sábado, 10 de novembro de 2018




Em todas as famílias há uns tios ou primos de quem mais gostamos, outros indiferentes e alguns até que ficaram na memória como pouco mais do que esquecidos. Uma mistura de bem e menos bem!
Dos três de hoje vou começar pelo único que me é consanguíneo, os outros, aderentes, mas imensamente estimáveis e saudosos, também.
Primo direito, nove anos mais velho do que eu, a partir de certa altura foi até o meu encarregado de educação “oficial”! Foi ele chamado ao Liceu, quando me puseram fora! Filho da irmã mais velha de meu pai, e minha madrinha. Engenheiro civil, sempre com uma graça que fazia com que todos à sua volta se fartassem de rir, e tinha na irmã, única, a sua principal claque!
Os almoços de domingo eram, até ao fim dos anos 40, em casa do nosso avô, uma longa mesa com 19 lugares, em que a conversa fluía de tal forma animada e confusa, que um dia eu até pedi para falarem só 18 de cada vez! Alguém tinha que ouvir. Eram opiniões sobre futebol, em que as tias que nada sabiam do assunto faziam infindáveis perguntas, 99% dos presentes eram salazaristas, mas, como quem não quer nada, este primo lançava umas “confusões políticas” que punha tudo a discutir as ações do governo. As senhoras aí não se calavam, elogiando o homem que tinha salvo o país da bancarrota, que tinha construído casas para pobres, que o país vivia em paz, tudo isto dito com o calor que alterava até a temperatura do inverno, mesmo havendo em vários lugares da casa aqueles belíssimos e eficientes aquecedores, esmaltados, de querosene.
Até hoje eu não consigo entender como o meu avô, já passados os oitenta, conseguia comer tranquilo no meio daquele barulho, e ele até comia bem sem dispensar o seu copo do bom Ramisco. Sabia bem de vinhos! A avó, uma jóia que o avô encontrou no Brasil enquanto por aqui esteve entre 1877 e 1899, uma senhora maravilhosa, sempre sorrindo, por fim já muito surda, assistia àquelas discussões com um lindo sorriso, que a todos encantava. Era um amor de pessoa.
Este primo seguiu bem a sua vida professional e, quando do famigerado vintecincobarraquatro era um dos principais administradores da CUF no Barreiro, a maior empresa, a maior zona industrial, de toda a península Ibérica, reduto tradicional e complicado do comunismo. Bom trabalhador, alegre, simpático com os que o rodeavam, quando a esquerda caviar tomou conta do país, prendeu os donos desse grupo, a família Mello, e foi atrás de praticamente todos os seus diretores.
A perseguição foi feroz. Queriam julgá-lo em praça pública, repetindo o que tinha acabado há quase duzentos anos: os infames, vergonhosos e de triste memória tribunais da Inquisição.
Teve, como muitos, de fugir a salto para Espanha, e daí depois vir para o Brasil, Rio de Janeiro, onde voltou a trabalhar com os mesmos patrões, que apesar de terem sido espoliados das empresas em Portugal, tinham alguma coisa no Brasil.
Triste, porque no meio de toda esta calamidade a mulher o abandonou, e veio só com um filho, deixando os outros seis em Portugal.
Curiosamente, quando estudava um projeto de engenharia, engenharia pesada, foi ao sindicato dos engenheiros conversar sobre o assunto. Era presidente do sindicato o engenheiro Jorge de La Rocque. Como eu sou o único da família que sempre se interessou por saber dos antepassados, telefona-me a contar o encontro, onde concluíram que eram parentes, mas “o como” é que não conseguiram deslindar.
Acabei desvendando o “mistério” e até hoje mantenho um belo contato com o filho do Jorge de La Rocque, Ivan.
O meu primo, como irmão mais velho, não resistiu a tanto problema que a revolução em Portugal lhe criou. Passou a viver triste, quem sempre fora duma contagiante alegria, e a maldita doença que surge quando a vida perde a força, levou-o muito depressa, com 55 anos.
Chamou-se José Francisco Gomes de Amorim Guimarães Serôdio (Sabrosa), que desde novo os amigos mais chegados o chamavam de Meco, e ainda hoje sinto muita a sua falta.


