quinta-feira, 25 de abril de 2013



QUALIDADE  DE  VIDA



Há dias o mestre João Ubaldo Ribeiro, numa das suas sempre divertidas crónicas, escreveu esta pequena passagem que é uma delícia:
Gugu Galo Ruço, que é várias vezes rico milionário em Salvador e vem à ilha (Itaparica) treinar deitar na rede, me esclareceu a posição que prevalece na terra.
— O problema — disse ele — é que, para garantir qualidade de vida, a gente tem que sacri¬ficar muito a qualidade de vida. Faz cada exercício medonho, come regrado, não come açúcar, não come gordura, não come carne vermelha, não come conserva, metade do prato é capim, não fuma, bebe uma merreca de um dedal de vinho por dia, não perde noite, não toma porre, passa o dia inteiro bebendo água, tem que ter muita abnegação.
— Mas assim você garante uma boa qualidade de vida na velhice.
— E na velhice eu vou poder fazer todas essas coisas?
— Não, claro que não. Não é isso o que...
— Quer dizer, não faço nem na mocidade nem na velhice, é isso? Assim, ou eu vivo ou tenho qualidade de vida. Eu cheguei à conclusão de que viver é preferível.

Há já umas dezenas de anos, um Grande Amigo, que foi o diretor da Escola de Regentes Agrícolas de Évora, sempre muito rosado, pressão arterial alta, fumando um a dois maços de cigarros por dia, o médico disse-lhe que precisava deixar de fumar.
- E que ganho eu com isso?
- Hummm! Talvez mais uns cinco anos de vida.
- Quer dizer que vou viver mais alguns anos mas sempre chateado por não poder fumar! Não. Não vou deixar de fumar.
Morreu, com 73 anos, ataque cardíaco, quase fulminente, e enquanto viveu nunca mais se preocupou com os tais hipotéticos anos que poderia ter vivido a mais, mas... chateado!

Hoje, com a proliferação dos planos de saúde, ir a um médico é garantia de que a sua saúde vai mal. Mesmo que não vá nada mal. Ele irá sempre descobrir o que precisa ser visto, examinado, e o manda fazer radiografias, electrocardiograma, análises de sangue, e mais umas quantas outras, que são sempre uma tremenda aporrinhação. Marca hora, mete-se no trânsito, espera, faz os exames, volta uns dias depois para buscar os resultados, novamente marca consulta com o médico e, quando ele os examina, encontra lá no fundo um problema. “Eu bem me parecia”, diz o hipocrático com ar sério, testa franzida. E caneta na mão para pedir mais exames.
E volta a peregrinação. Mas... “entretanto tome os seguintes medicamentos”: um para o coração que faz mal ao estômago, outro para proteger o estômago mas que arruina o fígado, e ainda um terceiro que não serve para nada, com um nome com 247 letras que serve para... para que serve este, doutor?
O paciente, pacientemente, e antevendo a sua hora final chegar mais depressa do que havia imaginado, gasta um monte de grana na farmácia, começa a envenevar-se com tanta química, e cada vez se sente pior.
E o negócio dos planos de saúde... fulgurante, cresce como foguete interplanetário.

Lembro de uma história que tem uma infinidade de anos:
- Uma senhora, velhinha, chegou aos 99 anos e, em santa paz entregou a alma ao Infinito. No seu testamento fez questão de destacar uma lembrança para o médico que tantos anos a havia acompanhado. Uma bela arca, antiga, valiosa, com bonitas ferragens em bronze.
O médico avisado desta gentileza corre a casa da defunta, encanta-se com o móvel que esta lhe deixara e ao tentar carregá-lo para casa viu que estava muito pesado. Pensou: “a boa senhora ainda me deve ter deixado um monte de moedas!” Sôfrego, abre o baú e espanta-se ao vê-lo completamente cheio com medicamentos! Em cima uma carta da boa senhora:
“Meu caro doutor: isto que aqui lhe deixo são TODOS os medicamentos que desde há tantos anos o senhor me receitou. Se os tivesse tomado certamente teria morrido mais cedo.”

Lá pelos anos 40 do século passado (faz tempo, hein?), em Alter do Chão, na linda vila alentejana que tem ao lado a famosa Coudelaria de Alter Real, vivia um homem, que eu conheci, também já passados dos oitenta, que todo o dia de manhã saía de casa, entrava no boteco da frente e mamava, num gole só, um decilitro e meio de aguardente, daquela braba! Isto era só pra matar o bicho! Depois, dia fora, copo de vinho aqui, uns ali, mais aguardentes pra entremear, muito antes do sol se pôr o nosso amigo já tinha ingerido uns bons litros de vinho de mistura com abastadas quantidades de aguardente! E ficava bebedissimo. Todo o santo dia. Era conhecido e cumpria este ritual havia alguns anos.
Um dia adoeceu, não conseguiu sair da cama, foram chamar o médico, que como todos naquela Vila o conhecia, e uma das recomendações que lhe fez foi que “de forma alguma” não podia beber mais de um litro de vinho por dia... enquanto estivesse doente!
O bom velhinho, as forças a irem-se, ainda conseguiu, voz forte, responder, com aquele belo e musical sotaque alentejano:
- Atão pa beberi tã pouco, nã bebo nada!
No dia seguinte morria. Triste e seco!

Afinal o que é mesmo qualidade de vida?

18/04/2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário