Algumas leituras – 3
ANGOLA – O dia a dia de um
embaixador
Tenho lido muito livro, e tenho tido sempre (quase!) o
cuidado de escolher aqueles que me parecem bons. Um dia vi anunciado um livro,
“Mamma Angola”, editado em 2000, nome sugestivo, comprei. Escrito por um super
professor, super mestre, super doutor e prefaciado por outro ainda mais doutorado,
li-o com um doloroso amargo na goela e a que fiz profundas críticas. O autor
tinha ido como cooperante, professor de economia, brasileiro, para Luanda “ensinar”.
Do PCdoB, claro!
Malhei o quanto consegui, desmenti inúmeras falsidades
e ataques aos portugueses, e até ressaltei uma afirmação do autor de que tinha
convencido uns alunos a roubarem na biblioteca alguns documentos de que se
orgulhava possuir por ter ficado com eles.
Como é de imaginar o super não respondeu, apesar de eu ter conseguido o
email dele e da instituição onde lecionava. Lecionava? Enganava.
De vez em quando somos enganados pelas capas!
Desta vez, além da capa ser muito bonita e nos trazer
uma imagem icónica (pleonasmo?) de Luanda, não me enganei. Nem podia. Conhecia
o autor e mais, já me encantara com o seu modo de ser e escrever.
Mas fazer um comentário a um livro como este, além de
extremamente difícil, é um atrevimento da minha parte. A ideia é que aqueles
que lerem este texto, que conhecem ou conheceram, ou querem conhecer Angola,
fiquem com vontade de encontrar o livro, esgotado, e que merece, muito, uma
nova edição. Como já se está a pensar em editá-lo traduzido em inglês e, quem
sabe, noutras línguas.
É uma aula de diplomacia, elegância e humor.
Devia ser livro obrigatório no ensino da história
recente de Portugal. Na Faculdade de Letras, História, e Relações
Internacionais... compulsivo!
Ler este livro, escrito durante um período extremamente difícil de
Angola, além de ser grande aula sobre o comportamento de um diplomata, alterna
a história do momento, com inigualáveis descrições de colegas e pessoal que ali
conheceu, com um humor e respeito próprios dum espírito e educação elevados,
como infelizmente é raro encontrar.
Levou-me a recordar amigos que conheci antes da independência e depois
perdi de vista, a alguns outros com quem consegui manter e aumentar uma
profunda amizade.
O autor esteve como embaixador em Angola de 1983 a 1988. Em Janeiro de
91 eu fui duas vezes a Angola quando trabalhava para uma empresa espanhola de
projetos de engenharia e pescas. Fui lá
encontrar exatamente o ambiente que tão bem é retratado. Lê-lo foi reviver essa
experiência, que teve até tiroteio em frente ao hotel onde me hospedei!
Mas o António Pinto da França demonstra, em todas as páginas, um cuidado,
sensibilidade e firmeza nas suas atitudes perante a nova classe de dirigentes,
inexperientes e arrogantes, pior ainda porque sob a pesada mão dos soviéticos e
cubanos que, de entrada, se arvoraram em “donos do pedaço”, o medo e a
subserviência não lhes permitia serem “eles mesmos”.
Com frequência, nos lembra que Cristo padeceu mas sempre amou até os seus
algozes, são páginas que mostram que a humildade nada tem a ver com a firmeza do
diplomata ao representar o seu país.
Logo de entrada nos diz que os
angolanos vivem “apaixonados” por Portugal, somos a sua obsessão. Mas, como em
todas as paixões violentas, também nesta se confundem sentimentos de amor e
ódio. Grande mistura de politicagem. O coração de quase todos os angolanos
permanecia com fortes saudades de Portugal e até dos portugueses. Os outros que para aqui vieram não falam a
nossa língua e nos tratam como seres inferiores.
Exemplo edificante o do criado de mesa do embaixador da Suíça. Um
humilde criado de mesa, independente de quem o suíço tivesse a jantar em sua casa, sempre servia em primeiro lugar, fosse quem
fosse, um português. O embaixador já tinha deixado de insistir nas precedências,
que nada o convencia a não proceder assim. Ele ficava na sua e passa sempre à
frente de todos os outros convidados.
Os dirigentes angolanos estavam obrigatoriamente de relações cortadas
com Portugal, pelo “apoio” dado à Unita e pela aversão de Mário Soares, então
primeiro ministro, aos soviéticos. Além disso os “donos” do 25 de Abril, o PCP,
eram quem escolhia os cooperantes, cuja missão parecia ser também o azedar as
relações entre os dois países. Se o governo angolano abrisse bem as portas a
Portugal o PCP perdia a razão de existir, e os soviéticos e cubanos a sua
dominação, que passaria para o eixo Europa – EUA. A luta política era difícil,
e por estranho e vergonha que pareça, quem mais dificultava esse diálogo eram
esses pseudo cooperantes portugueses e brasileiros como o caso do livro do
brasileiro que acima refiro, que procuravam denegrir o passado português,
envenenando e torpedeando as relações.
O nosso embaixador, sentiu isso profundamente, e relata-o de forma
inequívoca.
Entretanto a cidade em total abandono. Os cubanos haviam extraviado o
plano de saneamento e os esgotos estavam completamente entupidos, vazando em
inúmeros lugares da cidade, exalando cheiros nauseabundos. Uma tremenda falta
de alimentos, medicamentos e outros bens essenciais.
O angolano, sempre com o seu brilhante jogo de cintura ia resolvendo o
problema assaltando, roubando, os contentores que chegavam ao país, e nos
mercados “paralelos”, uns acampamentos
gigantescos e caóticos, com nomes bizarros – “Tira Cueca”, Ajuda Marido” e
outros que deram origem a um que ficou famoso, com o nome da novela brasileira
Roque Santeiro, vendiam de tudo. Desde medicamentos na caixa ou avulso, até
eletrodomésticos e automóveis! Um caos.
