segunda-feira, 12 de junho de 2017



Um oficial em Moçambique - 4
Grande  Milando*

Aquele cargo com o seu título eufônico de Capitão-mor era realmente interessante pela variedade e amplitude das ocupações, enquanto resistiu o espirito que Mouzinho lhe insuflara.
Em Angoche, por muito afastado de Mo­çambique e por haver substituído, com assinalada vantagem, o ridículo governo que vegetara no Parapato entre 1861 e 1897, constituía uma espécie de pro consulado à romana muito de apetecer a gente moça com ombros e animo para suportar o fardo.
O capitão-mor, Gavana, como lhe chamavam os negros, era tudo: suprema autoridade e primeiro obreiro.
É claro que na maior parte das suas quase ilimitadas atribuições tinha a competência mais ou menos regulamentada pelas leis do reino e da província - na medida do aplicável, mas havia uma esfera, inteiramente por codificar, que pelas suas instruções lhe era tão especialmente recomendada como deixada por inteiro à discrição do seu tino: era de juiz, único, em pleitos cafreaes.
O capitão-mor conhecia e comungava fielmente nas ideias gerais do comissário-régio criador do cargo e que fora seu chefe supremo assim como seu comandante-em-chefe. Achavam-se elas consubstanciadas nas modelares instruções dadas por El-Rei D. Sebastião ao Viso-Rei na Índia, Dom Luis de Athayde.
Fazei muita cristandade. Fazei justiça. Conquistai tudo quanto poderdes. Tirai cobiça dos homens e favorecei os que pelejaram. Tende cuidado com a minha fazenda. E para tudo isto vos dou meu poder. Se o fizerdes assim, muito bem, far-vos-hei mercê: e se fizerdes mal mandar-vos-ei castigar. Se al­guns Regimentos forem em contrário destas cousas suponde que me enganaram e por isso não haja nada que vos estorve isto.
E se à primeira máxima a sua condição de mísero pecador decerto o impediu de dar brilho, da última teve de socorrer-se constantemente, desde o dia da posse, no desem­penho dos seus deveres como julgador, tão inaplicáveis se lhe manifestaram os diversos códigos metropolitanos promulga­dos pelo liberalismo reinol do século XIX e logo mandados observar na África adusta.
E meteu-se a estudar afincadamente a Charia (Direito) macua. Suleimane-Issufo, o octogenário irmão do sultão Hassani e de Mussa-Quanto, fora o seu primeiro professor, logo nos tempos de simples comandante da Maravi.


Que maravilha de “máquina de guerra”! E que conforto!

