quinta-feira, 21 de junho de 2018


Antes de ler este texto, sugiro que leiam um comentário

 ao texto anterior – Amigos -3

 PROLEGÓMENOS e AMIGOS – 4

Hoje vou apresentar-lhes uma série de “guerreiros”! Todos de Cavalaria. Gente que optou pela vida militar e alguns estiveram envolvidos nas infelizes, indesejáveis e forçadas guerras coloniais, que a falta de diálogo e ignorância fizerem eclodir. E matar muita gente, de ambos os lados, que poderiam ainda hoje estar gozando a vida com a família em serenidade. Mas as guerras são a manifestação primeira, primária, da índole dos homens. Não se entendem pela simples razão porque não querem, pelos interesses pessoais em jogo, pela ganância e vaidade.
Estamos no século XXI e continuam guerras e matanças por todo o mundo, desde a “civilizada” Europa, onde ainda dominam os europeus (até quando?), África, Américas, Ásia, etc.
Os “guerreiros” de hoje, meus amigos de há muitos anos, todos militares, todos gente sensível e de Paz. Alguns já alcançam o Grande Descanso.

Vou começar pelo mais humilde.
Fizemos juntos o serviço militar como sargentos milicianos. Acabou em Agosto de 1952, e se para mim a sensação foi do “dever” cumprido e acabado, para ele, jovem humilde, de família modesta, com poucos recursos, continuar militar foi a solução para não voltar para a terra, lá para as bandas de Ansião e Lousã, onde não conseguiria trabalho decente.
No meio do nosso curso, um dia o oficial de serviço chamou-o. Tinha nas mãos um telegrama para ele, que dizia “Josefa morreu”.
O oficial perguntou se conhecia alguma Josefa. “A minha mãe.” Foi um drama, mas para não lhe dar um choque, diz-lhe que a mãe estava muito mal, e que ele fosse a casa. Deram-lhe uma semana, e lá vai ele, pesaroso, pensando ir encontrar a mãe às portas da morte. Demorou a chegar. Comboio para Pombal, depois autocarro para Figueiró dos Vinhos. O oficial respondeu ao telegrama dizendo que o filho estava a caminho de casa. As irmãs e a mãe ficaram assustadas porque quem tinha morrido fora uma prima velha com o mesmo nome da mãe, e foram esperá-lo à estação com as roupas mais alegres de que dispunham.
O nosso militar, ainda dentro do comboio vê a família toda alegre a acenar-lhe e ficou perturbado. Quando saiu foi recebido com alegria, abraçou a mãe a chorar, e depois gozou uma semana de férias!
No quartel, ele, como eu, vivíamos com uns míseros escudos, e tínhamos uns quantos colegas mais afortunados de quem ficámos também amigos.
Chegou o Natal e houve férias no quartel, Cavalaria 7, em Lisboa, mesmo encostado à residência do Presidente da República, e o nosso amigo estava triste: não tinha dinheiro para ir a casa e ficaria duas semanas “de castigo” no quartel. Quando me contou isso, falei aos colegas, e todos abriram a carteira. Foi para ele uma felicidade, e passou o Natal com a família.
Durante muitos anos deixei de o ver, foi sendo promovido, andou por Angola quatro anos, na guerra, em Moçambique, sempre em zonas de guerra dura, esteve por duas vezes às portas da morte por doença, e durante todo esse tempo, podemos nos termos cruzado, sem que eu tivesse sabido. Tínhamos perdido o rasto um do outro. Bem mais tarde, 45 anos depois, recebi uma carta dele. Tinha passado à reserva, e foi aí que contou essa história de termos arranjado o dinheiro para que ele fosse a casa, gesto que jamais esqueceu. E trocámos alguma correspondência.
Quando fui a Lisboa, telefonei-lhe e encontrámo-nos. Foi um momento grande. Já de cabelo quase todo branco, a mesma pessoa sensível e humilde, contou-me que se tinha aposentado como major. Estando em número um para ser promovido a tenente coronel, e sabendo que em pouco tempo passaria à reserva, um colega mais novo pediu-lhe para o deixar na frente, na promoção, porque ainda tinha alguns anos de serviço pela frente.
O meu querido amigo, homem simples, a vida organizada, as duas filhas já formadas em curso superior, não hesitou e deixou o colega ser promovido. Só um homem grande teria semelhante atitude.
O Ramiro, homem humilde, grande de alma e caráter, ficou como major. Mas feliz por ter ajudado um colega.
Infelizmente não consegui encontrar nenhuma foto dele. Ramiro da Conceição Antunes.
***

