quarta-feira, 11 de abril de 2018


Algumas leituras -1

Como sabem, não sou um crítico literário, mas gosto, quando gosto da leitura, de fazer o meu comentário. Quando não gosto, ou deixo o livro pelo caminho ou jogo o imprestável no fogo. O livro é como um degrau: se é bom ajuda-nos a subir, se não presta, mais nos afunda. E não quero ajudar ninguém a se rebaixar!
Mas sempre há alguns livros que me “conquistam”, normalmente os relacionados com história, Romances ficam bem lá para trás, com exceção de raros como alguns de Camillo Castelo Branco e outros de padrão semelhante o que é raro, raríssimo.
Acabei de reler Em Tempos de Inocência” do meu querido amigo António Pinto da França, sobre a sua missão na Guiné entre 1977 e 1980, como embaixador de Portugal.

Guiné tornara-se independente há dois anos, tudo estava por fazer, organizar, uma tremenda falta de quadros, sem dinheiro, constantes faltas de alimentos, os “comissários”, à boa moda stalinesca perdidos e sem cultura, “procurando seguir os ideais marxistas, credo que lhes é contra natura. Pecados nossos! Teimando em fechar todas as portas aos Movimentos independentistas, empurrámo-los para os braços de Moscovo.” como escreveu o autor.
As descrições que faz sobre cerimónias oficiais, para o que não havia gente preparada para coordenar, como por exemplo “nas recepções e jantares é toda uma confusão de hesitações entre a gravata e a balalaica*. A mim nada disto escandaliza, inspira-me antes ternura e respeito por um povo que, com tantas dificuldades e falhas, se esforça por assumir os complexos desafios duma independência tão recente.”
Admiravelmente escrito, é um prazer contínuo a sua leitura, não só pela qualidade da escrita, mas por esta constante preocupação e compreensão dum povo simples, que quer continuar africano e apegado às suas raízes, como se quer ocidentalizar porque é daí que lhe virá o progresso.
O seu jeito africano, autêntico, de ser, amável, carinhoso, sorridente, acolhedor, tocam profundamente o mais íntimo do “Senhor Embaixador” que se mostra gratificado com a singeleza e as atenções daquela gente.
Observador perspicaz, tem algumas passagens em que se refere a colegas diplomatas, que são antológicas, como “a vampiríssima Madame Paquin, adjunta das Nações Unidas, matrona de olhos verdes com certo aspecto de patroa de casa de senhoras, reformada da profissão.”
Critica severamente a maioria dos portugueses cooperantes, aproveitadores do desregramento que vivia Lisboa, para ganharem um dinheirinho extra, inchados na sua condição de europeus frente a gente simples e que tanto necessitava de ajuda sincera e compreensão. E não eram só os portugueses. Numa pequena cidade no norte da Guiné viu numa “longa varanda do primeiro andar dum prédio colonial três paquidérmicas e louras figuras, uma mulher e dois homens, em camiseta e shorts, transpirados, debruçados, perdidos, num mundo em que nada acontece e que eles não compreendem. Três, cooperantes russos.”
(Em 1991 também presenciei figuras semelhantes. Maputo, ainda sob o controle-descontrole dos marxistas. À noite fui jantar, sozinho, como por lá andei, a um pequeno restaurante. Dentro só mais uma mesa ocupada com dois pares de nojentos paquidermes, louros, duas crianças a caminho de se empaquidermarem também, falando alto, bebendo cerveja, tratando o humilde funcionário que servia às mesas com uma arrogância de bestialidade doentia. Quando por fim este lhes levou a conta, insultaram o “preto” afirmavam que não tinham bebido tanto, enfim, mostraram quem mandava ali, e o pobre empregado nada dizia. Pagaram o que quiseram e saíram. Aquilo revoltou-me. A única forma de deixar o indivíduo menos triste foi dar-lhe uma gorjeta igual ao valor da despesa, que nada representava porque a desvalorização do Metical era absurda.)
Voltando à Guiné, sobram no livro exemplo das “cooperações”: uma arquiteta yougoslava, casada com um “comissário” do governo, apresentou um projeto para construção de uma nova aldeia para pescadores. Arquitetura à moda da Yougoslávia: casa construídas em tijolo, telhados de telhas, vários quartos, sala, banheiro, etc. Uma “beleza”, para substituir as tradicionais casas africanas, cujo custo é quase zero. Estas, só o projeto custaria 1500 escudos e a construção 900 contos! Para uma população que vive de subsistência, sobretudo da pesca artesanal, sem dinheiro, isto é mais do que absurdo! (Vi também projetos similares em Angola para agricultores, só que feito por cooperantes checos!)
Numa das praias dos Bijagós um hotel foi “construído” com umas pequenas cabanas, oferta de um país nórdico. Horrivelmente quentes, seriam de modelo usado para abrigos na montanha. Np frio.
(E isto também lembra coisas que presenciei em Angola. A Suécia, querendo colaborar com o desenvolvimento deste novo país, após a independência, mandou, como oferta, seis caminhões limpa neves! Era o que mais Angola necessitava!)
Talvez seja o mesmo país nórdico que depois encheu o governo da Guiné de automóveis Volvo, estes certamente pagos. E “tantos eram que a Guiné deixara de ser uma democracia para ser uma volvocracia!”
O autor demonstra, o tempo todo, um respeito e um imenso interesse pela cultura, tradições e ritos dos guineenses. Em todo o lado é recebido com o maior carinho, envolve-se com toda a sua simplicidade na contemplação e tentativa de compreensão dos povos simples.
A descrição que faz dos empregados da embaixada, e as suas constantes brincadeiras com eles, mostram bem a pureza do seu caráter, e o cuidado com que brincava com todos sem se dar “importância de europeu, nem de Sua Excelência”.

No outro seu livro “Cartas Baianas / 1821-1824” descreve o entusiasmo com que aceitou ser nomeado Consul Geral no Rio de Janeiro – 1974 – porque, entre muita outra coisa que ansiava conhecer, neste país onde viveram alguns dos seus antepassados, baianos senhores de engenho e militares, ia procurar estabelecer contato com uma imensa quantidade de primos, porque só um irmão de seu bisavô gerara 17 filhos.
A mesma constante procura, e mesmo cuidado e entendimento nas relações com todos os que o rodearam, características que demonstra de forma muito especial num outro livro “Influência Portuguesa na Indonésia”, livro mais que esgotado, mas que devia ser leitura obrigatória para todos os portugueses, e porque não?, para todos os que têm a língua portuguesa como língua nacional.
Nunca fiz um comentário sobre este livro, porque logo a seguir a o ter recebido de presente, do autor, este deixou-nos.
Comecei agora a ler “Angola – O dia a dia de um Embaixador”, outra pérola, para é angolano de coração e para quem aprecia um grande escritor.

Infelizmente, António Pinto da França já não está entre nós. Não é preciso tê-lo conhecido para o admirar e sentir que ali estava um caráter admirável, uma elevada educação e cultura e ao mesmo tempo sempre uma boa disposição e humor que contagiava. Um grande humanista. Um grande Senhor.
Felizes os que, como eu, o tiveram como amigo.

* Balalaica: tipo de casaco, de tecido leve, fresco, também conhecido como camisa safari.

08/04/2018

Um comentário:

  1. Partilhando no Facebook nos grupos da língua portuguesa na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique.

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