Cinco anos depois, elevado a capitão-mor, já falecido o velho Suleimane, valeram-lhe o Mualimo (Bispo) Xá-Daúde e outros. Nem lhe faltava tempo para estudar e anotar princípios fundamentais, porque no transcurso de cada doze meses os cinco da época das chuvas de todo impediam passeios pelo mato. Dois anos de estudo e prática va­leram-lhe nesse capítulo certa nomeada pelo sertão, até ao ponto de um belo dia vir de Sangage uma deputação de notáveis convi­dando-o a ouvir o velho pleito do xecado e a sentenciar sobre a matéria arrumando o caso de uma vez para todas. Aceitou, como era seu dever, e trasladou-se em correição para o posto militar durante nove dias, que tanto durou o julgamento da causa. Por terem algum interesse, visto darem uma tal ou qual ideia da formidável divergência existente entre a Charia tribal macua e o Direito europeu se resumem aqui as alegações procedentes recolhidas em nove fatigantes audiências de sol a sol.
Era o que se chama na Contra-Costa um “milando grande”, arrastado durante gera­ções seguidas e recheado de incidentes de toda a casta que corriam de lés-a-lés o teclado da jurisprudência. Na sua origem assentara sobre uma questão dinástica, causa pri­mária de conflitos máximos entre povos. Pertencer o xecado de Sangage ao Uazir Mussa-Piri (Vizir) ou ao usurpador Momade-Omar, era o nó górdio. Cortado este, fácil se­ria liquidar perante a Charia a vasta série de assaltos, morticínios, roubos, raptos e ofensas intertribais praticadas du­rante mais de cem anos pelos partidários de um ramo dinástico contra o outro.
Momade-Omar, nascido e educado entre os brancos do Parapato, como o haviam sido já, em Moçambique, seu pai e seu avô, co­nhecia pela observação do seu atento espí­rito de velhaco as noções gerais do Direito europeu reveladas pela conduta correntia da gente do Rei.
Querendo agradar, “pintou-se de branco” na defesa do seu pleito, alegando direitos, muitos direitos, e negando a cadeia de deveres que tanto aperta e man­tém a Charia macua.             
A sua primeira negação em defesa própria foi a do “princípio de responsabilidade”, ba­silar entre os cafres por ser o alicerce do or­ganismo tribal. Mussa-Piri não teve dificul­dade em rebater-lha expondo, com aplauso de todos os ouvintes, que o xecado exercia autoridade sobre várias tribos, cada uma das quais estava subdividida em regulados, e es­tes em povoações compostas por agrupamen­tos de famílias; e que assim como os filhos eram responsáveis para com o pai pela sua conduta pessoal, assim este respondia perante o chefe da povoação pela sua família, os chefes de povoação para com os seus régulos e estes perante o xeque, chefe supremo do povo. E exemplificou com o caso de furto (Momade-Omar tinha praticado muitos) mostrando na fase inicial das investigações o local do crime e o ponto de partida, tornando responsável o chefe da família ocupante do terreno até que prove a saída desse terreno da cousa furtada, quer por mostrar para onde ela foi, quer por patentear o seu rasto; e salientando como pela prova de saída feita de grau territorial em grau territorial - local ocupado por uma família, área da po­voação, território do regulado - sempre es­teve assente na Charia macua o “princípio da responsabilidade” como cavilha mestra do edifício tribal. Eh-Eh; Aiô-Aiô; Aíomai - aplaudia a assembleia,
E confortado pela impassibilidade do branco, aquecido pelo auditório, reforçou: Que não, que o cafre não tem direito algum a fa­zer o que lhe apraz. Que o macua, como fi­lho, sempre pertenceu absolutamente ao seu régulo como pai da tribo, em tudo e para tudo, ele próprio e até a sua machamba (horta) pois nem tem direito a tocar no milho ou no feijão colhido senão após o Festival das Colheitas, de centenária tradição, depois de o régulo ter apartado as quantidades pre­cisas para satisfazer os espíritos dos antepas­sados e para as compras de armamentos ne­cessários à defeza da tribu. Que seria da sal­vação desta se a gulotonaria de um Momade-Omar lhe permitisse faltar ás suas obri­gações tribais? Sem prosperidade e seguran­ça para a sua tribo, o macua não teria defesa alguma, visto não haver Charia que re­gulamente as relações entre tribos, as quais sempre se têm por inimigas umas das ou­tras. Não tinha Mussa-Quanto uma vez chegado mesmo a proibir que as pessoas morres­sem sem sua licença? Porquê? Porque antes deste Momade-Omar também naquele tempo tinham aparecido heréticos do mesmo estofo a enfeitiçar gente fazendo-a morrer, quando todos os homens válidos eram poucos para a guerra contra a Imbamela e quando todos muito bem sabem pelas revelações do Liputu (Satanaz) que as pessoas só podem morrer de maneira natural por velhice ou na guerra - e nunca sendo moças senão por efeito de feitiçaria maligna apontada contra a grandeza e contra a existência da tribo, tão dependen­tes do número e da força dos seus homens.