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Cunhado deste, casado com sua irmã, quase treze anos mais velho do que eu, um bom 1,90 de altura e largo arcabouço, durante os primeiros anos demo-nos pouco, até porque ele, de família com bastantes haveres, foi trabalhar para fora de Lisboa, eu fui estudar em Évora e não tardou que depois me fosse para Angola.
Uma das empresas da sua família, tinha alguns negócios com Angola, que não cheguei a saber o que seria, porque nem me interessava.
Aí por 1960 teve que se deslocar a Luanda, tinham lá uns dinheiros a receber, o que parece estava difícil. A sogra, minha tia e madrinha, disse-lhe que não deixasse de me ir visitar, saber como estávamos, etc.
E aparece lá em casa perto da hora do almoço, só a minha mulher em casa, ainda no andar de cima providenciando o arrumo dos quartos, nosso e já de quatro filhos. A porta da rua sempre aberta (bons tempos!), entrou, chamou por ela que quando o viu pensou ser uma “miragem”.
Durante o resto da vida sempre gostava de lembrar a cara de espanto que a minha mulher fez quando o viu entrar em casa! Muita alegria, telefona-me para a Cuca, e eu corro para casa. Almoçámos, muita conversa, o visitante, sempre apressado nos seus negócios, chegado na véspera, diz-me que voltava já nessa noite para Lisboa.
- Não deves ir. Ainda não viste nada.
Não deixei. Disse-lhe que ele só estando dois dias em Luanda não teria estado em África, o que era um contrassenso e um desperdício!
Para o dia seguinte, fim de semana, eu tinha-me inscrito para entrar num rali à Cela, hoje Waku Kungo, a uns 400 quilómetros de Luanda.
- Eu nunca entrei num rali, nem gosto de corridas.
- Não vamos correr nada, nem o meu carro, um humilde Simca Aronde 1300 cc, é para isso. O rali é mais de controles de regularidade, e além disso vais ver um pouco do interior de África, que é o que tem interesse.
Relutantemente acedeu, alterou a ida para Lisboa e no dia seguinte lá fomos África adentro! Foi gostando, estava encantado. No regresso a Luanda quebrou-se uma peça dentro da caixa de velocidades (caixa de marchas) o  que impedia de as trocar, o que nos deu uma canseira miserável. O caminho, estrada ainda de terra, não era todo plano, havia que atravessar uns riachos, mesmo secos, o que obrigava a abrir a tal caixa de marchas, engatar à mão a 1ª, atravessar aquela “vala”, voltar a parar, desengatar a 1ª e engatar a 3ª, prosseguir devagar sem esforçar o motor (o carro tinha quatro marchas), e assim o tempo foi passando e fez-se noite.
Perto da meia noite surge a placa duma empresa de construções que, perto da estrada, tinha montado um grande acampamento, com oficinas e tudo o necessário porque estavam a construir uma ponte. O curioso é que o diretor geral dessa empresa era irmão deste “aventureiro”!
Parámos o carro junto à entrada do complexo, todo vedado com tela alta e decidimos que passaríamos ali a noite e de manhã os mecânicos nos ajudariam a consertar o carro.
O visitante, grande, que não conseguia posição confortável para passar a noite dentro do carro, ainda me diz que não consegue dormir sem primeiro satisfazer as suas necessidades.
- Não há qualquer problema. Tens à tua vista uma imensidão para te desobrigares disso!
Encontrámos uns pedaços de papel dentro do carro e lá foi ele. Voltou, aliviado. Tentámos dormir, e assim que o dia começou a clarear já os trabalhadores da empresa apareceram para ver o que estava um carro a fazer ali encostado ao portão.
Foi fácil explicar, mais ainda quando souberam que um de nós era irmão do diretor geral. Chamaram-nos para tomar o mata bicho com eles, enquanto os mecânicos se ocuparam a resolver o problema do Simca, o que fizeram com magnífica rapidez e qualidade.
Durante aquele simpático convívio o visitante contou que de noite teve de “ir ao mato” resolver os problemas intestinais.
- No mato? À noite? Teve muita sorte!
- !?!?!?
- Há uns 15 dias um dos nossos funcionários, capataz dum grupo de trabalhadores angolanos, que durante a noite cavavam terra necessária para se continuar o trabalho de manhã. O sujeito deixava os cavadores sozinhos, disfarçava e ia para trás duma árvore dormir. Nessa manhã os homens estranharam que ele não os viesse chamar, porque o horário deles terminara, mas o capataz... nada. Chamaram, nada. Saíram à procura e acabaram por achar um corpo mutilado. Pouco mais sobrara do que a cabeça e uns farrapos. Um leão fizera a festa.
Quando isto ouviu, o nosso visitante português empalideceu. Podia ter sido comido por um leão!
Brincando com esta história, real, todos acabamos rindo, menos o atemorizado estreante de África!
Sempre que nos encontrámos, até ao fim da sua vida, lá vinha à baila a história do leão! Conheceu África dum modo bem especial, o que não o impediu de ter-se quase apaixonado pelo magnífico interior daquele continente.
Depois do tal 25/4, fez alguns investimentos no Brasil, onde morou poucos anos, andando sempre cá e lá. Quando o lula foi eleito presidente, escreveu-me temeroso a pedir a minha opinião. O que achas que se vai passar com um governo de esquerda?
Eu sempre tive uma pequena bolinha de cristal, daquelas mixurucas que se iluminam com uma pilha AAA, e resumidamente lhe mandei dizer:
O sujeito já disse que teve uma herança maldita, que vai aumentar a renda dos pobres, que vai fazer isto mais aquilo, etc., aquele grasnar de quem promete e ... mas que ele não podia deixar de obedecer aos capitais, mundiais, porque, primeiro eles são grandes credores do Brasil, e porque ninguém vive sem isso. Daí que não estou muito preocupado.
(Ainda tenho comigo cópia dessa carta que lhe mandei)
Creio que o sosseguei, mas quase na mesma ocasião escrevei ao dito presidente, par lhe dizer que não se esquecesse do principal: para distribuir renda, primeiro tem que gerar renda, o que significa apoiar a indústria, comércio e agricultura. (Parece que ele esqueceu!)
Quando ele casou eu tinha 14 anos, era um moleque atrevido. Depois da nossa aventura africana e de algum convívio mais no Brasil, a nossa amizade sempre foi crescendo.
Até porque a sua mulher, minha prima, era considerada também, não só por mim, mas também por todos os meus irmãos, como a nossa irmã mais velha. Quando vou a Lisboa e passo em frente da casa onde moravam, o meu coração se aperta.
O visitante chamou-se Rodrigo Cardoso d’Orey. Um dia tentei fazer o seu retrato.

