Amigos – 12
Creio
que hoje vou contar algumas coisas só de um amigo. Tivemos muita coisa que nos
uniu.
Natural
de Moçamedes, Cabeça de Pungo, como
por lá chamavam aos naturais daquela terra maravilhosa, o pai faleceu e a
família, mãe e quatro filhos – três meninas – foram para Portugal.
Em 1946
fui estudar para Évora e ali que nos encontrámos. Da mesma idade, todos nos
dávamos muito bem, mas não esqueço um dia, estava eu com um forte resfriado, ou
gripe, numa cama da enfermaria, e ele, que havia recebido de casa algumas guloseimas
– o que era habitual entre todos os estudantes – foi ver-me e ofereceu-me uma
embalagem de goiabada, a única que tinha recebido, porque eu “estava doente”! E
a nossa amizade ficou fortaleceu.
Atitudes
impossíveis de esquecer, apesar de já terem passado mais de setenta anos!
Para
tentar se livrar dos trotes que
habitualmente se faziam aos caloiros, afirmava que tinha vindo da Escola
Agrícola de Xivinguiro, em Sá da Bandeira, Angola. Nunca se apurou se era
verdade, mas ele lá se foi safando e ficou conhecido como “Xivinguiro”!
Passámos
cinco anos juntos, a estudar e a tocar guitarra (que eu, imodesto, lhe ensinei)
e nas férias, em Lisboa, onde morava, sempre nos encontrávamos. Saíamos para ir
ouvir uns fados, no verão com uns mirréis no bolso íamos à Feira Popular, ou ouvir
uns fados e beber um copo na velha e magnífica Adega da Lucília, no Bairro Alto,
ele muita vez almoçava em nossa casa, e como costumava chegar bem cedo, para me
obrigar a sair da cama e irmos rondar a cidade, as minhas irmãs, que andavam
ainda pela casa sem os fundamentais cuidados dos arranjos femininos,
chamavam-lhe “O Despertador”!
A
família vivia com pouco dinheiro, mas no bolso dele sempre havia alguns
escudos, poucos. Nos meus, pouco mais do que ar! De modo que os nossos passeios
por Lisboa, regra geral eram feitos a pé!
O “galã” aí por 1948 (com a minha guitarra!)
Acabámos
o curso, ele começou a trabalhar na função pública e percorria boa parte do
país.
Eu
entrei na empresa de que ainda fazia parte, para trabalhar com máquinas
agrícolas, e um dia recebi a visita de um senhor dinamarquês que procurava um
representante para equipamentos do seu país, em que se incluíam diversos
aparelhos de laboratório para exame de sementes. A empresa, com um diretor
menino rico, mas absolutamente incapaz, torceu o nariz, eu achei que tinha
interesse e comprometi-me a cuidar do assunto. Esse senhor, Erling Foss, muito
mais velho do que eu, tornou-se um amigo que até me foi depois visitar em
Angola.
Um dia o
avô da minha futura (e atual) mulher deixou, em Coimbra, a alma ir embora, e aí
vou eu, com sogros, noiva e cunhada, acompanhá-los. Lá estava o meu colega.
Alegria no encontro, fomos jantar juntos quando lhe propus que, nos seus
contatos pelo país, começasse a vender os aparelhos dinamarqueses. Dividíamos o
lucro. Começou assim um pequeno negócio que nos ajudava de maneira simpática no
fim de cada mês.
O
restaurante era pequeno, numa mesa quase ao lado estavam duas turistas
inglesas. O “Cabeça de Pungo”, rabo
de saias incurável, como vamos ver, meteu logo conversa, dizendo-se meu apoderado -
palavra espanhola para os empresários de toureios – e que eu era um grande matador! Abre a carteira e lá tinha duas
ou três fotografias minhas a tourear! As inglesas ficaram entusiasmadíssimas.
Nunca tinham visto um torero! Eu não
podia rir para não desmascarar aquela “cantada”. Rimos todos, conversámos e no
dia seguinte não o vi mais. Tinha ido para a praia com as misses, e certamente não se espraiaram só junto ao mar! Contou-me
isso uns dias depois!
Um dia
disse-me que ia ter uma festa em casa dum ministro, que tinha uma filha toda
gatinha.
- Se eu
tinha sido convidado? - Não. - Nem eu, mas vou. - Como, sem convite?
Dia
seguinte contou-me a peripécia. Vestiu o smoking, todo elegante, entrou pela
porta de serviço por entravam os criados que iam servir a ceia, passou ao salão
e misturou-se com os convidados.
Cara de
pau, sempre metia conversa, e era bom de papo, esteve lá muito bem a noite
toda.
- Bela
festa. E tem mais! Pedi namoro à filha do ministro, que gostou de mim, apresentou-me
os pais, e agora posso lá ir quando quiser!
