Amigos – 14
Afinal o que é um amigo? Tem uma definição magnífica
de Vinícius de Moraes, muito divulgada, e uma simples que diz que “o amigo é quem está contigo, quer estejas
rico ou pobre. Mais ainda se estiveres pobre ou doente”.
Estes de quem vou lembrar hoje, teria, um, talvez mais
de cento e cinqüenta anos; o outro cento e vinte e um.
Um com a idade do meu avô, outro do meu pai.
Teria eu poucos anos, muito poucos, aí três ou quatro
e, quando chegava o verão, uma alergia extremamente incómoda, atacava-me as
curvas dos braços e pernas, o que me dava uma tremenda coceira, que acabavam
feridas. Para evitar que me coçasse ligavam-me as mãos, formando uma espécie de
luvas, e o tratamento, era com um líquido pastoso (creio que uma mistura de
oxido de zinco, ácido bórico, enxofre coloidal e talco ???) com que me pincelavam com uma brocha de
pintar paredes. Punham-me nu em cima de uma mesa e vá de fazer a criança
sofrer! Ardia p’ra caramba!
Secava um pouco as feridas, mas só passava esta
maleita quando o verão chegava ao fim.
Os meus pais lá encontraram um médico, que na altura
teria talvez uns sessenta anos (isto é bem chutado, mas era bem mais velho do
que o meu pai) que passou a cuidar de mim.
Casado, pai de dois filhos já homens, independentes,
fora de casa, sem netos, ao fim de algum tempo, mesmo sem me ir visitar como
médico, passava lá em casa e pedia aos meus pais que o deixassem levar-me para
dormir lá em casa dele. Lá ia, ele e a mulher, de quem não me lembro,
tratavam-me como neto, cheio de atenções
e mimos, e no dia seguinte quando saía para o consultório, deixava-me em casa.
Numa dessas vezes parou no caminho, numa loja de
brinquedos e comprou talvez um carrinho para me dar. Enquanto ele dentro da
loja fazia o pagamento, eu esperava na porta, onde havia um monte de outros
brinquedos, coisa pequena, mesmo à mão. Eu era o terceiro filho, e achei que se
ele me dava um brinquedo eu poderia muito bem levar alguns mais para os meus
irmãos, e passei a mão em dois ou três, certamente com o ar de inocência que
essa idade permite, sem sequer os ter escondido.
Entrámos no carro, um belo e grande Renault, deixou-me
em casa e à tarde telefonou à minha mãe para perguntar quantos brinquedos eu
tinha levado.
-Três ou quatro. Porquê? –
O dono da loja disse que eu lhe devia um dinheiro, porque o menino tinha levado
mais uns brinquedos!
Quando me perguntaram eu respondi que peguei um para
cada irmão. Nada mais simples.
Como é evidente ninguém se zangou comigo, o médico
achou a maior graça e foi lá pagar a imensa dívida.
Quando uns bons anos depois fui ao Porto, talvez em
1950, a primeira pessoa que quis visitar foi o meu velho amigo e médico, desta
vez ao seu consultório na Avenida dos Aliados. Estava velhote e muito zangado
com a Renault, porque toda a sua vida só tivera carros desta marca e por último
um lindo Viva Sport, mas que já velho tivera que trocar.
Acontece que a Renault, com a guerra, só voltou a
fabricar automóveis em 1944, mas fazendo um carrinho minúsculo, aliás ótimo, o
4CV, que não servia para um senhor que teria talvez oitenta anos, e era um
homem alto. A Renault não o deixou comprar um carro de outra marca. Enquanto
não saiu o novo Fregate, só no fim de 1951, o representante do Porto pôs às
ordens dele um carro seu, grande e confortável.
Foi a última que o vi e depois nada mais soube deste
senhor, de quem até hoje, guardo na memória a sua simpatia e ternura.
