveredou pela magistratura, e um dia, Delegado (Promotor de Justiça), com 29 anos foi convidado para Governador Civil do Distrito da Horta, nos Açores, onde não aqueceu o lugar, mas onde nasceu a primeira filha. Incomodou os superiores burocratas com a sua dinâmica e inteligência, e não tardou a ser exonerado, a seu pedido, menos dois anos após ser empossado, voltando para a promotoria pública prosseguir a carreira escolhida.
Enquanto Governador, num daqueles dias de Mau Tempo no Canal, em que o vento sopra com violência e o mar lhe responde alteroso, como briga de titãs, recebe Sua Excelência um telegrama enviado de bordo do couraçado HMS Hood, o mais famoso navio de guerra inglês, glória da arrogante marinha de sua majestade britânica, que foi afundado durante a II Guerra Mundial com um único tiro disparado de bordo do navio alemão Bismarck. Mas não cabe aqui contar a história desta outra guerra.
O telegrama, recebido já o sol encostara no poente, dizia mais ou menos
ALMIRANTE “X” COMANDANTE NAVIO ALMIRANTE HMS HOOD STOP APRESENTA CUMPRIMENTOS AUTORIDADE PORTUGUESA STOP PEDE AUTORIZAÇÃO FUNDEAR SUAS AGUAS TERRITORIAIS STOP (já estava fundeado!) ABRIGAR TEMPORAL STOP LAMENTA NAO PODER APRESENTAR PESSOALMENTE CUMPRIMENTOS STOP ESTADO MAR MUITO PERIGOSO.
Não seriam estas as palavras exatas, tanto mais que o big almirante telegrafou em inglês, mas a verdade é que, se sempre os ingleses se estiveram bem lixando para Portugal, não era um importantérrimo almirante que se ia incomodar para cumprimentar um simplérrimo governador de quatro misérrimas ilhas!
- Vá chamar o capitão João Costa. O comandante da polícia da terra, padrinho da filha do Governador que nasceu entrementes lá na Horta. História contada por este.
Chega o capitão debaixo de chuva e mau tempo ao gabinete do Governador que lhe lê o telegrama.
- Oh! Capitão! E se a gente fizesse uma partida a estes sujeitos?
O capitão estremeceu, porque já sabia que da cabeça do jovem governador alguma aventura maluca ia sair.
- Já que estes ingleses são tão importantes que não podem vir a terra, vamos mostrar-lhes o que valem os portugueses. Veja se arranja algum pescador que se queira arriscar a entrar no mar com este tempo, e envie um telegrama para bordo a dizer a esse almirante que se ele não pode vir a terra o governador pode ir a bordo!
- Mas, senhor Governador, o mar está imenso. Isso é loucura.
ALMIRANTE “X” STOP FACE SUA IMPOSSIBILIDADE DESEMBARCAR SUA EXCELENCIA GOVERNADOR  NAO VE DIFICULDADE IR BORDO STOP
Como seria de esperar, entre açoreanos experientes e destemidos homens do mar não foi difícil arranjar mais do que um voluntário que logo correu a preparar a sua fragilíssima embarcação, um baleeiro, à vela!
- Capitão! Vista a sua farda de gala. Eu vou também vestir-me a preceito, e já nos encontramos no cais para embarcar.
Ainda não haviam embarcado já outro telegrama de bordo estava em terra:
NÃO VENHAM STOP MAR  MUITO PERIGOSO STOP
- Responda: “para os portugueses não há mar perigoso!”
Governador e comandante da polícia debaixo de grossa capa de oleado para se molharem um pouco menos, lá vai a embarcação baleeira, conduzida por experientes e calejadas mãos, voando por cima daquele mar imenso.
O almirante “x” ficou aterrado porque se acontecesse um acidente ao governador alguma explicação oficial ele teria que dar, o que lhe seria, no mínimo, desagradável.
O grande couraçado logo se avistou, todo iluminado, botes salva vidas prontos a serem lançados à água, para um quase certo resgate, oficiais no convés à espera daquele novo Gil Eanes, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, reencarnado.
