Luanda 1962 (ou
3?)
Cervejas e baratas
Faz
muito tempo e pode ser que a memória apresente algumas falhas, mas o que vamos
contar, em poucas linhas, retrata como era o tempo em que quase se via o Tarzan
a passear nas matas dos arredores daquela cidade que nos ficou “cá dentro”!
Vai
já lá para o tempo do Kaparandanda! Quando eu ainda trabalhava da Cuca!!!
Estes copos da “Cuca” têm uma
história curiosa. Qualquer dia eu conto.
Volta
e meia, raras vezes, felizmente, aparecia uma reclamação de tal forma violenta
que parecia que o mundo vinha abaixo; Alguém tinha encontrado uma garrafa,
fechada como de fábrica, com uma enorme baratona dentro.
“Aqui
d’El-Rei - o pessoal da Cuca são uns porcos, nem as garrafas lavam, isto
vai render um monte de dinheiro que é para eles aprenderem, etc.”
Lá
ia o pessoal do serviço de vendas falar com o cliente, quase sempre muito
renitente em aceitar que aquilo era obra de terceiros, porque a garrafa
parecia, efetivamente, inviolada.
Como
é de imaginar a Companhia não pagava um cêntimo, e o assunto acabava por se
resolver no papo, nuns copos, e pronto.
A
verdade é que para todo o pessoal da Cuca,
serviços de produção e comerciais, aquela baratas sempre foram um mistério!
Garrafas lavadas em máquinas, com água a 90° graus, soda cáustica, depois
detergente, etc., as garrafas saiam da máquina de lavar mais limpas do que
quando novas, e não havia a menor condição de uma barata, um prego ou que fosse
permanecer lá dentro.
Antes
do enchimento passavam pelo menos por duas funcionárias que viam até mosquito
na outra banda, e o mesmo se passava após cheias e capsuladas.
Baratas?
Um mistério que ficou por desvendar! Sabotagem? Azar? Chi lo sa?
Um
dia, num miserável comércio de beira de estrada, onde depois todos os brancos
sumiram, dia quente, para variar, de regresso lá dos interiores, parei para refrescar
a goela, saber como estava o abastecimento e... beber uma cervejinha. Lá dentro
um outro cliente berrava que lhe tinham servido uma cerveja com a tal baratinha
dentro. Aliás baratona. Imensa.
Não
me dei a conhecer como funcionário da Cuca, mas tentei explicar que
conhecia a fábrica e que tal situação era impossível de acontecer. O cliente
deve ter-me mandado para algum lugar pouco conveniente, e quem estava a servir
ao balcão era um garoto dos seus 12 ou 13 anos, que logo quis meter mais
gasolina no fogo: “Eu sei que “eles” lá não lavam as garrafas. Contou-me um
cliente que aqui passou!”
Já
a só, identifiquei-me e convidei-o a visitar a fábrica, o que fez brilhar os
seus olhos de jovem ignorante do mato.
A
Cuca faria 10 anos de atividade (?) e decidiu convidar todos os seus
clientes comerciantes, da cidade de Luanda e arredores, para uma visita à
fábrica seguida dum... lanchezinho!
Tudo
muito bem organizado, convites bonitos, impressos, encomenda a pasteleiros,
confeiteiros e ao cozinheiro da companhia, uma imensa quantidade de pasteis de
bacalhau, croquetes, pasteis de nata e outros doces, sanduiches diversos,
camarão “tira-gosto” e mais um monte de outros petiscos, incluindo os
indispensáveis tremoços, e uma dobradinha que se ia petiscando com um palito,
além de, o que seria de esperar, cerveja a copo – chope – a correr solta!
Aí
pelas 3 ou 4 da tarde os convidados, incluindo o garoto “convidado especial”,
foram chegando, a maioria gente humilde, relativamente poucos africanos, todos
envergando a fatiota mais chique que puderam encontrar, apresentavam o convite
na portaria onde eram recepcionados pelo Secretário da Administração, o meu
querido amigo João Matos Chaves para, como bom dono de casa, ir cumprimentando
todos os que apareciam.
Os
convidados eram agrupados, talvez uma dúzia de cada vez e um funcionário dos serviços
comerciais acompanhava-os na visita à fábrica, coisa que, praticamente todos,
não tinha ideia do que seria! Faziam perguntas. Extasiavam-se ao ver tão
“magníficas” instalações de onde saía aquela bebidinha gostosa, ‘a rainha das
cervejas” de Angola.
