Um oficial em Moçambique -
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Grande Milando*
Aquele cargo com o seu título eufônico de Capitão-mor era
realmente interessante pela variedade e amplitude das ocupações, enquanto
resistiu o espirito que Mouzinho lhe insuflara.
Em Angoche, por muito afastado de Moçambique e por haver substituído,
com assinalada vantagem, o ridículo governo que vegetara no Parapato entre 1861
e 1897, constituía uma espécie de pro consulado à romana muito de apetecer a
gente moça com ombros e animo para suportar o fardo.
O capitão-mor, Gavana, como lhe chamavam os negros, era tudo: suprema
autoridade e primeiro obreiro.
É claro que na maior parte das suas quase ilimitadas atribuições tinha a
competência mais ou menos regulamentada pelas leis do reino e da província - na
medida do aplicável, mas havia uma esfera, inteiramente por codificar, que
pelas suas instruções lhe era tão especialmente recomendada como deixada por
inteiro à discrição do seu tino: era de juiz, único, em pleitos cafreaes.
O capitão-mor conhecia e comungava fielmente nas ideias gerais do comissário-régio
criador do cargo e que fora seu chefe supremo assim como seu
comandante-em-chefe. Achavam-se elas consubstanciadas nas modelares instruções
dadas por El-Rei D. Sebastião ao Viso-Rei na Índia, Dom Luis de Athayde.
Fazei muita cristandade. Fazei justiça. Conquistai tudo quanto poderdes.
Tirai cobiça dos homens e favorecei os que pelejaram.
Tende cuidado com a minha fazenda. E para tudo isto vos dou meu poder. Se o
fizerdes assim, muito bem, far-vos-hei mercê: e se fizerdes mal mandar-vos-ei
castigar. Se alguns Regimentos forem em contrário destas cousas
suponde que me enganaram e por isso não haja nada que vos estorve isto.
E se à primeira máxima a sua condição de mísero pecador decerto o impediu de dar brilho, da última teve de
socorrer-se constantemente, desde o dia da posse, no desempenho dos seus
deveres como julgador, tão inaplicáveis se lhe manifestaram os diversos códigos
metropolitanos promulgados pelo liberalismo reinol do século XIX e logo
mandados observar na África adusta.
E meteu-se a estudar afincadamente a Charia (Direito) macua. Suleimane-Issufo,
o octogenário irmão do sultão Hassani e de Mussa-Quanto, fora o seu primeiro
professor, logo nos tempos de simples comandante da Maravi.
Que maravilha de “máquina de guerra”! E que conforto!
Cinco anos depois, elevado a capitão-mor, já falecido o velho Suleimane,
valeram-lhe o Mualimo (Bispo) Xá-Daúde e outros. Nem lhe faltava tempo
para estudar e anotar princípios fundamentais, porque no transcurso de cada
doze meses os cinco da época das chuvas de todo impediam passeios pelo mato.
Dois anos de estudo e prática valeram-lhe nesse capítulo certa nomeada pelo
sertão, até ao ponto de um belo dia vir de Sangage uma deputação de notáveis
convidando-o a ouvir o velho pleito do xecado e a sentenciar sobre a matéria
arrumando o caso de uma vez para todas. Aceitou, como era seu dever, e
trasladou-se em correição para o posto militar durante nove dias, que tanto
durou o julgamento da causa. Por terem algum interesse, visto darem uma tal ou
qual ideia da formidável divergência existente entre a Charia tribal
macua e o Direito europeu se
resumem aqui as alegações procedentes recolhidas em nove fatigantes audiências
de sol a sol.
Era o que se chama na Contra-Costa um “milando grande”,
arrastado durante gerações seguidas e recheado de incidentes de toda a casta
que corriam de lés-a-lés o teclado da jurisprudência. Na sua origem assentara
sobre uma questão dinástica, causa primária de conflitos máximos entre povos.
Pertencer o xecado de Sangage ao Uazir Mussa-Piri (Vizir) ou ao usurpador
Momade-Omar, era o nó górdio. Cortado este, fácil seria liquidar perante a Charia
a vasta série de assaltos, morticínios, roubos, raptos e ofensas intertribais
praticadas durante mais de cem anos pelos partidários de um ramo dinástico
contra o outro.
Momade-Omar, nascido e educado entre os brancos do
Parapato, como o haviam sido já, em Moçambique, seu pai e seu avô, conhecia
pela observação do seu atento espírito de velhaco as noções gerais do Direito
europeu reveladas pela conduta correntia da gente do Rei.