A casquinha de noz num instante emparelhava ao longo do longo costado do imenso vaso de guerra, ora no topo da ondulação chegando ao convés deste, como desaparecendo lá em baixo na cava da onda. Não havia como estabilizá-la para subir a escada de portaló, mas para um atleta isso foi resolvido com simplicidade. Ao passar junto à escada, um salto, e lá vai Sua Excelência o Governador, de fraque, altivo, imponente, a subi-la.
Apitos, continências, guarda de honra, recepção no salão dos oficiais, discurso do embasbacado almirante, em inglês, perante a coragem dos navegadores portugueses ali consubstanciada naquele gesto, resposta do Governador, em português.
A seguir, confraternização em inglês, que o Governador falava, para novo espanto do mono linguista almirante, e rápida visita ao navio.
Segundo contava o já então coronel aposentado João Costa, o ar de espanto da marinhagem a olhar para aquele homem louro, vestido a rigor, que se atrevera a sair de terra com forte temporal, teria sido digno de um quadro de Goya!
Hora da despedida. O mesmo cerimonial.
- Capitão! O senhor desce primeiro, senta-se no fundo da embarcação para me segurar as pernas enquanto eu fico de pé para corresponder às saudações.
Mar enorme, saltar da escada de portaló do navio para dentro daquele baleeiro, qual ínfima tábua perdida, era necessário ser artista de circo! Mais artistas ainda os marinheiros açoreanos para governarem a pequena embarcação sem a deixarem espatifar-se contra o monstro encouraçado.
Finalmente, outro salto, entra o Governador. De bordo, continências, música e outros cerimoniais da praxe.
No fundo do baleeiro o capitão João Costa, agora todo molhado segura com força as pernas do Governador para que este, cartola na mão, possa permanecer de pé, firme naquele balançar imenso.
De manhã o governador recebeu outro telegrama, desta vez com protestos de admiração e respeito de toda a tripulação do majestoso Hood.
Outra façanha do Governador, era a sua aversão à estátua de um político que estava a ser colocada numa praça da cidade. Todas as noites Sexa Governador ia urinar para cima da estátua! O comandante da polícia tinha que fechar o acesso a essa praça, para que ninguém visse tal desaforo! Seria a estátua a Manuel de Arriaga, o primeiro Presidente da República de Portugal, nascido na Horta, que aliás fez um governo bastante medíocre, e foi corrido? Até hoje não consegui desvendar esse mistério!
Não gostou da política que envolvia o seu trabalho, pediu a exoneração do cargo.
Foi para Porto de Mós onde nasceu a segunda filha (que eu conheço bem!). Como o caracol, andou com a casa às costas. Começou a vida profissional em Coimbra, depois Cantanhede, volta a Coimbra, Chaves, Meda, Trancoso, Horta (Açores), Porto de Mós, Angra do Heroísmo, Torres Novas, em 1938 é convidado para Governador da Índia, que não aceita, vai para Torres Vedras onde em 1940 passa a juiz e é colocado em Elvas, a seguir Vila Nova de Ourém, e em 1943, finalmente Lisboa.
Em Torres Vedras, para resolver um conflito de Terras, e não tendo ninguém capaz de ir ver do ar como era o problema na foz dum rio, que frequentes vezes alterava o seu curso, tirou o brevet de piloto, sobrevoou a área e resolveu o Processo a favor da Câmara, o que mereceu imensa divulgação.
Quando em Elvas, em 1942, é convidado para participar, em Berlim, duma reunião de juristas onde se discutiria uma “Nova Ordem Mundial”! (Coisa do Hitler!) Foi, ficou hóspede de um diplomata português, e fez uma palestra, em alemão, pela Rádio Emissora de Berlim, sob o tema “A Revolução Moral e Mental do Homem Europeu”, cuja tradução a “comissão de Censura” da PIDE... aprovou!
Como é evidente isto provocou um burburinho tremendo no seio dos burocratas covardes!