Entre
os convidados surgiu o porteiro da Companhia, todo “bem posto”, convite na mão.
-“Tu
aqui”? – “Sim sr. Dr. Eu tenho um pequeno comércio, a minha mulher ficou a
tomar conta da loja e eu vim aproveitar para conhecer a fábrica. Trabalho aqui
há cinco anos e nunca passei desta portaria”!
Acabada
a visita à fábrica dirigiam-se para o galpão onde normalmente ficavam
estacionados os caminhões de entrega, nessa tarde ocupado com inúmeras mesas
cheias de apetitosas iguarias.
A
primeira coisa que viam era um funcionário a oferecer-lhes um copo... bem
geladinha.
Soltos
em frente às mesas com os petiscos, era ver a velocidade como se saciavam e com
que rapidez iam virando os copos, garganta abaixo!
Chegaram
umas quantas dezenas de visitantes, que o tempo passado não permite já calcular
quantos teriam sido e, por muito que o pessoal da Companhia quisesse dialogar
com eles, as bocas entupidas de bacalhau e bolos não lhes permitia grandes
conversas.
O
dia chegava ao fim, e ninguém arredava pé. Festa daquela, “boca livre” com
cerveja na própria fábrica segurava a turma.
O
sol posto, as luzes da “garagem” acesas, uma boa porcentagem dos convivas já mal
se aguentava nas canelas, e ninguém atinava com a melhor maneira de os mandar
embora.
Surgiu
por fim uma ideia luminosa: apagar as luzes! Não todas mas as suficientes para
lhes mostrar que a festa chegara ao fim.
Foi
um Deus nos acuda. O povo decidiu que em cima das mesas não devia ficar nada e
vá de encher os bolsos das calças, do casaco e das camisas, com pasteis,
croquetes e até pasteis de nata. Houve alguns que cerimoniosamente vieram
perguntar se não nos importávamos que levassem “uns bolinhos para a esposa e
crianças”! “Podem levar tudo. Até facilita a limpeza que se seguirá. ”
E
foi o assalto final! Metia nojo ver aqueles selvagens a encherem os bolsos com
doces, salgados e ainda a quererem beber o último copo de cerveja.
Alguns
abriam a camisa e, em bom português enchiam o bandulho “externo”!
À
medida que se iam despedindo, bolsos e camisas cheias, pensámos (eu estava lá!)
que a melhor maneira de retribuir a simpática visita deles eram abraçá-los com
“viva” emoção, esmagando o que pudéssemos nos seus bolsos e barrigas! E lá foi
aquele bando de hienas, semi bêbedos, cheios de nódoas no corpo e na roupa o que
não os perturbou minimamente!
Não
deixaram uma só migalha para mais alguém aproveitar, o que facilitou imenso o
serviço de limpeza!
Depois
disto, o pessoal da Companhia, muito riu e muito se desgostou com a
bestialidade de alguns, felizmente a minoria.
Reclamações
de baratas... se não sumiram todas, ficaram reduzidas a muito vagas exceções.
Mas,
é preciso confessar: eram muito mais simpáticas aquelas baratinhas do que a
zika, o dengue, a chicungunha, a
madama vaca, o sapo ladrão, e outros bichos horrendos que infestam esta região,
além da tristíssima microcefalia. Sem esquecer o total desgoverno, a
desorganização na saúde, economia, educação, transportes... já chega, né?
Quem
não tem saudades de Luanda do tempo do Kaparandanda?
Como tenho cada vez mais consciência dos anos que lá passamos...
ResponderExcluirAdorei a sua descrição mesmo não gostando de cerveja!
Bj para todos
Bécas
Olá, amigo Francisco. Tenho andado mudo para não incomodar, mas sem esquecer os amigos. Leio sempre seu blog. Luanda também é o nome do bairro (outrora dos negros descendentes de escravidão) da minha pequena Alenquer do Pará, onde FGA viveu poucos anos mas dela sempre lembrava com uma "doce melancolia". Um abraço do amigo,
ResponderExcluirLuiz Ismaelino Valente
ismaelino@terra.com.br
Que saudades ... até das baratas que eu tanto odiava !
ResponderExcluir