quarta-feira, 17 de dezembro de 2014




O  RENASCER  DE  UMA (quase) LENDA

Devia, o calendário, marcar qualquer coisa como 1967 ou 8.
Um pequeno veleiro, o “ARGUS”, um yawl de carangueja, cheio de caracter, com um comprimento de 25’ 6” – 7,77 metros, 2,44 m. de boca e 1,10 m. de calado, com quilha fixa, foi mandado construir em Luanda pelo Ten. Cor. Jacinto Medina diretor da DTA, a antiga companhia aérea de Angola, e lançado à água em 1952.
Passeava-se orgulhoso por aquelas águas e ao vê-lo navegar levava-nos, ao tempo de meninos, a pensar nos piratas, nas ilhas do Caribe e dos mares do Sul, a sonhar!
Quando soube que iria ser vendido o meu coração deu um pulo: “o meu barco”! E foi.


Um dia, um muito querido primo, como irmão, na altura comandante do navio “Vera Cruz”, José de Azeredo e Vasconcelos, na sua passagem em Luanda, foi, com o orgulhoso proprietário do veleiro, dar a sua “opinião”! Gostou. Mostrei-lhe os planos do barco, e pediu que lhos emprestasse.
Algum tempo depois, em mais outra passagem por Luanda, chamou-me a bordo – onde normalmente eu já ia para ou simplesmente bebermos um copo ou jantar – o navio quase vazio depois de ter despejado mais uns milhares de militares para a guerra colonial, porque tinha um presente-surpresa para mim!
O carpinteiro de bordo, um homem habilissimo, tinha feito uma maquete do “ARGUS”, com uma precisão e um carinho, adimiráveis.
Montou o barco, à escala de 1/10, precisos, como se estivesse a construir um autêntico veleiro de mar. Vejam como fez o lançamento da quilha e cavernas:

Ao ver aquela pequena maravilha fiquei sem palavras (com a autorização do comandante, claro, dei um dinheirinho ao artista – nem tenho ideia quanto terá sido!) e quando regressei a casa levava nos braços, com o cuidado de quem carrega um recém nascido, aquela jóia linda, com dois beliches com colchões (!) na cabine, um pequeno abat jour na mesa, com uma lampada que se acendia, um luxo.

Já lá vão mais de quarenta e cinco anos! Quase sempre esteve em lugar de destaque na nossa sala.
Mas a vida foi peregrina. Entretanto tive que ir para Moçambique três anos e meio, regresso a Angola, mais um ano, foge – foge mesmo – para o Brasil – primeiro no interior do Estado do Rio, depois São Paulo, a seguir uma estadia em Portugal, e finalmente estabilizado (?) no Rio de Janeiro desde 1995.
O “ARGUS”, muito frágil, sempre navegou nessas viagens, embalado, e como é de calcular foi sofrendo um trauma aqui, outro além, peças frágeis, como o cimo dos mastros, bujarrona e outras, deixou de caber na casa onde hoje vivemos e foi dado a um dos filhos.
Pouco dado à náutica e sem muito espaço para colocar a belezura, foi jogado numa caixa, num canto e o tempo se encarregou que o preservar-estragar.
Velas rasgadas, dois rombos no casco, brandais cortados para se poderem retirar os mastros, todos os “cabos” – escostas, adriças, carregadeiras, etc. – num bolo tão emaranhado que levou dois dias para separar, um monte de outros problemas, e etc.!
Faltavam ainda uma série de pequenas peças, algumas ínfimas, e tudo teve que ser refeito.
Foram quase três semanas de trabalho, dois pares de óculos, um em cima do outro, face à pistosguice do “restaurador”, e finalmente o “ARGUS” está pronto para novo lançamento... não à água mas à exposição.
Agora já está com os cabos arrumados no convés como mandam os velhos e bons marinheiros:

O Nr. 29 do Club Naval de Luanda, irá qualquer dia lançar ferro, definitivamente, na sede deste clube, descansar na terra onde navegou imponente, e esperamos que viva ainda muitos e muitos anos. Está prometido, consta do meu testamento – verbal, que não tenho escrito –e oportunamente fará a última viagem, “triunfal”, para Angola.
Por enquanto fica um tempo aqui em casa, entre um quadro brasileiro e outro angolano, para eu olhando para ele gozar, enquanto deixo os sonhos me levarem para o tempo em que cruzávamos aquelas lindas águas da Baía de Luanda e do Mussulo, os filhos pequenos a adorarem os passeios, muitos amigos também, enfim parte da vida que o “ARGUS” guarda, não só para mim como para os primeiros donos.
E continua a envergar, no topo do mastro principal a flâmula do C.N.L. !

10-dez-14


Um comentário:

  1. FRANCISCO, AGORA QUE ESTOU A EMERGIR DAS FUNDURAS PARA ONDE A "PSEUDOPOLY" ME ATIROU, GUARDO OS SEUS TEXTOS, PARA OS IR LENDO COM DELÍCIA. ABRAÇOS.

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