quinta-feira, 18 de outubro de 2018



Amigos – 12


Creio que hoje vou contar algumas coisas só de um amigo. Tivemos muita coisa que nos uniu.
Natural de Moçamedes, Cabeça de Pungo, como por lá chamavam aos naturais daquela terra maravilhosa, o pai faleceu e a família, mãe e quatro filhos – três meninas – foram para Portugal.
Em 1946 fui estudar para Évora e ali que nos encontrámos. Da mesma idade, todos nos dávamos muito bem, mas não esqueço um dia, estava eu com um forte resfriado, ou gripe, numa cama da enfermaria, e ele, que havia recebido de casa algumas guloseimas – o que era habitual entre todos os estudantes – foi ver-me e ofereceu-me uma embalagem de goiabada, a única que tinha recebido, porque eu “estava doente”! E a nossa amizade ficou fortaleceu.
Atitudes impossíveis de esquecer, apesar de já terem passado mais de setenta anos!
Para tentar se livrar dos trotes que habitualmente se faziam aos caloiros, afirmava que tinha vindo da Escola Agrícola de Xivinguiro, em Sá da Bandeira, Angola. Nunca se apurou se era verdade, mas ele lá se foi safando e ficou conhecido como “Xivinguiro”!
Passámos cinco anos juntos, a estudar e a tocar guitarra (que eu, imodesto, lhe ensinei) e nas férias, em Lisboa, onde morava, sempre nos encontrávamos. Saíamos para ir ouvir uns fados, no verão com uns mirréis no bolso íamos à Feira Popular, ou ouvir uns fados e beber um copo na velha e magnífica Adega da Lucília, no Bairro Alto, ele muita vez almoçava em nossa casa, e como costumava chegar bem cedo, para me obrigar a sair da cama e irmos rondar a cidade, as minhas irmãs, que andavam ainda pela casa sem os fundamentais cuidados dos arranjos femininos, chamavam-lhe “O Despertador”!
A família vivia com pouco dinheiro, mas no bolso dele sempre havia alguns escudos, poucos. Nos meus, pouco mais do que ar! De modo que os nossos passeios por Lisboa, regra geral eram feitos a pé!

O “galã” aí por 1948 (com a minha guitarra!)

Acabámos o curso, ele começou a trabalhar na função pública e percorria boa parte do país.
Eu entrei na empresa de que ainda fazia parte, para trabalhar com máquinas agrícolas, e um dia recebi a visita de um senhor dinamarquês que procurava um representante para equipamentos do seu país, em que se incluíam diversos aparelhos de laboratório para exame de sementes. A empresa, com um diretor menino rico, mas absolutamente incapaz, torceu o nariz, eu achei que tinha interesse e comprometi-me a cuidar do assunto. Esse senhor, Erling Foss, muito mais velho do que eu, tornou-se um amigo que até me foi depois visitar em Angola.
Um dia o avô da minha futura (e atual) mulher deixou, em Coimbra, a alma ir embora, e aí vou eu, com sogros, noiva e cunhada, acompanhá-los. Lá estava o meu colega. Alegria no encontro, fomos jantar juntos quando lhe propus que, nos seus contatos pelo país, começasse a vender os aparelhos dinamarqueses. Dividíamos o lucro. Começou assim um pequeno negócio que nos ajudava de maneira simpática no fim de cada mês.
O restaurante era pequeno, numa mesa quase ao lado estavam duas turistas inglesas. O “Cabeça de Pungo”, rabo de saias incurável, como vamos ver, meteu logo conversa, dizendo-se meu apoderado - palavra espanhola para os empresários de toureios – e que eu era um grande matador! Abre a carteira e lá tinha duas ou três fotografias minhas a tourear! As inglesas ficaram entusiasmadíssimas. Nunca tinham visto um torero! Eu não podia rir para não desmascarar aquela “cantada”. Rimos todos, conversámos e no dia seguinte não o vi mais. Tinha ido para a praia com as misses, e certamente não se espraiaram só junto ao mar! Contou-me isso uns dias depois!
Um dia disse-me que ia ter uma festa em casa dum ministro, que tinha uma filha toda gatinha.
- Se eu tinha sido convidado? - Não. - Nem eu, mas vou. - Como, sem convite?
Dia seguinte contou-me a peripécia. Vestiu o smoking, todo elegante, entrou pela porta de serviço por entravam os criados que iam servir a ceia, passou ao salão e misturou-se com os convidados.
Cara de pau, sempre metia conversa, e era bom de papo, esteve lá muito bem a noite toda.
- Bela festa. E tem mais! Pedi namoro à filha do ministro, que gostou de mim, apresentou-me os pais, e agora posso lá ir quando quiser!