Neto de general, seguiu a vida militar, e a sua ambição seria atingir a mesma posição do avô. Cedo foi para Moçambique, ali chegando jovem tenente, ajudante do governador. Dinâmico, oficial de cavalaria, como todos os do mesmo ramo apaixonado por cavalos, logo obtém do governador autorização e apoio para criar o Centro Hípico de Lourenço Marques que durante anos iria ser lugar de socialização e mundanismo para a alta sociedade colonial. O centro era reputado e às suas competições vinham competidores de países vizinhos."

O belo Centro Hípico

Ainda em Moçambique tenta a vida fora do exército, trabalha na SONAREP, a primeira refinaria de petróleo em Moçambique, mas ao fim de um ano, fartou-se e saiu dizendo: “no exército se eu mandar um general à mer... apanho dez dias de cadeia e tudo volta à mesma, se fizer o mesmo com o administrador de uma empresa sou posto na rua e fico desempregado.”
Voltou à vida militar, esteve dois anos numa zona de guerra na Guiné, deixando a família em Lourenço Marques, regressa a Moçambique e é enviado para novas zonas de guerra, até 74 quando avisado pelo comando do exército, que tudo estava acabado, vai para Portugal.
Não era da cor dos “heróis de Abril”, fica na prateleira. Vai então para o Brasil onde um jovem milionário lhe pede para montar um haras, o que lhe deu vida nova. O milionário casa, a esposa não gosta de animais e o haras... acabou!
O nosso coronel tem então que se virar na vida civil. Os primeiros passos são difíceis, entra depois como auditor numa empresa grande, corre o Brasil, não pára, e fica até que a idade lhe recomenda que descanse. Fizera já muito. Vai para Portugal, saudoso de toda a sua longa luta e história, aos 90 anos descansou.
O jovem e dinâmico tenente

Foi um homem que não parou um momento e sempre enfrentou com galhardia, como um bom oficial de cavalaria, e bom português, todos os desafios que teve que enfrentar.
Nossos pais eram primos direitos. Saravá, meu amigo e primo Carlos Vasconcellos Porto.

Vamos agora aos concursos hípicos, tão na moda em Lisboa sobretudo por volta dos anos 40 e 50. Quase todos os cavaleiros eram militares, raros endinheirados que se davam ao luxo de ter cavalos de alta competição, oficiais houve que se tornaram famosos.
Para as famigeradas olimpíadas de Berlim, em 1936, no tempo do todo poderoso Adolf, Portugal envia vários atletas e um grupo de cavaleiros. Vieram de lá com medalha de bronze, tendo um dos oficiais da equipe recebido uma carta pessoal do tal Adolf a felicitar os portugueses. Carta rara. (Há poucos anos a RTP quis fazer uma reportagem sobre essas olimpíadas, pediu ao atual detentor desse espólio, a medalha para fotografar, mas, por razões políticas, os cretinos não quiseram exibir a carta! Um documento histórico...). Os chamados covardes do politicamente correto!

A equipe portuguesa em Berlim. O nosso “homem” à direita (como sempre foi!)

Casado, mais de uma dúzia de filhos lindos e ótimos, o nosso oficial parou em coronel, mas até ao fim da vida continuou a ser delegado de Portugal aos Jogos Olímpicos. Era uma pessoa de exceção!
Algumas cenas da sua vida.
Enviuvou e houve uma senhora que decidiu “tomar” conta dele, e não o largava.
Teria já 80 anos, com um filho no Paraguay, vai visitá-lo, senhora á ilharga. À despedida diz ao filho: “Estou farto de a ter sempre atrás de mim. Não queres ficar com ela?” Resposta do filho: “Não pai, muito obrigado!”
Uns anos antes, aí por 1970 foi a Luanda, onde viviam pelo menos quatro filhos. Chega de manhã e vai direto ao banco onde eu trabalhava; fiquei muito espantado de o ver às 10 da manhã, nem sabendo que ele estava em Luanda. Tinha acabado de chegar de Lisboa!
Aparece à porta do meu departamento, vejo lá no fundo um senhor com uma mala ao lado, mandei ver quem era. Quando me disseram, corri para o receber, e perguntei-lhe se já tinha estado com algum dos filhos.
Não. Primeiro quero ir almoçar contigo e com o Renato Lima (uma figura inolvidável da Cuca)! Depois então vou ter tempo para me chatear com eles.”
Grande figura, Grande Senhor. Boa parte dos seus filhos são, há muitos anos, como meus irmãos.