As suas sentenças eram assunto que os jornais não cansavam de publicar e elogiar. Por todo o lado é homenageado. Isso parece ter incomodado os medíocres. Salazar não gostava dos que se destacavam sem lhe lamberem as botas e assim o nosso juiz passou a ser alvo de permanentes controles da PIDE que informavam os seus superiores com os relatórios mais idiotas que se pode imaginar: “parece que... talvez... dizem que... esteve com... foi homenageado por...”  sem jamais encontrarem algo que tivesse consistência ou interesse. Sabia-se, bem do seu fundo aristocrático, mas apoiando a república e o governo de Salazar, de mistura com um azedume pelos ingleses que sempre traíram em todo o mundo, incluindo Portugal mesmo depois que assinaram o famoso Tratado de Aliança em 1373. (O Imperador D. Pedro II também não gostava desse pessoal!), o que levou muita gente a simpatizar com a Alemanha, quando ainda eram desconhecidas as loucuras e massacres que o louco provocara. Além disso os negócios de Portugal com a Alemanha eram demasiado importantes desde há vários séculos.
Em Lisboa o nosso juiz entra para os tribunais cíveis e correcionais, depois no Tribunal de Polícia, com sentenças que são páginas antológicas, e em 1958 está com um contrato de “x” anos, juiz auditor no Tribunal Militar Especial.
Com muita frequência, ao fim da tarde, ia gastar dois dedos de prosa com uns quantos amigos num café na rua 1° de Dezembro (hoje restaurante), amigos de vários setores, como oficiais do exército reformados, agentes da PIDE, advogados e jornalistas, reuniões bem descontraídas a que algumas eu assisti e sempre me divertiam!
No Tribunal Militar Especial algo de “grave” entretanto se passou porque o juiz auditor, no processo dum réu desafeto à ditadura, terá dado um parecer de onde as devidas frases rebuscadas e jurídicas podiam ser traduzidas por “o réu é inocente, o bandido é o regime, i.é, Salazar”!!!! Como é evidente foi mandado ficar em casa, não voltar a esse tribunal, o salário continuava a receber, e os meses passavam à espera do prazo final do contrato.
Mandaram um outro juiz fazer uma inspeção. O pobre inspetor parecia que tinha medo do Dr. D. Augusto, porque a fama deste, como juiz era já conhecida e respeitada, e então tratava-o cheio de atenções e cuidado. O inspecionado só lhe dizia: “Caro colega, por favor inspecione tudo, o mais fundo que puder.”
Como sempre a inspeção não deu nada.
Por sorte, um dos amigos que volta e meia apareciam no café, general, depois do “infantil golpe” que em 1961 “pensou” afastar Salazar, foi nomeado Ministro do Exército. Sabendo exatamente da perseguição que faziam ao seu conhecido juiz, assim que entrou no Ministério, pediu o processo. Assinou-o, mandou arquivar e telefona ao amigo:
- O seu problema está resolvido. Mas não pense mais no Tribunal Militar. Eles não o querem lá!
Nunca permitiram que passasse a juiz da Relação, desembargador. Sempre que essa hipótese surgia, criavam uma inspeção ao seu trabalho, que acabava dizendo que eram um “bom juiz e muito inteligente” mas como demoravam as inspeções, entretanto a vaga havia sido preenchida. E assim o torpedearam toda a vida.
Amigo que era, e disso fui testemunha, de um dos mais influentes advogados de Portugal, o dr. Acácio de Gouveia, que por diversas vezes assisti no seu escritório a consultar o seu amigo juiz, eu insistia com o meu sogro para que mandasse a magistratura pró diabo e se juntasse ao dr. Acácio de Gouveia, que muito gostaria de o ter ao lado. Livrava-se da intrigalhada pidesca, e teria, em poucos anos, ganho “n” vezes o que ganhava (mal) como juiz. Respondia-me sempre:
- Eu ainda lhes vou mostrar quem está certo!
- Lamento, mas ao Salazar e à PIDE ninguém mostra nada.
Em 1958, como auditor do Tribunal Militar vai a Angola inspecionar os presídios militares.
