Algumas leituras -1
Como sabem, não sou um crítico literário, mas gosto,
quando gosto da leitura, de fazer o meu comentário. Quando não gosto, ou deixo
o livro pelo caminho ou jogo o imprestável no fogo. O livro é como um degrau:
se é bom ajuda-nos a subir, se não presta, mais nos afunda. E não quero ajudar
ninguém a se rebaixar!
Mas sempre há alguns livros que me “conquistam”,
normalmente os relacionados com história, Romances ficam bem lá para trás, com
exceção de raros como alguns de Camillo Castelo Branco e outros de padrão
semelhante o que é raro, raríssimo.
Acabei de reler “Em Tempos de Inocência” do meu
querido amigo António Pinto da França, sobre a sua missão na Guiné entre 1977 e
1980, como embaixador de Portugal.
Guiné tornara-se independente há dois anos, tudo
estava por fazer, organizar, uma tremenda falta de quadros, sem dinheiro,
constantes faltas de alimentos, os “comissários”, à boa moda stalinesca
perdidos e sem cultura, “procurando
seguir os ideais marxistas, credo que lhes é contra natura. Pecados nossos! Teimando em fechar todas as
portas aos Movimentos independentistas, empurrámo-los para os braços de Moscovo.”
como escreveu o autor.
As descrições que faz sobre cerimónias oficiais, para o que não havia
gente preparada para coordenar, como por exemplo “nas recepções e jantares é toda uma confusão de hesitações entre a
gravata e a balalaica*. A mim nada disto escandaliza, inspira-me antes ternura
e respeito por um povo que, com tantas dificuldades e falhas, se esforça por
assumir os complexos desafios duma independência tão recente.”
Admiravelmente escrito, é um prazer contínuo a sua leitura, não só pela
qualidade da escrita, mas por esta constante preocupação e compreensão dum povo
simples, que quer continuar africano e apegado às suas raízes, como se quer
ocidentalizar porque é daí que lhe virá o progresso.
O seu jeito africano, autêntico, de ser, amável, carinhoso, sorridente,
acolhedor, tocam profundamente o mais íntimo do “Senhor Embaixador” que se mostra gratificado com a singeleza e as
atenções daquela gente.
Observador perspicaz, tem algumas passagens em que se refere a colegas
diplomatas, que são antológicas, como “a
vampiríssima Madame Paquin, adjunta das Nações Unidas, matrona de olhos verdes
com certo aspecto de patroa de casa de senhoras, reformada da profissão.”
Critica severamente a maioria dos portugueses cooperantes,
aproveitadores do desregramento que vivia Lisboa, para ganharem um dinheirinho extra,
inchados na sua condição de europeus frente a gente simples e que tanto
necessitava de ajuda sincera e compreensão. E não eram só os portugueses. Numa
pequena cidade no norte da Guiné viu numa “longa
varanda do primeiro andar dum prédio colonial três paquidérmicas e louras figuras,
uma mulher e dois homens, em camiseta e shorts, transpirados, debruçados,
perdidos, num mundo em que nada acontece e que eles não compreendem. Três,
cooperantes russos.”
(Em 1991 também presenciei figuras semelhantes. Maputo, ainda sob o
controle-descontrole dos marxistas. À noite fui jantar, sozinho, como por lá
andei, a um pequeno restaurante. Dentro só mais uma mesa ocupada com dois pares
de nojentos paquidermes, louros, duas crianças a caminho de se empaquidermarem
também, falando alto, bebendo cerveja, tratando o humilde funcionário que
servia às mesas com uma arrogância de bestialidade doentia. Quando por fim este
lhes levou a conta, insultaram o “preto” afirmavam que não tinham bebido tanto,
enfim, mostraram quem mandava ali, e o pobre empregado nada dizia. Pagaram o
que quiseram e saíram. Aquilo revoltou-me. A única forma de deixar o indivíduo
menos triste foi dar-lhe uma gorjeta igual ao valor da despesa, que nada
representava porque a desvalorização do Metical era absurda.)