Chamou-se Dr. Vasco
Nogueira de Oliveira, e acreditem ou não, ainda hoje me lembro onde ele
morava: na Estrada da Circunvalação, e nós na Rua Faria Guimarães!
Descanse em paz, querido amigo. Não tarda que nos
voltemos a encontrar!
E eu prometo que não vou “roubar” mais brinquedos.
Esta coisa de memórias de amigos é como quem come
pinhões, dumas coisas passa-se a outras.
Já em Lisboa, 1937, tínhamos uma empregada “ótima”, alta, desembaraçada, que se
chamava Conceição. Era ela que me pincelava, e eu chorava com a ardência do
tratamento. Estava ela um dia a torturar-me
quando a minha mãe entra no quarto e vê a sobredita a enfiar-me aquele imenso
pincel na boca quando eu chorava!
Mamãe não era para brincadeiras! Deu umas bem assentes
chapadas na besta e correu com ela porta fora!
A minha alergia de criança só passou, teria eu uns
catorze anos, e até lá em todos os verões era a mesma farra de me pincelarem.
Foi um médico em Sintra que sugeriu fazer um
“auto-sangue”: tirar da veia e introduzir intramuscular. Mas foi avisando: essa
alergia deve passar, mas outra vai aparecer. Apareceu: a febre dos fenos! Não
lembro quantas sessões fiz, acabou a coceira, mas até hoje, só em Portugal,
quando chega Maio e Junho, espirro que nem um bode. Nos trópicos...nada.
§ § § §
Este outro amigo, que nasceu em Copenhague em 1897, e
de quem já referi, muito de passagem no texto Amigos 11, conheci-o em situação professional, e de maneira
curiosa.
Apareceu-me um dia na firma Herold, onde eu
trabalhava, para apresentar uma série de máquinas agrícola, de pequeno porte e
uns quantos aparelhos para uso em laboratórios de controle de sementes e outras
agronomices, que me pareceram interessantes, e iriam preencher uma faixa de
equipamentos em falta em Portugal para o pequeno agricultor e para
laboratórios simples, que muito foram, depois, ajudar os técnicos espalhados
pelo país.
A história deste homem, bem alto e forte, na altura
nos sessenta anos, filho de um dos maiores engenheiros e empreendedores
dinamarqueses, sócio da maior empresa mundial de cimentos, e de engenharia é
muito interessante,
Sempre sorridente, bem disposto, alegre, disse-me que
não trabalhava na empresa que o pai deixara ao falecer, porque não entendia
nada daquilo e então “eles lhe pagavam
para ele não ir lá”! O irmão mais velho era o presidente do grupo.
Engenheiro civil, trabalhou com seu pai na FL Smidth
até este falecer em 1925, depois foi como autónomo para Paris. Durante a ocupação
alemã volta à Dinamarca envolve-se nos serviços de inteligência, e foi um
dos fundadores do Conselho de Liberdade da Dinamarca. Obrigado a fugir para a
Suécia ali atuou como enviado especial. No fim da guerra foi um dos elementos
de reconciliação com a Alemanha Ocidental.
Ficou famoso pela sua atuação na resistência e uma
placa simples, como devem ser as grandes homenagens, o recorda em cima da sua
campa.
Erling Foss – 1897 – 1982
MEDSTIFTER DANMARKE FRIHEDSRAD
Cofundador do Conselho de Liberdade da Dinamarca
Voltemos aos negócios.
O senhor tinha montado uma empresa
de exportação de produtos dinamarqueses, que vendia sem um centavo de lucro.
Mas viajava por todo o lado, como vendedor e, dos impostos a pagar, que eram
bem altos, deduzia todas as despesas da viagem com a firma! Inteligente.