1950 – Na Adega da Lucília (ou “O FAIA”?)
Lucília do Carmo, Henrique, eu e de costas o compadre
dos dois: Ruy Fragoso
Namorico
que durou pouco. Aí em 1956 casou, com outra (!) teve um filho, mas o casamento
também não aguentou muito.
O nosso
negócio continuava, sem depender de conquistas amorosas, e quando decidi voltar
para Angola, ofereci-lhe o negócio todo, apresentando-o ao amigo dinamarquês,
que nos mandava tudo ou em consignação ou a pagar quando tivéssemos o dinheiro,
como pessoa séria e trabalhadora.
Passa
algum tempo uma australiana surge em Portugal onde foi passar uns dias.
Conhecê-la e... o resto, foi rápido. A australiana engravida, regressa a casa,
e o nosso amigo, arruma os negócios, deixa Portugal e segue-a.
Como
qualquer não inglês foi mal recebido pela família da nova parceira.
Desembaraçado, decide pôr-se em contato com uma série de empresas portuguesas
para as representar naquele país, ao que logo foi atendido. Louças, tapetes,
cortiças, vinhos, móveis, etc., e o negócio não tardou a florescer. A família
já o olhava com outros olhos (de inveja) e o terceiro filho – depois do
português dois australianos – chegou.
Quando
rebenta a famigerada revolução dos cravos
eu sabia que tinha que sair de Angola. Ir para onde com tamanha carga familiar?
Só duas hipóteses me atraíam: Canadá e Austrália.
Entrei
em contato com o velho amigo e sócio que me diz:
- Vem
para aqui. Eu estou bem, tenho duas lojas de artigos portugueses. 50% do que
tenho passo para ti.
Foi um
choque. Era uma amizade antiga, verdadeira, estruturada em cima de confiança e
brincadeiras, e decidi encarar essa perspectiva. Mandei a família para Portugal
e meti-me a caminho de Melbourne, preparar para lá receber a família, para o
que tracei o caminho via Brasil e Chile. Antes de sair de Luanda e depois
durante todo o caminho fui tentando falar-lhe, mas nenhum dos números de
telefone que tinha respondiam. Fiquei meio perdido, o tempo passou e vi-me
obrigado a ficar no Brasil.
Tempos
depois soube que tinha estado ausente quase três meses em viagem de férias e
negócios na Europa, e foi assim que perdi a ida para um país sensacional!
Durante muito
tempo soube unicamente que vivia em Melbourne e pouco mais.
Muitos
anos depois, aí por 1990, Agosto, lembrei-me que era o dia do seu aniversário.
Não tinha já o seu número do telefone, pedi à Embratel, dando o nome da pessoa
e a cidade onde vivia e algumas horas depois recebi a informação correta.
Na
ocasião nem me lembrei que haveria quase meio dia de diferença horária e assim
mesmo chamei.
Atendeu
numa voz feminina, ensonada. Lá era uma e meia da madrugada!
- Who
is calling so late?
-
A very old friend, from Brasil.
Perguntei
pelo menino dos anos. Dormia.
Disse-lhe que o acordasse que eu estava a falar de muito longe.
- Wake up. Is a friend of yours.
Voz
rouca, de sono:
- Quem
fala?
- Vou já
dizer quem fala porque estar com adivinhas custa caro! Sou o Chico Amorim.
- Tu
estás na Austrália???
Infelizmente
não estava. Pouco falámos, mas anotámos o endereço de cada um e voltámos a
trocar correspondência, moderna, por fax. Uma das cartas repetia que estava
bem, casado pela terceira vez, com um muito jovem casal de filhinhos, e dizia
que mandasse para lá um dos meus filhos para lá trabalhar com ele. Nem um se
atreveu, o que eu considerei uma babaquice!
Só a
Joana, sempre voluntariosa, achou a ideia interessante, tratou do passaporte e
visto e lá foi, garantido alojamento em casa dele, alimentação e algum argent de poche¸ como baby sitter dos dois últimos filhos, que
tinham quatro e dois anos. Passou lá seis meses, adorou, mas não quis ficar!
O conquistador que se gabava de continuar
a fazer filhos quando do meu lado eu tinha já dois netos, prometeu que numa
próxima ida à Europa passaria pelo Brasil. Este terceiro casamento também não
tardou a findar!
Nunca
mais nos vimos e pouco depois as comunicações foram interrompidas.
Só uns
anos depois soubemos que um câncer de estômago o tinha levado.
Meu
muito querido amigo Henrique Godinho,
como um irmão, sempre pronto a ajudar, o “Xivinguiro”, de nome todo Henrique
Manuel de Mendonça Torres Pereira Godinho, que lembro sempre com muita amizade
e saudade.
16/10/2018
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