Do Brasil por
Francisco G. de Amorim
As
“exemplares”
descolonizações portuguesas
Muito interessante o livro “Mazagão – la ville qui traversa l’Atlantique”, de Laurent Vidal, um
detalhado estudo sobre a famosa, e quase esquecida, transferência de toda a
população duma cidade no Marrocos para uma nova terra perdida em local perdido na
Amazônia.
Vista aérea, actual, de Mazagão, hoje chamada El Jadida
Talvez pouca gente saiba que, em 1769, Portugal decidiu
abandonar a praça forte de Mazagão, isolada em território marroquino, com uma
ilustre folha de serviços, na constante luta contra os mouros, e transferir
cerca de 2000 pessoas, para um lugar a criar de novo nas margens do Amazonas.
Teve duas finalidades essa transferência de toda a
população: primeiro acabar com o custo imenso de manter uma fortaleza, isolada
na costa de Marrocos, abastecida por mar, apesar de no seu entorno os
portugueses manterem uma espécia de horta e pomar, e sofrendo constantes
ataques das tropas marroquinas, e ao mesmo tempo criar o maior número possível
de vilas e defesa ao longo do Amazonas – Estado do Grão Pará – região cobiçada
por uma série de potências, como a Inglaterra e França e até os Estados Unidos.
A folha de serviços de Mazagão marroquino é, a todos os
títulos, notável. Uma pequena “cidade” fortificada, com saida direta para o
mar, habitada por gente denodada que defendia o cristianismo contra o
“paganismo dos mafomas”. Por outro lado a presença dessa pequena terra
encravada em solo maometano era um “tremenda ofensa” para os seguidores de
Maomé, e por muito e muita gente de que dispuséssem, os mouros nunca foram
capazes de vencer aquela posição. Só depois que Portugal se viu mais do que
endividado – para variar – e ter
concluido que a luta era insana, sem qualquer proveito nem para a cristandade
nem para os cofres reais, é que negociou com o Sultão a entrega da praça
fortificada, deixando sair toda a gente e podendo levar todos os seus
pertences.
Mapa
de Mazagão e suas hortas, vendo-se como era protegida a entrada/saida para o
mar
"Mazagão", em terras marroquinas,
encontrava-se sob o domínio da Coroa portuguesa desde 1486, embora os
portugueses apenas nela se tenham instalado só a partir de 1502 quando ergueram uma torre e
algumas instalações de campanha. Foi apenas em 1514 que a Coroa portuguesa decidiu a
fortificação permanente do local. Em 1561 os mouros cercaram Mazagão com um
exército de 150.000 homens, que abandonam dois meses e meio depois de terem
sofrido mais de vinte e cinco mil baixas em combate, contra somente cento e
dezessete portugueses.
Vale a pena, sobre este cerco, ler uma
espantosa história tirada do livro “Homens,
Espadas e Tomates” de Rainer Daehnhardt:
“Corria o
ano de 1562 e o Rei de Marrocos, Xerife Muley Abdala, tinha conhecimento de que
a guarnição portuguesa de Mazagão estava fortemente reduzida, tendo aí ficado
apenas alguns mal providos arcabuzeiros. O Capitão-mór estava ausente e o mouro
decidiu reconquistar a praça portuguesa. Juntou um exército de 15.000
cavaleiros, 8.000 arcabuzeiros, 70.000 soldados de infantaria, com 12.000 gastadores
e gente de serviço. Para os governar, mandou por Mestre de Campo General um
cristão renegado, soldado velho e muito experimentado na guerra e que estivera
muitos anos ao serviço do Imperador Carlos V.
Enviou
também muita gente de artilharia e fidalgos de toda a Mauritânia, que consigo
queriam compartilhar esta vitória segura.
Cercando
a praça, viu que a sua artilharia seria de pouco efeito perante as dimensões
da muralha. Mandou então fazer uma trincheira de terra, com baluartes, tão alta
que igualasse o muro para melhor combater os portugueses. Comandava a praça o
Capitão-mór Rodrigo de Sousa com 100 cavaleiros e 700 infantes.
As
notícias do cerco chegaram a Portugal e perante a grande desigualdade do número
de combatentes resolveram muitos portugueses, sem licença da Rainha-Regente,
Dona Catarina (D. Sebastião ainda só tinha 8 anos), fazerem-se ao mar para
acudir à nossa gente. Um Jorge da Silva reuniu no Algarve 300 guerreiros
voluntários e 100 marinheiros, que se fizeram a Mazagão à sua custa num velho
navio, o que muito animou os sitiados. Os mouros, entretanto, atacavam a praça
por todos os lados, ao mesmo tempo que construíam a sua rampa gigante para daí encher
o fosso e chegar ao cimo das nossas muralhas.
A
trincheira era tão larga que "pateavam por ela sessenta cavalos, todos
a par". Considerando a sua rampa pronta, acometeram a praça, todos
pelo mesmo lado, rompendo com a nossa defesa e implantando uma grande bandeira
numa das nossas torres. A fúria dos nossos foi tanta que se envolveram com os
mouros numa luta corpo a corpo, de tal forma que os corpos dos mortos e feridos
enchiam o lugar. Não aguentando a nossa fúria, os mouros retiraram-se, perdendo
milhares de homens e cinco das suas bandeiras. O cronista conta-nos: "Durou
esta sanguinolenta e cruel batalha bem quatro horas, e foy de ambas as partes
tão bem pelejada, que se não sabia julgar melhoria de alguma em todo aquelle
tempo: espectáculo verdadeiramente horrendo à vista, e muy digno de ser
estimado de todos.