E volvendo-se acusador, Mussa-Piri exprobava a Momade-Omar todas as suas com­provadas malas-artes. Para achincalhar a sua autoridade de xeque, Momade tinha-se oposto a que a ele Mussa fosse pago pela gente do Etagi, a indenização devida pela fratura do braço de um estafeta seu, persuadindo essa gente a indenizar diretamente o pró­prio ferido. Jamais se vira semelhante atro­pelo dá Charia. O estafeta era seu, mesmo dele, como membro da sua tribo, e a indenização pertencia-lhe como único dono do homem que ficara inutilizado e de todos os demais homens. O contrário seria uma imo­ralidade, um incitamento ao egoísmo, uma ofensa à tribo.
Eh-Eh; Aiô-Aiô; Alômai - apoiava a assem­bleia. E seguiu-se, com muitos pormenores, o rosário de todas as culpas do réprobo. A sua atitude em casos de propriedade pes­soal - favorecendo o espírito da ganância tão antagónico do ideal de fraternidade na tribo, pois só à custa do seu semelhante e roubando-o ou explorando, o um homem pode enriquecer enquanto os outros con­tinuam desprovidos, A sua oposição crimi­nosa, e ruinosa, contra o sistema miliciano de defesa da tribo pela imposição da serviço militar obrigatório a todos os homens validos - e a sua propaganda favorável às guardas de corpo permanentes, á moda dos brancos, mantidas na ociosidade à custa da tribo mesmo em tempo de paz.
As suas infrações constantes à Charia da caça - caçando só para ele, como as feras, a pouca caça comestível restante, que o costume imemorial mandava ser reservada às grandes caçadas coletivas depois das colheitas, em benefício de todos. Ofensa máxima - aquela sua prática de se apropriar de terrenos, absorvendo e vedando os melhores, os mais produtivos, com prejuízo da única dona do solo, que o nacionalizara empossando nele somente o régulo, para que este, com justiça igual, confiasse a cada qual aquela área que por si próprio e pelas suas mulheres pudesse cultivar, e não mais. E suma injúria - a do apelo para os tribunais brancos em questões da alçada judiciária tribal, sujeitando todos os demais às iniquidades do Direito europeu, em tudo antagônicas da Charia destruindo a vera essência do viver social macua. Ao branco, ao “filho do Rei”, só é licito recorrer em casos como aquele sob julgamento, que vão além da Charia., E, mesmo assim, só não desconvém fazê-lo quando, como naquelas circunstân­cias, visivelmente o Rei mandou para Angoche um “filho” com ordem de acatar a Charia.
Eh-Eh; Alô-Alô; Alômai - apoiavam todos, amigos e inimigos do Mussa, estimulados pela invocação da boa doutrina milenária.
Momade-Omar ainda replicou, outra vez ferindo a nota dos direitos, de muitos direi­tos, de todos os direitos ouvidos nas cantinas do Parapato e de Moçambique a outros de­senraizados da tradição tribal. E se não citou leis promulgadas em Cortes, se não in­vocou a letra dos venerandos Códigos do liberalismo reinol, porque a tanto não che­gava a sua sabença, não deixou de referir de­cisões tomadas à face do Direito europeu pelo comando da polícia e pelo julgado municipal nos dias, que ele considerava gloriosos, do antigo Governo de Angoche, anteriores àquela ominosa ditadura militar instituída por Mousinho de Albuquerque na pessoa do capitão-mor, a quem ele errando todas as passadeiras, supunha suspirando, também, pelo título antigo e mais pomposo de senhor governador. E para mais “engraxar” pedia “indulgência para aqueles brutos do mato” que nunca tinham tido a fortuna de viver, como lhe acontecera, em localidades administradas diretamente pelos brancos, onde havia muitos, todos gente grande, um governador, outros secretários, outros juízes, outros es­crivães, outros administradores dos concelhos, outros comissários da polícia com secretarias e livros e papel e tinta. Ao contrá­rio de Mussa-Piri, não falava voltado para o auditório, e não tinha um só Eh-Eh; Aiô!Aiô; de aplauso.
É claro que houve mais, muito mais dis­cursos de parte a parte.
Terminadas as alegações, ao nono dia, o branco, cheio de sede, antes de proferir a sentença pediu chá, que tomou com vagar em presença de toda aquela multidão abso­lutamente silenciosa - talvez por imaginar que a inocente libação fizesse parte do ritual judiciário, ou fosse mezinha inspiradora de justa decisão.
A sentença conformou-se com a Charia macua: Momade-Omar, com enorme surpresa sua, foi desapossado do xecado que usurpara, proibido na sua pessoa ou na dos seus des­cendentes de reabrir a contenda, e dester­rado para Moçambique com prisão na velha fortaleza quinhentista de S. Sebastião. Se­gundo a Charia, foram também resolvidos to­dos os crimes, como tal considerados à face da lei cafreal, cometidos durante a luta di­nástica e à sua sombra.
Para os meros delitos políticos pratica­dos de parte a parte foi decretada amnistia e perpétuo silêncio. O Uazir Mussa-Piri foi reintegrado no seu poder de xeque e prestou excelentes serviços, dedicados e leais.
Parece que mais tarde voltaram a prevale­cer os Códigos do liberalismo reinol sobre a Charia e que o Mussa foi destituido o que se afigura erro, mas não surpreenderá nin­guém, pois destas alcatruzadas está cheia a nossa história - e a dos outros também.

Quem foi este Gavana?
Veja o próximo e último “capítulo”!
* Milando: em Angola seria “Grande Maca” e em português “Grande problema”!

Maio, 2017






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