segunda-feira, 9 de setembro de 2013


Histórias e Memórias

Os Portugueses


Faz tempo, lá pelos idos dos anos 60, descobri que para conhecer os portugueses “que deram mundos ao mundo”, deveria ter já lido o livro que me fez conhecer a índole e alma daqueles de quem eu sabia descender e pensava conhecer.
Mas, até então, nunca havia encontrado explicação para o “estar no mundo”, durante tantos séculos. Foi Gilberto Freyre com o seu famoso livro “Casa Grande e Senzala” – mais tarde estupida e covardemente condenado e criticado – que me fez conhecer e compreender melhor a gente da minha “raça”, a posição do português e a sua marca deixada em todos os continentes.
Não esqueço nunca uma frase do mestre Gilberto Freyre, quando se referia aos portugueses que ele visitara no interior de Portugal, gente humilde, simples, rija, quando dizia “adoro analfabetos”!
São os “analfabetos”, os simples, os que têm garantido “o reino dos céus”.
Antes disto foram talvez a Alda e o Ernesto Lara com os seus poemas, que ainda hoje conseguem arrancar humidade dos meus olhos, que me ajudaram a melhor ver o Outro.
Agora um outro livro, “Um olhar para Portugal no Mundo”, do Prof. J. Paiva Boléo-Tomé, traz alguns elementos, novos para o olhar de incultos, que nos obrigam a, bem devagar, mastigar as páginas de feitos sublimes que conseguiram preservar a memória dos Portugueses no Mundo.
Em finais do ano passado, neste mesmo blog escrevi sobre a memória dos portugueses na Indonésia, em ilhas distantes de tudo, infelizmente, chamado de civilizado. Ali se cultua com respeito e devoção a grandeza de alma daqueles que um dia lá chegaram em pequenas cascas de noz e os trataram como irmãos.
De tudo o que este livro de Boléo-Tomé nos relata, evidencia-se uma das maiores obras, que em todos os tempos marcaram a presença portuguesa por TODO o mundo: as Misericórdias, os hospitais que foram das primeiras obras a serem criadas aonde chegavam os navegadores.
Hospitais que nos fins do século XV foram organizados de molde a poderem, ainda hoje, servir de modelo de organização e eficiência, com objetivos perfeitamente definidos, sobretudo quando manda que nessas instituições sejam tratados, de igual forma, ricos e pobres, cristãos, judeus ou pagãos.
E as Misericórdias espalharam-se por todos os cantos do planeta, com um sucesso ainda hoje bem real.
A de Goa, fundada no primeiro quartel de quinhentos, onde se internaram até rumes (os muçulmanos nossos adversários na Índia) obra que espalhou o nome dos portugueses pelo Industão, e todo o Oriente; a do Rio de Janeiro, fundada de urgência em 1582 para tratar de marinheiros espanhóis que estavam morrendo de escorbuto; o primeiro hospital do Japão, fundado pelo jesuita Luis de Almeida em 1525, onde se criou uma autêntica escola de medicina – Nanban-Ryu-Igaku-Geka – e hoje de tal forma reconhecida que em 2009, em Oita, ilha de Kyushu, foi inaugurado o novo edifício do hospital, com toda a tecnologia moderna, mas mantendo o nome de Hospital Luis de Almeida.
E foram centenas as misericórdias criadas pelos portugueses: Ceuta, Macau, Bahia, Luanda e sempre e onde conseguiam um pedaço de terreno para comerciar e tratar dos doentes.
Duas pequenas histórias, ouvidas e vividas, me ascendem à memória, e que ilustram bem  o tal “modo de estar” ou de “ser”.
Lembro...
Do que me contou um capelão do exército que tinha estado na Índia com tropas portuguesas. Nos hospitais indianos os párias, a última e mais baixa e pobre classe de gente daquelas paragens, gente desprezada, considerada imunda e lixo, quando adoecia, e adoeciam muitos porque viviam miseravelmente, eram confinados em isolamento e os médicos não se dignavam sequer visitá-los! Eram párias, e pária era quase abaixo de gente! Os médicos portugueses eram os únicos que o faziam sendo sempre objeto de reclamação dos colegas hindus! O próprio capelão lá ia todos os dias levar um pouco de consolação àqueles segregados, mesmo não sendo eles cristãos!