Eu achei que tudo quanto me mostrara se adequava bem à
nossa área de trabalho, tanto mais que a Empresa Herold já estava com a corda
no pescoço, e apresentei o problema ao diretor, um menino rico que nunca
trabalhara, saía no meio da manhã para ir a casa trocar de gravata para almoçar
(verdade, verdadinha), a tarde aparecia de fato – terno – diferente, não sabia
nada de coisa alguma, nem fazia p. nenhuma, mas tinha um carrão sempre novo. Disse-me
com ar imbecil: Isso não vale nada. Não
nos vamos meter nessa.
Comprometido com o senhor a tratar do assunto com todo
o interesse, envergonhado, escrevi-lhe a contar do “desastre” na empresa. Ele,
tranquilo só me disse: Não se preocupe.
Faça o que entender.
Não tardou a aparecer uma consulta de preços para uma
boa quantidade de equipamento exatamente daquele tipo, para Angola, a
distribuir por regiões várias, para auxiliar no aumento de rendimento das
populações locais.
Decidi apresentar, individualmente, uma proposta, na
altura qualquer coisa como US$35.000. Há sessenta anos era uma grana boa! Ninguém
mais apareceu e eu ganhei a concorrência... sem concorrentes.
O meu amigo ficou eufórico lá na Dinamarca, e eu
aflito sem saber como lhe abrir o crédito, porque não tinha nem US$1! Este
problema acabou por se resolver de forma muito simples. Abri conta no Banco
Nacional Ultramarino, com 500$00 que o meu sogro me emprestou (e saquei logo a
seguir!), entreguei toda a documentação ao banco, incluindo o recibo para o comprador, e... vapt-vupt, tudo resolvido e eu com uma bela
maquia na minha conta!
Logo me interessei pelos outros equipamentos, mas como
estava “preso” a horário de trabalho foi com o meu colega e amigo Henrique
Godinho (ver Amigos – 11) que começámos a vender em Portugal uma série de
outros equipamentos.
Em 1961, quando andei pela Europa, pedi que me dessem
uns dias de férias e fui visitar o meu amigo em Copenhague, onde ficámos perto
de uma semana. Foi amabilíssimo.
Deu uma volta conosco pela cidade, em meados de Março nevava,
mostrou-me a estátua que fizeram em memória do pai, e convidou-nos depois para
jantar em sua casa, às seis e meia! Ainda lhe pedi para repetir o horário e ele
confirmou: 18h30. Eu nunca tinha jantado tão cedo, mas...
Casado de novo há pouco tempo (1958) um filhotinho que
devia estar para chegar, meia hora depois do jantar tinha acabado a conversa!
Mas ir deitar às sete da tarde?
Sabendo que eu trabalhava na Cuca, e sendo pessoa
muito influente no país perguntou-me se gostaria de visitar a Carlsberg e a sua
Fundação. Claro.
De manhã telefona-me e diz que estão à minha espera na
fábrica. Das oito da manhã ao meio dia, visitei, com muito gosto, tudo aquilo,
e aprendi mais algumas coisas.
À tarde perguntou-me se tinha sido bem recebido e se
me tinham convidado para almoçar. Bem recebido, sim, almoço não. Ficou
indignado. Telefona ao presidente da Tuborg a contar o “escândalo” da
Carlsberg! Um amigo meu, cervejeiro, vem
de Angola e não o convidam para almoçar! Logo feito o convite, para o dia
seguinte.
Às oito da manhã, um frio do cão, dois diretores da
Tuborg na porta da companhia, me aguardavam. Depois da visita e da troca de
impressões, fomos almoçar num restaurante da fábrica. Ótimo.
Uma larga travessa circular cheia de peixe e frutos do
mar e o indispensável e ótimo pão. Smorrebrod!
Começa o garçom por trazer três belos copos de cerveja e três cálices
para bebermos a famosa Akvavit, aquavita, um destilado de origem
escandinava. Do latim, aqua vitae, "água da vida'", álcool quase
puro! Entre 40 a 50º. A garrafa vem muito gelada, completamente coberta por
gelo.