À chegada a Luanda foi recebido pelo governador interino, o Dr. Luis de Vasconcellos, colegas e amigos dos tempos da Universidade em Coimbra, que o recebe com ar cerimonioso e estas brilhantes palavras:
- Luis de Vasconcellos, uterinamente governador desta Província! (o Governador, Coronel Horácio de Sá Viana Revelo estava em Portugal)
Este Dr. Luis de Vasconcellos era uma figura. Um gozador bem disposto. Uma das histórias que ele contava era sobre a família Sousa Machado. Três irmãos: um Sousa Machado, rico, investidor, com muita coisa em Angola, outro Machado de Sousa e um terceiro, Inspetor Superior Ultramarino, Sousa Santos.
Ele que conhecia bem os três, quando um dia lhe perguntaram o porque dos nomes, ele logo resolvei a charada:
- Sousa Machado estava o pai por cima e a mãe por baixo; Machado de Sousa estava a mãe por cima, e Sousa Santos... parece que o pai não estava!”
Isto provocou uma cómica celeuma lá naquelas terras africanas!
Chegou o casal a Luanda pouco antes de nascer o seu terceiro neto, o que foi uma ótima visita à família. (A sogra ajudou, na mesma ocasião uma nossa querida amiga a pôr neste mundo o atual e muito considerado Embaixador de Portugal em Washington Domingos Fezas Vital!)
Numa daquelas agradáveis tardes de Luanda, depois de um passeio de carro, normalmente indo até à Ilha, ao voltarmos para casa, eu avisto, a porta de sua casa, no passeio, falando com alguém, o grande Jorge Vieira que terá sido o maior jogador de futebol de todos os tempos do Sporting, a quem a companhia das cervejas em Portugal tinha arranjado um lugar de inspetor na Cuca em Luanda onde eu estava a trabalhar. Eu sabia que ele tinha sido o capitão da equipa que enfrentou a Académica em 1923, quando o nosso estudante de direito foi também o seu capitão. E disse ao sogro:
- Sabe quem ali está ? O Jorge Vieira, do Sporting.
- Oh! Co’a breca. Pára aí quero falar com ele.
O encontro entre os dois que não se viam desde essa data foi uma festa. Um abraço que esperou tantos anos! Tive que os deixar, levar a família a casa e depois levar os dois campeões para uma cervejaria onde, como grandes e velhos amigos, ficaram horas, tal crianças, animadíssimos, a recordarem o que se passara há mais de 35 anos.
As suas inspeções incluíam duas cidades na linha de Malange: ex Salazar, hoje Dalatando e Malange. Às ordens do sr. dr. Juiz foi colocada uma vagoneta na linha do Caminho de Ferro de Malange e como assistente um capitão de que não lembro mais o nome. Também fui nesse brinquedo e ainda pedi que levássemos de carona o meu querido amigo Xico Manolete (ver Amigos – 1). Foi um passeio ótimo, parámos para visitar as Quedos ex Duque de Bragança, hoje Quedas de Calandula, uma das belezas de Angola

O capitão, o nosso juiz e o Xico Manolete (foi aqui que morreu o bichicnho!)

e no regresso ouvimos um barulho estranho, uma pancada na vagoneta. Parámos para ver o que passava e uma Civeta... tinha se suicidado! Atravessou na hora errada. Coitado do bicho que era bem bonito.


Não quis, por teimosia deixar a magistratura. Quando se aposentou entristeceu, e assim viveu, mal, os seus últimos anos, quem teve uma vida agitadíssima, física e intelectualmente, homenageado, admirado, citado.
Depois da nojenta revolução dos cravos sentiu que poderia finalmente ir votar. Não deixaram. Porque quarenta anos antes tinha sido Governador Civil da Horta. Tinha chegado a democracia... depois da ditadura!
Quando houve aquela mentira do Humberto Delgado, o nosso juiz que o tinha conhecido deu-lhe um pequeno conselho:
- Não se meta com o Salazar. Ele tem meios para derrubar quem o enfrenta!
Nem o General Humberto Delgado, nem o nosso juiz mais tarde seguiram tão sábio conselho!
Merece uma biografia, a sério. Tem muita coisa, muita história, que se pode contar sobre quem foi o meu sogro, o jovem Augustinho, o Dr. Dom Augusto Paes de Almeida e Silva (1902-1976).


O “juje”            e      a “juja”


10/01/2019