Querendo agradar, “pintou-se de branco” na defesa do seu pleito,
alegando direitos, muitos direitos, e negando a cadeia de deveres que tanto
aperta e mantém a Charia macua.
A sua primeira negação em defesa própria foi a do “princípio
de responsabilidade”, basilar entre os cafres por ser o alicerce do organismo
tribal. Mussa-Piri não teve dificuldade em rebater-lha expondo, com aplauso de
todos os ouvintes, que o xecado exercia autoridade sobre várias tribos, cada
uma das quais estava subdividida em regulados, e estes em povoações compostas
por agrupamentos de famílias; e que assim como os filhos eram responsáveis
para com o pai pela sua conduta pessoal, assim este respondia perante o chefe
da povoação pela sua família, os chefes de povoação para com os seus régulos e
estes perante o xeque, chefe supremo do povo. E exemplificou com o caso de
furto (Momade-Omar tinha praticado muitos) mostrando na fase inicial das
investigações o local do crime e o ponto de partida, tornando responsável o chefe
da família ocupante do terreno até que prove a saída desse terreno da
cousa furtada, quer por mostrar para onde ela foi, quer por patentear o seu
rasto; e salientando como pela prova de saída feita de grau territorial
em grau territorial - local ocupado por uma família, área da povoação,
território do regulado - sempre esteve assente na Charia macua o “princípio
da responsabilidade” como cavilha mestra do edifício tribal. Eh-Eh; Aiô-Aiô;
Aíomai - aplaudia a assembleia,
E confortado pela impassibilidade do branco, aquecido pelo
auditório, reforçou: Que não, que o cafre
não tem direito algum a fazer o que lhe apraz. Que o macua, como filho,
sempre pertenceu absolutamente ao seu régulo como pai da tribo, em tudo e para
tudo, ele próprio e até a sua machamba
(horta) pois nem tem direito a tocar no milho ou no feijão colhido senão após o
Festival das Colheitas, de centenária tradição, depois de o régulo ter apartado
as quantidades precisas para satisfazer os espíritos dos antepassados e para
as compras de armamentos necessários à defeza da tribu. Que seria da salvação
desta se a gulotonaria de um Momade-Omar lhe permitisse faltar ás suas obrigações
tribais? Sem prosperidade e segurança para a sua tribo, o macua não teria defesa
alguma, visto não haver Charia
que regulamente as relações entre tribos, as quais sempre se têm por inimigas
umas das outras. Não tinha Mussa-Quanto uma vez chegado mesmo a proibir que as
pessoas morressem sem sua licença? Porquê? Porque antes deste Momade-Omar
também naquele tempo tinham aparecido heréticos do mesmo estofo a enfeitiçar
gente fazendo-a morrer, quando todos os homens válidos eram poucos para a
guerra contra a Imbamela e quando todos muito bem sabem pelas revelações do Liputu (Satanaz) que as pessoas só podem morrer de maneira
natural por velhice ou na guerra - e nunca sendo moças senão por efeito de
feitiçaria maligna apontada contra a grandeza e contra a existência da tribo,
tão dependentes do número e da força dos seus homens.
E volvendo-se acusador, Mussa-Piri exprobava a
Momade-Omar todas as suas comprovadas malas-artes. Para achincalhar a sua
autoridade de xeque, Momade tinha-se oposto a que a ele Mussa fosse pago pela
gente do Etagi, a indenização devida pela fratura do braço de um estafeta seu,
persuadindo essa gente a indenizar diretamente o próprio ferido. Jamais se
vira semelhante atropelo dá
Charia. O estafeta era
seu, mesmo dele, como membro da sua tribo, e a indenização pertencia-lhe como
único dono do homem que ficara inutilizado e de todos os demais homens. O
contrário seria uma imoralidade, um incitamento ao egoísmo, uma ofensa à tribo.
Eh-Eh; Aiô-Aiô; Alômai - apoiava a assembleia. E seguiu-se, com muitos
pormenores, o rosário de todas as culpas do réprobo. A sua atitude em casos de
propriedade pessoal - favorecendo o espírito da ganância tão antagónico do
ideal de fraternidade na tribo, pois só à
custa do seu semelhante e roubando-o ou explorando, o um homem pode enriquecer
enquanto os outros continuam desprovidos, A sua oposição criminosa, e
ruinosa, contra o sistema miliciano de defesa da tribo pela imposição da
serviço militar obrigatório a todos os homens validos - e a sua propaganda
favorável às guardas de corpo permanentes, á moda dos brancos, mantidas na
ociosidade à custa da tribo mesmo em tempo de paz.