Voltando à Guiné, sobram no livro exemplo das “cooperações”: uma
arquiteta yougoslava, casada com um “comissário” do governo, apresentou um
projeto para construção de uma nova aldeia para pescadores. Arquitetura à moda
da Yougoslávia: casa construídas em tijolo, telhados de telhas, vários quartos,
sala, banheiro, etc. Uma “beleza”, para substituir as tradicionais casas
africanas, cujo custo é quase zero. Estas, só o projeto custaria 1500 escudos e
a construção 900 contos! Para uma população que vive de subsistência, sobretudo
da pesca artesanal, sem dinheiro, isto é mais do que absurdo! (Vi também
projetos similares em Angola para agricultores, só que feito por cooperantes
checos!)
Numa das praias dos Bijagós um hotel foi “construído” com umas pequenas
cabanas, oferta de um país nórdico. Horrivelmente quentes, seriam de modelo
usado para abrigos na montanha. Np frio.
(E isto também lembra coisas que presenciei em Angola. A Suécia,
querendo colaborar com o desenvolvimento deste novo país, após a independência,
mandou, como oferta, seis caminhões limpa neves! Era o que mais Angola
necessitava!)
Talvez seja o mesmo país nórdico que depois encheu o governo da Guiné de
automóveis Volvo, estes certamente pagos. E “tantos eram que a Guiné deixara de ser uma democracia para ser uma
volvocracia!”
O autor demonstra, o tempo todo, um respeito e um imenso interesse pela cultura, tradições e ritos dos guineenses. Em todo o lado é recebido com o maior carinho, envolve-se com toda a sua simplicidade na contemplação e tentativa de compreensão dos povos simples.
O autor demonstra, o tempo todo, um respeito e um imenso interesse pela cultura, tradições e ritos dos guineenses. Em todo o lado é recebido com o maior carinho, envolve-se com toda a sua simplicidade na contemplação e tentativa de compreensão dos povos simples.
A descrição que faz dos empregados da embaixada, e as
suas constantes brincadeiras com eles, mostram bem a pureza do seu caráter, e o
cuidado com que brincava com todos sem se dar “importância de europeu, nem de Sua
Excelência”.
No outro seu livro “Cartas Baianas / 1821-1824” descreve o entusiasmo com que aceitou
ser nomeado Consul Geral no Rio de Janeiro – 1974 – porque, entre muita outra coisa que ansiava conhecer, neste país
onde viveram alguns dos seus antepassados, baianos senhores de engenho e
militares, ia procurar estabelecer contato com uma imensa quantidade de primos,
porque só um irmão de seu bisavô gerara 17 filhos.
A mesma constante procura, e mesmo cuidado e
entendimento nas relações com todos os que o rodearam, características que
demonstra de forma muito especial num outro livro “Influência Portuguesa na Indonésia”, livro mais que esgotado, mas
que devia ser leitura obrigatória para todos os portugueses, e porque não?,
para todos os que têm a língua portuguesa como língua nacional.
Nunca fiz um comentário sobre este livro, porque logo
a seguir a o ter recebido de presente, do autor, este deixou-nos.
Comecei agora a ler “Angola – O dia a dia de um Embaixador”, outra pérola, para é
angolano de coração e para quem aprecia um grande escritor.
Infelizmente, António Pinto da França já não está
entre nós. Não é preciso tê-lo conhecido para o admirar e sentir que ali estava
um caráter admirável, uma elevada educação e cultura e ao mesmo tempo sempre
uma boa disposição e humor que contagiava. Um grande humanista. Um grande
Senhor.
Felizes os que, como eu, o tiveram como amigo.
* Balalaica: tipo de casaco, de tecido leve, fresco, também conhecido como camisa
safari.
08/04/2018
Partilhando no Facebook nos grupos da língua portuguesa na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique.
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