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Pai do primeiro e sogro do segundo, o meu tio, e padrinho, era uma pessoa, como hoje se diria, completamente zen. Tranquilo, animadíssimo quando bebia um copo a mais, nas festas de família, herdou bem do pai e parece que ainda mais da mãe, uma escocesa que, pelo que chegou aos nossos dias, era filha duma milionária... brava.
Tão brava que, teve duas filhas e quando morreu deixou no testamento tudo quanto tinha para uma e para a outra... uma corda para ela se enforcar!
Os herdeiros entraram na justiça para que o testamento fosse anulado. Não demorou para verem que os advogados iam comer tudo e decidiram, prova de inteligência, dividir o espólio irmãmente! Até porque as irmãs se davam bem e os concunhados também.
De qualquer modo o que sobrou deu até para os netos não terem preocupações na vida, aplicando o capital de onde lhe viesse bom rendimento, o que significa que este tio não precisava trabalhar.
Quando se encantou pela minha tia, irmã de meu pai, foi, educadamente, pedir a mão da gentil menina ao meu avô, que era um homem correto... e duro.
-A minha filha não casa com quem não trabalha.
Não fez qualquer diferença. O noivo pediu a um amigo que lhe desse um emprego qualquer, o que não foi difícil de obter e deste modo conseguiu a paternal autorização.
Casou e deixou o emprego!
Era um artista. Tinha em casa um autêntico museu onde se ocupava retocando cerâmicas, pintando aquarelas, e consertava o que fosse preciso.
Sempre calmo e bem disposto, não me lembro de o ver mal encarado. A não ser uma única vez: quando fui expulso do liceu estava a morar lá em casa dos tios, enquanto a minha mãe, com tremenda dificuldade, procurava onde se instalar, com o pouco dinheiro com que ficara quando enviuvou.
O meu primo foi chamado ao liceu para que o reitor explicasse porque me punha na rua, e levou-me a casa. Quem abriu a porta foi o meu tio, já a par da situação, e mal passei a porta enfiou-me uma boa chapada na cara! Malandro, eu, tive que fingir que chorava.
Quando, muitos anos depois eu contava esta história à minha prima ela não queria acreditar.
- Não é possível. O nosso pai nunca nos tocou.
Ao que eu retorquia:
-  Pois eu acho também que ele fez muito mal. Eu andava completamente fora dos carris. Em vez duma chapada ele devia ter-me dado duas!
Nunca deixei de o respeitar e ter por ele muita ternura e simpatia, até porque essa chapada me fez muito bem.
Lembro-o sempre. Tenho na minha sala uma fotografia dele. Era uma ótima pessoa.
Esse querido tio chamou-se Frederico Davidson de Guimarães Serôdio (Sabrosa). Foi embora muito cedo; tinha só 51 anos. Não tive tempo para lhe mostrar o quanto bem me fez.

9 nov. 18

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