Não
conseguindo tomar a fortaleza pelo assalto directo, resolveram então os mouros,
com a perícia dos seus engenheiros, construir uma grande mina para tentar
chegar à muralha, por baixo. A sua ideia era rebentar uma grande quantidade de
pólvora que derrubasse a nossa muralha, para assim mais facilmente poderem
entrar.
Os
nossos
ouviam os toques de picareta e resolveram construir uma contramina. No escuro
da terra, encontraram-se e envolveram-se numa batalha sangrenta de onde os
nossos saíram vencedores e depois se retiraram. Pensaram então os engenheiros
mouros que os portugueses lhes tinham feito um favor com a contramina, pois
facilitara-lhes o avanço sob as muralhas. Fizeram de conta que tinham desistido
de se aproximar por esta mina mas, na calada da noite, foram introduzindo
grandes quantidades de barris de pólvora.
O
que os mouros desconheciam é que, na realidade, havíamos construído não uma
mas duas minas, a coberto do barulho causado pelas suas próprias picaretas! Uma
encontrava-se ao nível da deles e, a outra, mais abaixo. Já estávamos a contar
que reutilizassem a sua mina e que a enchessem de pólvora. Entretanto, tínhamos
colocado grande quantidade de pólvora na segunda, precisamente por baixo da
mina deles, e entupido a de cima. Antes que os mouros se aproximassem demais da
fortaleza, fizemos rebentar a nossa. A deles explodiu juntamente. A intensidade
do estrondo foi tal que levantou o planalto onde se encontrava grande número
de mouros! Conta o cronista: "Levantou-se para o ar huma grande
montanha de terra, bem povoada de lustrosos soldados mouros, e turcos, e todos
armados, forão pelo ar feitos pedaços.
Foram
mais de mil cavaleiros mortos, e feridos, e queimados hum numero quasi
infinito. E o terreno se rebaixou mais de vinte palmos, tanto que ficou a nossa
artilharia descuberta, e começou avarejar grande estrondo, acompanhado da
arcabuzeria, e matava nos mouros com espanto".
Devem ter havido poucas explosões, antes do actual século,
com esta envergadura e resultado!
(Pedro de Mariz: "Diálogos de Varia Historia", tomo
II, diálogo quinto).”
A
cisterna, por baixo da cidade
A guarnição portuguesa permaneceu sempre fiel e
disposta sempre a dar a vida pelo rei e pela Cruz, honrando-se os seus
habitantes dos feitos presentes e dos seus antepassados.
Alguns passaram anos prisioneiros dos mouros,
aprendendo a falar árabe corretamente. Nas vésperas do abandono, Portugal pagou
800.000 reis para resgatar trinta e cinco prisioneiros portugueses.
Muito deles eram cavaleiros fidalgos, jovens
que procuravam nas armas demonstrar a sua valentia e procurando o
reconhecimento real, sempre à espera de novos ataques, sem que um só dia
esmorecessem.
Furtado Mendonça, irmão do famoso e famigerado
Marquês e Pombal, ministro da Marinha, foi o mentor e coordenador do abandono daquela
cidade, entretanto novamente cercada por mais de 120.000 mouros “garantindo”
que os portugueses não voltariam atrás no acordo, decidindo transferi-los, como
colonos, para a Amazônia onde seria criada uma nova povoação, a Nova Mazagão.
Era gente preparada para lutar e defender as
suas convicções, nenhum deles agricultor, sem mentalidade de colonos, muitos
cavaleiros fidalgos, alguns tendo sido agraciados por mercê com o Hábito de
Cristo, o equivalente hoje à honorífica Ordem Militar de Cristo.
E, de repente, todos são retirados da sua
cidade-fortaleza, levando consigo pouco mais do que a roupa que tinham vestido,
fazendo transbordo em Lisboa, como um bando de refugiados, para serem, como
degredados, enviados para o “fim do mundo”, onde a maioria veio a passar fome e
morrer de malária.
Este deslocamento de toda uma comunidade,
brutal, fria, lembra os atuais campos de refugiados, onde vivem em condições
quase zoológicas milhares de curdos fugidos ao extermínio.
Um desenraizar total, a perca dos vizinhos e
amigos, da sua casa, da sua estrutura de vida, um autêntico inferno para
adultos e crianças, que não sabem o que estão a fazer em barracas. Tal se
passou em 1769.
Poucos conseguiram sobreviver de forma
relativamente condigna, e de toda essa gente só dois foram capazes de se
adaptar ao novo ambiente amazônico e viver da agricultura, através do trabalho
de escravos e de índios que lhes foram entregues.
Portugal deveria ter prática de colonização.
Começa no século XII com a Reconquista, levando gente do norte para ir ocupando
o centro e sul do país. No século XV foram as ilhas, Madeira, Açores e Cabo
Verde, mais tarde é Afonso de Albuquerque que promove o casamento de
portugueses com mulheres indianas. A seguir foi São Tomé e o Brasil. Por fim
Angola e Moçambique.
Mas as descolonizações foram “exemplares”, como
esta de atirar com dois milhares de pessoas para o interior da Amazônia, sem
que houvesse a preocupação de previamente criar condições de sobrevivência, e
mais tarde o abandono das colônias de África e Timor, entregando os seus
habitantes a infindas guerras fratricidas e os portugueses às suas sortes,
espalhados depois pelos quatro cantos do mundo.
Por agora só lhe resta a possibilidade de...
promover a descolonização do seu território europeu, dos milhares de novos
colonos, idos do Leste Europeu, de África e do Brasil!
Passado glorioso com páginas lastimáveis.
Hoje a ex-Mazagão, El Jadida, está inscrita no
Património Mundial da Unesco. Uma beleza.
29/10/2014