Histórias e Memórias
Os
Portugueses
Faz
tempo, lá pelos idos dos anos 60, descobri que para conhecer os portugueses
“que deram mundos ao mundo”, deveria ter já lido o livro que me fez conhecer a
índole e alma daqueles de quem eu sabia descender e pensava conhecer.
Mas,
até então, nunca havia encontrado explicação para o “estar no mundo”, durante
tantos séculos. Foi Gilberto Freyre com o seu famoso livro “Casa Grande e Senzala” – mais tarde estupida e covardemente
condenado e criticado – que me fez conhecer e compreender melhor a gente da
minha “raça”, a posição do português e a sua marca deixada em todos os
continentes.
Não
esqueço nunca uma frase do mestre Gilberto Freyre, quando se referia aos
portugueses que ele visitara no interior de Portugal, gente humilde, simples,
rija, quando dizia “adoro analfabetos”!
São
os “analfabetos”, os simples, os que têm garantido “o reino dos céus”.
Antes
disto foram talvez a Alda e o Ernesto Lara com os seus poemas, que ainda hoje
conseguem arrancar humidade dos meus olhos, que me ajudaram a melhor ver o
Outro.
Agora
um outro livro, “Um olhar para Portugal
no Mundo”, do Prof. J. Paiva Boléo-Tomé, traz alguns elementos, novos para o
olhar de incultos, que nos obrigam a, bem devagar, mastigar as páginas de
feitos sublimes que conseguiram preservar a memória dos Portugueses no Mundo.
Em
finais do ano passado, neste mesmo blog escrevi sobre a memória dos portugueses
na Indonésia, em ilhas distantes de tudo, infelizmente, chamado de civilizado. Ali
se cultua com respeito e devoção a grandeza de alma daqueles que um dia lá
chegaram em pequenas cascas de noz e os trataram como irmãos.
De
tudo o que este livro de Boléo-Tomé nos relata, evidencia-se uma das maiores
obras, que em todos os tempos marcaram a presença portuguesa por TODO o mundo:
as Misericórdias, os hospitais que foram das primeiras obras a serem criadas aonde
chegavam os navegadores.
Hospitais
que nos fins do século XV foram organizados de molde a poderem, ainda hoje,
servir de modelo de organização e eficiência, com objetivos perfeitamente
definidos, sobretudo quando manda que nessas instituições sejam
tratados, de igual forma, ricos e pobres, cristãos, judeus ou pagãos.
E
as Misericórdias espalharam-se por todos os cantos do planeta, com um sucesso
ainda hoje bem real.
A
de Goa, fundada no primeiro quartel de quinhentos, onde se internaram até rumes (os muçulmanos nossos adversários
na Índia) obra que espalhou o nome dos portugueses pelo Industão, e todo o
Oriente; a do Rio de Janeiro, fundada de urgência em 1582 para tratar de
marinheiros espanhóis que estavam morrendo de escorbuto; o primeiro hospital do
Japão, fundado pelo jesuita Luis de Almeida em 1525, onde se criou uma autêntica
escola de medicina – Nanban-Ryu-Igaku-Geka
– e hoje de tal forma reconhecida que em 2009, em Oita, ilha de Kyushu, foi inaugurado o novo edifício do hospital, com toda a
tecnologia moderna, mas mantendo o nome de Hospital Luis de Almeida.
E
foram centenas as misericórdias criadas pelos portugueses: Ceuta, Macau, Bahia,
Luanda e sempre e onde conseguiam um pedaço de terreno para comerciar e tratar
dos doentes.
Duas
pequenas histórias, ouvidas e vividas, me ascendem à memória, e que ilustram
bem o tal “modo de estar” ou de “ser”.
Lembro...
Do
que me contou um capelão do exército que tinha estado na Índia com tropas
portuguesas. Nos hospitais indianos os párias, a última e mais baixa e pobre
classe de gente daquelas paragens, gente desprezada, considerada imunda e lixo,
quando adoecia, e adoeciam muitos porque viviam miseravelmente, eram confinados
em isolamento e os médicos não se dignavam sequer visitá-los! Eram párias, e
pária era quase abaixo de gente! Os médicos portugueses eram os únicos que o
faziam sendo sempre objeto de reclamação dos colegas hindus! O próprio capelão
lá ia todos os dias levar um pouco de consolação àqueles segregados, mesmo não
sendo eles cristãos!
Em
Luanda, um dia, acompanhei o grande ator Raul Solnado (que Deus o tenha), a visitar
o Hospital Militar. O diretor, amável, foi-nos mostrar as salas de tratamento,
de operações, as enfermarias, etc. e, à porta de uma delas estava postado um
soldado, equipado e de arma na mão! O Solnado, como eu, achou aquilo estranho,
e o diretor então explicou-nos: “ ali
naquela cama – era uma enfermaria com umas oito camas todas com gente
estropiada, pernas e cabeças engessadas, braços levantados com pesos, enfim um
espetáculo de guerra – está um terrorista
que foi apanhado numa operação”. E o Solnado, olhos arregalados: “Vocês tratam aqui dos terroristas, e ao
lado dos soldados portugueses?” – “Tratamos.” – “E depois o que lhe fazem? –
“Quando estiver curado mandamo-lo embora. Aquele, por acaso, é a terceira vez
que é apanhado ferido e que nós tratamos.”