As suas infrações constantes à Charia da caça - caçando só para ele,
como as feras, a pouca caça comestível restante, que o costume imemorial
mandava ser reservada às grandes caçadas coletivas depois das colheitas, em benefício
de todos. Ofensa máxima - aquela sua prática de se apropriar de terrenos,
absorvendo e vedando os melhores, os mais produtivos, com prejuízo da única
dona do solo, que o nacionalizara empossando nele somente o régulo, para que
este, com justiça igual, confiasse a cada qual aquela área que por si próprio e
pelas suas mulheres pudesse cultivar, e não mais. E suma injúria - a do apelo
para os tribunais brancos em questões da alçada judiciária tribal, sujeitando
todos os demais às iniquidades do Direito europeu, em tudo antagônicas da Charia
destruindo a vera essência do viver social macua. Ao branco, ao “filho do Rei”,
só é licito recorrer em casos como aquele sob julgamento, que vão além da Charia.,
E, mesmo assim, só não desconvém fazê-lo quando, como naquelas circunstâncias,
visivelmente o Rei mandou para Angoche um “filho” com ordem de acatar a Charia.
Eh-Eh; Alô-Alô; Alômai - apoiavam todos, amigos e inimigos do Mussa,
estimulados pela invocação da boa doutrina milenária.
Momade-Omar ainda replicou, outra vez ferindo a nota
dos direitos, de muitos direitos, de todos os direitos ouvidos nas cantinas do
Parapato e de Moçambique a outros desenraizados da tradição tribal. E se não
citou leis promulgadas em Cortes, se não invocou a letra dos venerandos
Códigos do liberalismo reinol, porque a tanto não chegava a sua sabença, não
deixou de referir decisões tomadas à face do Direito europeu pelo comando da
polícia e pelo julgado municipal nos dias, que ele considerava gloriosos, do
antigo Governo de Angoche, anteriores àquela ominosa ditadura militar instituída
por Mousinho de Albuquerque na pessoa do capitão-mor, a quem ele errando todas
as passadeiras, supunha suspirando, também, pelo título antigo e mais pomposo
de senhor governador. E para mais “engraxar” pedia “indulgência para aqueles
brutos do mato” que nunca tinham tido a fortuna de viver, como lhe acontecera,
em localidades administradas diretamente pelos brancos, onde havia muitos,
todos gente grande, um governador, outros secretários, outros juízes, outros escrivães,
outros administradores dos concelhos, outros comissários da polícia com
secretarias e livros e papel e tinta. Ao contrário de Mussa-Piri, não falava
voltado para o auditório, e não tinha um só Eh-Eh; Aiô!Aiô; de aplauso.
É claro que houve mais, muito mais discursos de parte
a parte.
Terminadas as alegações, ao nono dia, o branco, cheio
de sede, antes de proferir a sentença pediu chá, que tomou com vagar em
presença de toda aquela
multidão absolutamente silenciosa - talvez por imaginar que a inocente libação
fizesse parte do ritual judiciário, ou fosse mezinha inspiradora de
justa decisão.
A sentença
conformou-se com a Charia macua:
Momade-Omar, com enorme surpresa sua, foi desapossado do xecado que usurpara,
proibido na sua pessoa ou na dos seus descendentes de reabrir a contenda, e
desterrado para Moçambique com prisão na velha fortaleza quinhentista de S.
Sebastião. Segundo a Charia, foram também resolvidos todos os crimes,
como tal considerados à face da lei cafreal, cometidos durante a luta dinástica
e à sua sombra.
Para os meros
delitos políticos praticados de parte a parte foi decretada amnistia e perpétuo
silêncio. O Uazir Mussa-Piri
foi reintegrado no seu poder de xeque e prestou excelentes serviços,
dedicados e leais.
Parece que mais
tarde voltaram a prevalecer os Códigos do liberalismo reinol sobre a Charia
e que o Mussa foi destituido o que se afigura erro, mas não surpreenderá ninguém,
pois destas alcatruzadas está cheia a nossa história - e a dos outros também.
Quem foi este
Gavana?
Veja o próximo
e último “capítulo”!
* Milando:
em Angola seria “Grande Maca” e em português “Grande problema”!
Maio, 2017
Maio, 2017
MARAVILHA!!!
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