1950 – Na Adega da Lucília (ou “O FAIA”?)
Lucília do Carmo, Henrique, eu e de costas o compadre dos dois: Ruy Fragoso

Namorico que durou pouco. Aí em 1956 casou, com outra (!) teve um filho, mas o casamento também não aguentou muito.
O nosso negócio continuava, sem depender de conquistas amorosas, e quando decidi voltar para Angola, ofereci-lhe o negócio todo, apresentando-o ao amigo dinamarquês, que nos mandava tudo ou em consignação ou a pagar quando tivéssemos o dinheiro, como pessoa séria e trabalhadora.
Passa algum tempo uma australiana surge em Portugal onde foi passar uns dias. Conhecê-la e... o resto, foi rápido. A australiana engravida, regressa a casa, e o nosso amigo, arruma os negócios, deixa Portugal e segue-a.
Como qualquer não inglês foi mal recebido pela família da nova parceira. Desembaraçado, decide pôr-se em contato com uma série de empresas portuguesas para as representar naquele país, ao que logo foi atendido. Louças, tapetes, cortiças, vinhos, móveis, etc., e o negócio não tardou a florescer. A família já o olhava com outros olhos (de inveja) e o terceiro filho – depois do português dois australianos – chegou.
Quando rebenta a famigerada revolução dos cravos eu sabia que tinha que sair de Angola. Ir para onde com tamanha carga familiar? Só duas hipóteses me atraíam: Canadá e Austrália.
Entrei em contato com o velho amigo e sócio que me diz:
- Vem para aqui. Eu estou bem, tenho duas lojas de artigos portugueses. 50% do que tenho passo para ti.
Foi um choque. Era uma amizade antiga, verdadeira, estruturada em cima de confiança e brincadeiras, e decidi encarar essa perspectiva. Mandei a família para Portugal e meti-me a caminho de Melbourne, preparar para lá receber a família, para o que tracei o caminho via Brasil e Chile. Antes de sair de Luanda e depois durante todo o caminho fui tentando falar-lhe, mas nenhum dos números de telefone que tinha respondiam. Fiquei meio perdido, o tempo passou e vi-me obrigado a ficar no Brasil.
Tempos depois soube que tinha estado ausente quase três meses em viagem de férias e negócios na Europa, e foi assim que perdi a ida para um país sensacional!
Durante muito tempo soube unicamente que vivia em Melbourne e pouco mais.
Muitos anos depois, aí por 1990, Agosto, lembrei-me que era o dia do seu aniversário. Não tinha já o seu número do telefone, pedi à Embratel, dando o nome da pessoa e a cidade onde vivia e algumas horas depois recebi a informação correta.
Na ocasião nem me lembrei que haveria quase meio dia de diferença horária e assim mesmo chamei.
Atendeu numa voz feminina, ensonada. Lá era uma e meia da madrugada!
- Who is calling so late?
- A very old friend, from Brasil.
Perguntei pelo menino dos anos. Dormia. Disse-lhe que o acordasse que eu estava a falar de muito longe.
- Wake up. Is a friend of yours.
Voz rouca, de sono:
- Quem fala?
- Vou já dizer quem fala porque estar com adivinhas custa caro! Sou o Chico Amorim.
- Tu estás na Austrália???
Infelizmente não estava. Pouco falámos, mas anotámos o endereço de cada um e voltámos a trocar correspondência, moderna, por fax. Uma das cartas repetia que estava bem, casado pela terceira vez, com um muito jovem casal de filhinhos, e dizia que mandasse para lá um dos meus filhos para lá trabalhar com ele. Nem um se atreveu, o que eu considerei uma babaquice!
Só a Joana, sempre voluntariosa, achou a ideia interessante, tratou do passaporte e visto e lá foi, garantido alojamento em casa dele, alimentação e algum argent de poche¸ como baby sitter dos dois últimos filhos, que tinham quatro e dois anos. Passou lá seis meses, adorou, mas não quis ficar!
O conquistador que se gabava de continuar a fazer filhos quando do meu lado eu tinha já dois netos, prometeu que numa próxima ida à Europa passaria pelo Brasil. Este terceiro casamento também não tardou a findar!
Nunca mais nos vimos e pouco depois as comunicações foram interrompidas.
Só uns anos depois soubemos que um câncer de estômago o tinha levado.
Meu muito querido amigo Henrique Godinho, como um irmão, sempre pronto a ajudar, o “Xivinguiro”, de nome todo Henrique Manuel de Mendonça Torres Pereira Godinho, que lembro sempre com muita amizade e saudade.

16/10/2018

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