Os “hospedeiros” pegam no cálice,
miram todos os parceiros e saúdam: “SKOL”! Aguardente goela abaixo!
Logo que o primeiro copo de
cerveja chegou ao fim vêm mais três, e nova dose de akvavit. Eu queria não
beber, mas, vá lá, deve ser o último! “Skol!” Goela a queimar. À
terceira vez eu neguei a aguardente, mas os dois diretores seguiram alternando
a cerveja com a akvavit, e já na segunda parte do almoço, smorrebrod com
carnes, só falavam um com o outro. Eu tinha sumido do campo de visão deles! No
fim levantaram-se da mesa e eu tive
que os seguir e assim foram andando pela rua. Eu atrás. A certa altura houve
um que realizou que deviam ter esquecido alguma coisa: eu! Muitos cumprimentos,
agradeci muito e os dois muito bem bebidos seguiram a vida deles! Foi
sensacional. Valeu muito a pena.
No outro dia o meu amigo Erling
convidou-nos para almoçarmos fora da cidade e visitar a sua belíssima casa de
campo, numa área onde criavam, à solta, faisões, para depois caçarem.
Ele, com 64 anos, começava a ficar
um pouco surdo e distraído, e quando ligava o pisca-pisca do carro ele depois não desligava
sozinho! Para resolver o assunto instalou uma campainha para o alertar! Engenheiro é para isso: inventar!
Talvez em 1964 decidiu fazer-me
uma visita a Angola. Foi quando me contou que viajava de graça por todo o
mundo! Sabendo-o caçador de faisões decidi levá-lo num fim de semana para caçar
uns bichinhos um pouco maiores: pacaças.
Um grupo de caçadores, dois jeeps,
lá fomos para as matas do Ambriz (hoje coutada). Ele não quis carabina,
emprestei-lhe uma caçadeira. Saltaram duas perdizes, ele matou com "um duplo" e ficou encantado. Um pouco adiante, numa clareira entre a mata, viu uma
árvore alta, isolada, e pendente um grande favo de abelhas. Confirmado que era
de abelhas, admirou-se, mas mais se admirou quando ao regressarmos ao
acampamento, voltou a ver a árvore, mas o favo... tinha desaparecido!
No meio do mato onde não se vê
vivalma, quem teria sido? Os “terroristas”! O nosso convidado não queria acreditar! Como é que nós andávamos ali no meio de guerrilheiros com toda a
calma? Podiam atacar-nos.
- Não! Eles não estão interessados em gente que nada
tem a ver com o colonialismo. O problema dos guerrilheiros era o sistema e não
as pessoas.
Adorou a caçada, já nem sei se caçámos
algum bichão grande, e no fim desse ano mandou-me, pelo Natal uma foto dele
como filho mais novo, Toke.
Para despedida levei-o ao famoso
restaurante Vilela, lá... nos fins da Estrada da Cuca, para comer o que era, na época, o melhor bacalhau do planeta.
Quando encomendei e lhe disse o
que íamos comer, bacalhau, code fish,
ele fez uma cara estranha e disse-me que era isso que o seu pai lhe dava, de
castigo, quando, em menino fazia asneiras!
- Se não gostar pede-se outra coisa. Mas primeiro
prova.
Veio o tal famoso bacalhau assado
no azeite, com batatas, e o senhor exultou! Ele, alto e forte, apreciou imenso
e comeu muito bem!
- Que pena o meu pai não me ter dado este castigo!
Em 1974, depois da revolução dos
cravos (!) escreveu-me, preocupado com o que se iria passar nas colónias.
Respondi-lhe, andei uns tempos
perdidos na nossa diápora, e foi a última vez que tivemos contato.
Guardo deste amigo uma imagem de
muita simpatia, alegre, simples, inteligente, sempre muito atencioso comigo. Um
grande homem.
Um abraço etéreo, Erling Christian Foss.
25 out. 18