Uma delícia são as descrições das personagens, que ele faz com um humor
único, mas sempre envolvendo um tanto de carinho.
Convidado para um jantar dos Rotários, “sentaram-no entre o Presidente e a sua “Ana”, designação que o manual
da instituição determina que assim se chamem todas as consortes dos rotários,
em nostálgica homenagem à mulher do fundador que assim se chamava!” E descreve: “esta “Ana” é uma daquelas mulheres que rebentam das ancas estreitas,
numa girândola de carnes ebúrneas contidas pela cabeça, que quase afogam.”
Num dos aniversários das FAPLA houve parada. “Como os convites nunca chegam a tempo ou se extraviam, poucos eram os
Chefes de Missão presentes. Não obstante a tribuna diplomática, um estrado,
como sempre ao sol, estava a abarrotar de altas patentes russas e cubanas.
Vi-os enfim, personagens mitológicas, que vivem reclusos no Olimpo. São eles
que na sombra puxam os cordelinhos da guerra e da política desta desgraçada
Angola. Estavam em massa, os corpulentos generais soviéticos, esplendidamente
uniformizados, carregados de galões dourados, cada um com seu interprete
privativo, acolitados por coronéis igualmente marciais.”
Recepção das “celebrações da
Tomada da Bastilha! No mostruário dos diplomatas franceses perfilados para nos
acolher... o embaixador, sempre excêntrico, atrevido e esticadinho. Num smoking
em “lamé” cinzento de largas bandas negras, “toilette” talvez amorosamente
combinada com a amante zambiana que lá dentro se rebolava num smoking igualmente
“pailleté”, este em tons vermelhos. Imaginei-os logo à noite, de regresso a
casa, na intimidade da alcova a dançar, gloriosos, um sapateado desenfreado,
antes de caírem no tálamo entre Champagne e risos estridentes...” Maravilha!
A descrição que faz de um personagem emblemático, inglês que vivia em
Luanda desde 1925, o senhor Frank Hollis, que eu, como todos os que ali viveram
no tempo colonial conhecemos bem, é, como as outras, antológica.
O autor, que havia estado em Angola no início dos anos sessenta a
cumprir serviço militar, já havia sido “mordido” pelo mesmo bichinho que mordeu
a todos (ou quase todos) que por lá passaram, e não esqueceram, nem esquecem
aquela terra e suas gentes. Além de que tinha por lá profundas raízes que
começam com uma avó que nasceu em Moçamedes, até ao pai, engenheiro civil, que
em 1949 projetou a captação de águas do Bengo para Luanda, cujo nome ainda hoje
é reconhecido pelo belo trabalho que fez.
Já nesse tempo penetrou fundo na alma do povo, quer fosse o nativo como
os portugueses que se tinham dedicado de alma e coração ao desenvolvimento do
país.
Veio, como embaixador, a confirmar “a
grandiosidade do trabalho das Missões, católicas ou protestantes, em África.
Souberam abrir o mundo aos que por eles passaram sem lhes bulir com a
identidade. Também aqui os mais articulados, aqueles que melhor se assumem como
africanos, são os que frequentaram as Missões.
Aproxima-se a hora de deixar o posto. No Natal soube onde o Cardeal Arcebispo
Dom Alexandre ia celebrar a Missa do Galo e informou que queria estar presente.
Igreja de São Paulo, apinhada. Ao entrarmos fomos acolhidos por um grupo de
mulheres com a dignidade de matriarcas, envergando as suas melhores roupas,
todas com as fitas e medalhas das Filhas de Maria ao pescoço. Nós éramos os únicos europeus no meio
daqueles angolanos. Conduziram-nos solenemente aos lugares que nos haviam
preparado. Num dos bancos da frente haviam colocado duas almofadas de veludo
vermelho e na balaustrada uma colcha de damasco da mesma cor. Enquanto se
aguardava a chegada do Cardeal o pároco exultava a assembleia a cantar.
Desnecessário porque só queriam mesmo era cantar. Entretanto o pároco interrompeu para lhe anunciar: “Temos
conosco o embaixador de Portugal”. Logo
toda aquela gente irrompe numa imensa
salva de palmas.”
Depois começam as despedidas. Aqueles membros do governo que de entrada
estavam “proibidos” de o visitarem eram agora quem o convidavam para suas casas
“recebendo-nos com a maior familiaridade,
deixando vir ao de cimo os afectos que os une ao “Puto”.
O final da estadia foi uma celebração ao estreitamento das relações que
tão deterioradas estavam.
O secretário de Estado da Cultura abriu a exposição de aguarelas que a
Sofia, senhora embaixatriz, pintara durante o tempo que passou em Luanda. Essas
aguarelas guardaram boa parte do património construído na capital de Angola, algum
quase em ruinas.
E tanto se interessaram pelo trabalho que pediram depois autorização
para com algumas delas fazerem nova emissão de selos!
O remate vem com uma visão geral dos problemas que Angola enfrentou
depois da Independência, com as veladas lutas pelo poder, com as interferências
estrangeiras, com o dealbar do jeitinho e da corrupção, inevitáveis em todos os
lugares do mundo, e com a continuação da guerra civil, com a Unita que só
terminou em 2002!
Um livro a não perder. Um livro que os angolanos devem ler com muita
atenção.
Enfim, um dos melhores livros que eu tenho lido.
19/04/2018
Obrigado pela peça, deliciosa. Conservo alguns manuscritos do António que me dava para ler antes de publicar .
ResponderExcluirObrigada por dar a conhecer. Gostei Muito!
ResponderExcluirSaudações.
Maria Mamede