Em Luanda, um dia, acompanhei o grande ator Raul Solnado (que Deus o tenha), a visitar o Hospital Militar. O diretor, amável, foi-nos mostrar as salas de tratamento, de operações, as enfermarias, etc. e, à porta de uma delas estava postado um soldado, equipado e de arma na mão! O Solnado, como eu, achou aquilo estranho, e o diretor então explicou-nos: “ ali naquela cama – era uma enfermaria com umas oito camas todas com gente estropiada, pernas e cabeças engessadas, braços levantados com pesos, enfim um espetáculo de guerra – está um terrorista que foi apanhado numa operação”. E o Solnado, olhos arregalados: “Vocês tratam aqui dos terroristas, e ao lado dos soldados portugueses?” – “Tratamos.” – “E depois o que lhe fazem? – “Quando estiver curado mandamo-lo embora. Aquele, por acaso, é a terceira vez que é apanhado ferido e que nós tratamos.”
O Solnado pareceu entrar num mundo irreal; pediu um café, forte, tanto mais que a seguir ia dar um espetáculo para os doentes, e não podia ir entristecido. Tinha que os fazer rir! Não dava para acreditar. Portugal em guerra, apanhava os inimigos feridos, tratava deles como se fossem portugueses e depois... deixava-os ir embora!!!
Passa pela cabeça de alguém que qualquer outro povo – ingleses, franceses, americanos, espanhóis, etc. – fosse capaz de tais atitudes? Jamais.
Coisa mesmo de português! Que estes poemas identificam:
Primeiro, um pouco da grande poetisa de Angola, Alda Lara, médica, que morreu muito nova:
Que o meu coração
se abra à mágoa das tuas mágoas
e ao prazer dos teus prazeres
Irmão,
Que as minhas mãos brancas se estendam
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras ...
E o meu suor se junte ao teu suor,
quando rasgarmos os trilhos
de um mundo melhor!
E agora um pouco mais do seu irmão, o Ernesto Lara Filho, também de Benguela:

Nesse tempo, Edelfride,
Com quatro macutas a gente comprava
Dois pacotes de ginguba na loja do Guimarães.
Nesse tempo, Edelfride,
com meio angolar a gente comprava
cinco mangas madurinhas no Mercado de Benguela.
Nesse tempo, Edelfride,
montados em bicicletas a gente fugia da cidade
e ia prás pescarias ver as traineiras chegar
ou então à horta do Lima Gordo
no Cavaco comer amoras fresquinhas
Nesse tempo, Miau,
(alcunha que mantiveste no futebol)
nós fazíamos gazeta da escola coribeca
e íamos os quatro jogar sueca
debaixo da mandioqueira.
Era no tempo
em que o Saraiva Cambuta batia na mulher
e a gente gostava de ver a negra levar porrada.
Era no tempo dos dongos da ponte
dos barcos de bimba
dos carrinhos de papelão
Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!
Era no tempo do visgo
que a gente punha na figueira brava
para apanhar bicos-de-lacre e seripipis
os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires
que tinha aquele quintalão grande e gostava dos meninos.
Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.
Mais tarde vieram os passeios noturnos
à Massangarala e ao Bairro Benfica.
E o Bairro Benfica ao luar
O poeta Aires a cantar
(Meu amor da rua onze e seu colar de missangas...)
Tudo era bonito nesse tempo
até o Salão Azul dos Cubanos (*)
e o Lanterna Vermelha - o dancing do Quioche.
Foi então que a vida me levou para longe de ti:
parti para estudar na Europa
mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,
meu companheiro mulato dos bancos de escola
porque tu me ensinaste a fazer bola de meia
cheia de chipipa da mafumeira.
Tu me ensinaste a compreender e a amar
os negros velhos do bairro Benfica
e as negras prostitutas da Massangarala
lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita
[essa mulata...)
Tu me ensinaste onde havia a melhor quissângua de Benguela:
era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro
quando a gente vai na Escola da Liga.
Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora
Infância Perdida sonhos dos tempos de menino.
Tudo isso te devo companheiro dos bancos de escola
Isso e o aprender a subir aos tamarineiros
a caçar bituítes com fisga
aprender a cantar num kombaritòkué
o varrer das cinzas do velho Camalundo.
Tudo isso perpassa me enche de sofrimento.
Diz a tua Mãe
que o menino branco um dia há-de voltar
cheio de pobreza e de saudade
cheio de sofrimento
quase destruido pela Europa.
Ele há-de voltar
para se sentar à tua mesa
e voltar a comer contigo
e com teus irmãos e meus irmãos
aquela moambada de domingo
com quiabos e gengibre
aquela moambada que nunca mais esqueci
nos longos domingos tristes e invernais da Europa
ou então aquele calulu de dona Ema.
Diz a tua Mãe, Edelfride,
que ela ainda me há-de beijar como fazia
quando eu era menino branco bem tratado
quando fugia da casa de meus Pais
para ir repartir a minha riqueza com a vossa pobreza.

E pensar, aliás, saber, que ainda existem muitos, muitos, com complexo de “vira-lata” que preferiam ser descendentes de ingleses, holandeses ou americanos!
Algum deles fez um outro Brasil? Ou preocupou-se com os pobres, ou estendeu a sua mão branca a outra mão negra?
O sonho de Luther King há muito, e em muito lugar, já se havia concretizado!
Por quem?


07/09/2013

2 comentários:

  1. Domingos de Sousa Coutinho9 de setembro de 2013 às 12:58

    Caro Chico, mais uma vez a História, gostei muito e hoje em Portugal algumas passagens servem de capuz a alguns Politicos que por lá andam, especialmente os Alegres e Soares mais outros tantos comparsas que de História sabem pouco ou nada apesar de se nomearam "letrados",fvr se tiveres mais envia mais uma aula ,pois apesar de velho gosto de aprender.
    Abraço

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  2. Sou português e em Portugal vivo. Sou português, revoltado. E por Angola passei, obrigado, como combatente, entre 1965 e 1968. Mas o meu combate era outro. Graças a Deus ou sei lá a quem, fui dos que apertaram a mão ao irmão negro.
    Este texto "OS PORTUGUESES" e os versos dos LARA deixam-me uma réstia de orgulho em ser português.

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