O
Solnado pareceu entrar num mundo irreal; pediu um café, forte, tanto mais que a
seguir ia dar um espetáculo para os doentes, e não podia ir entristecido. Tinha
que os fazer rir! Não dava para acreditar. Portugal em guerra, apanhava os
inimigos feridos, tratava deles como se fossem portugueses e depois...
deixava-os ir embora!!!
Passa
pela cabeça de alguém que qualquer outro povo – ingleses, franceses,
americanos, espanhóis, etc. – fosse capaz de tais atitudes? Jamais.
Coisa
mesmo de português! Que estes poemas identificam:
Primeiro,
um pouco da grande poetisa de Angola, Alda Lara, médica, que morreu muito nova:
Que o
meu coração
se abra à mágoa das tuas mágoas
e ao prazer dos teus prazeres
Irmão,
Que as minhas mãos brancas se estendam
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras ...
E o meu suor se junte ao teu suor,
quando rasgarmos os trilhos
de um mundo melhor!
E
agora um pouco mais do seu irmão, o Ernesto Lara Filho, também de Benguela:
Nesse tempo, Edelfride,
Com quatro macutas a gente comprava
Dois pacotes de ginguba na loja
do Guimarães.
Nesse tempo, Edelfride,
com meio angolar a gente
comprava
cinco mangas madurinhas no
Mercado de Benguela.
Nesse tempo, Edelfride,
montados em bicicletas a gente
fugia da cidade
e ia prás pescarias ver as traineiras
chegar
ou então à horta do Lima Gordo
no Cavaco comer amoras
fresquinhas
Nesse tempo, Miau,
(alcunha que mantiveste no
futebol)
nós fazíamos gazeta da escola
coribeca
e íamos os quatro jogar sueca
debaixo da mandioqueira.
Era no tempo
em que o Saraiva Cambuta batia
na mulher
e a gente gostava de ver a
negra levar porrada.
Era no tempo dos dongos da
ponte
dos barcos de bimba
dos carrinhos de papelão
Como tudo era bonito nesse
tempo, Miau!
Era no tempo do visgo
que a gente punha na figueira
brava
para apanhar bicos-de-lacre e
seripipis
os passarinhos que bicavam as
papaias do Ferreira Pires
que tinha aquele quintalão
grande e gostava dos meninos.
Era no tempo dos doces de
ginguba com açúcar.
Mais
tarde vieram os passeios noturnos
à
Massangarala e ao Bairro Benfica.
E o
Bairro Benfica ao luar
O poeta
Aires a cantar
(Meu amor
da rua onze e seu colar de missangas...)
Tudo
era bonito nesse tempo
até o Salão Azul dos Cubanos (*)
e o Lanterna Vermelha - o dancing do Quioche.
Foi então que a vida me levou para longe de ti:
parti para estudar na Europa
mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,
meu companheiro mulato dos bancos de escola
porque tu me ensinaste a fazer bola de meia
cheia de chipipa da mafumeira.
Tu me ensinaste a compreender e a amar
os negros velhos do bairro Benfica
e as negras prostitutas da Massangarala
lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita
[essa mulata...)
Tu me ensinaste onde havia a melhor quissângua de
Benguela:
era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro
quando a gente vai na Escola da Liga.
Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora
Infância Perdida sonhos dos tempos de menino.
Tudo isso te devo companheiro dos bancos de escola
Isso e o aprender a subir aos tamarineiros
a caçar bituítes com fisga
aprender a cantar num kombaritòkué
o varrer das cinzas do velho Camalundo.
Tudo isso perpassa me enche de sofrimento.
Diz a tua Mãe
que o menino branco um dia há-de voltar
cheio de pobreza e de saudade
cheio de sofrimento
quase destruido pela Europa.
Ele há-de voltar
para se sentar à tua mesa
e voltar a comer contigo
e com teus irmãos e meus irmãos
aquela moambada de domingo
com quiabos e gengibre
aquela moambada que nunca mais esqueci
nos longos domingos tristes e invernais da Europa
ou então aquele calulu de dona Ema.
Diz a tua Mãe, Edelfride,
que ela ainda me há-de beijar como fazia
quando eu era menino branco bem tratado
quando fugia da casa de meus Pais
para ir repartir a minha riqueza com a vossa pobreza.
E pensar,
aliás, saber, que ainda existem muitos, muitos, com complexo de “vira-lata” que preferiam ser
descendentes de ingleses, holandeses ou americanos!
Algum
deles fez um outro Brasil? Ou preocupou-se com os pobres, ou estendeu a sua mão
branca a outra mão negra?
O
sonho de Luther King há muito, e em muito lugar, já se havia concretizado!
Por
quem?
07/09/2013