Aqui está, um muito querido amigo, Dom Domingos de Sousa Coutinho, Marquês de Funchal, com o neto, homónimo, já avô e futuro Marquês.
***
Quando o conheci, em 1963 já ele com 48 anos era coronel de cavalaria, e estava em Luanda a comandar o famoso e imenso Campo do Grafanil, um acampamento onde estacionavam todos os militares que chegavam a Angola e todos os que, finda a missão, aguardavam o regresso à Metrópole.
Era um militar aprumado, muito disciplinado, características que guardou até ao fim, quando, já sofrendo muito com vários problemas de saúde, descansou.
Foi através dos Cursos de Cristandade que uma forte amizade nos uniu por mais de trinta anos.
Um dia decidimos ir visitar as famosas e impressionantes Pedras Negras, N’pungo-a-Ndongo, terra do meu compadre e colega de trabalho, Luis Neto, e que no meu livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco” já descrevi:
No meio de uma extensa área planáltica, a dezenas de quilômetros de distância começam a recortar-se no horizonte uns imensos blocos de pedra, que não fosse a distância, podiam confundir-se com uma grande manada de elefantes! À medida que nos vamos aproximando, essas rochas crescem de forma desmesurada, até que chegados à sua base se tem então noção do seu tamanho. Algumas passam os duzentos e cinqüenta metros acima do chão! São escuras, como os elefantes. Negras.
A sensação, de longe, é que a manada de elefantes está unida, e então, já mais de perto a imaginação leva-nos a pensar em algum gigante, imenso, que carregou, ninguém sabe de onde, essas pedras monstruosas, como almas penadas, para as deixar ali esquecidas, entregues a si próprias, amontoadas!
E a nossa sensação de pequenez cresce, perante a grandiosidade daquele espetáculo. Em alguns desses imensos blocos graníticos estão marcadas pegadas que parecem de gente e de cães. Ninguém sabe o que é, de quem, de quando. Chamam a algumas pegadas, que pelo enorme tamanho só poderia ter sido deixada por algum “patagon”, o pé da Rainha Jinga! Contam-se lendas. Tudo ali é mistério, mas um mistério que encanta, pela sua imensidão e beleza. Não sei se há, e onde, algo parecido, mas as Pedras Negras são inesquecíveis.

Duas vistas impressionantes (a 2ª - vista do satélite)

Dormimos em dois “burros” militares que armámos na entrada de uma escola (era tempo de férias, não tinha ninguém) e ao nascer do sol acordámos com três mulheres paradas em frente à escola, muito admiradas com o espetáculo! Depois procurámos na aldeia ali perto o tio do meu compadre, e fomos recebidos que nem dois príncipes, o que muito impressionou o coronel, até porque a guerra estava acesa, e nós, únicos brancos naquela imensidão fomos recebidos com tanta lhaneza e carinho.
Os “burros”, as camas de campanha assim chamadas, no regresso duma rápida caçada, encontrámo-las com lençóis brancos impecáveis. Ao lado uma mesa posta com dois lugares, onde nos recusámos sentar sem que o nosso anfitrião se sentasse conosco.
Foi uma vivência inesquecível.
Anos mais tarde o “nosso coronel” escrevia-me, quase sempre em verso, que ele tanto gostava de fazer:
“Eu cá por mim,
Julgo que aprendi contigo
A arte de ser amigo
E de gostar de arriscar
E viajar pelo mundo além”
Com 80 e alguns e sempre a barretina dos “Meninos da Luz” na lapela

Meu querido e saudoso amigo António. Saravá, António de Miranda Dias.

20/04/2018


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