Que povo pode
escrever na sua História, com letras de ouro, alguns dos primeiros, alegres e
carinhosos encontros com novas gentes, como aconteceu com os portugueses?
Convidar um
“selvagem” para ir comer a bordo, na mesa com o Capitão, deixá-los passar a
noite a dormir a bordo, e no dia seguinte mandá-los de volta a terra, todos
elegantemente vestidos e com presentes; quem mais fez isso?
E logo nos
primeiros contatos sairem a terra e aos som de músicas nativas e portuguesas
dançarem juntos?
Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral
As primeiras danças com nova gente
Vasco da Gama *
À terça
feira, (7 de Novembro, 1497) houvemos
vista duma terra baixa e que tinha grande baía... à qual puseram o nome de Baía
de Santa Helena. (Ainda hoje assim se
chama e aí foi morto em 1510 D. Francisco de Almeida).
À
quarta-feira lançámos âncora e estivémos oito dias limpando os navios, corrigindo
velas e colhendo lenha.
Nesta terra
há homens baços, que não comem senão lobos marinhos e baleias, e carne de
gazelas e ervas, e andam cobertos com peles e trazem umas bainhas em suas
naturas, e têm muitos cães como os de Portugal e assim ladram.
Ao outro dia
que foi à quinta-feira saímos em terra com o capitão-mor e tomámos um homem
daqueles, o qual era pequeno de corpo e se parecia com Sancho Mexia; e andava
apanhando mel na charneca, porque as abelhas naquela terra o fazem ao pé das
moitas, e levámo-lo à nau do capitão-mor, o qual o pôs consigo à mesa, e de tudo
o que nós comíamos comia ele.
E ao outro
dia (Novembro 10) o capitão-mor o vestiu muito bem e o mandou pôr em
terra.
E ao outro
dia seguinte vieram 14 ou 15 deles aqui onde tínhamos os navios. E o
capitão-mor foi em terra, e mostrou-lhes muitas mercadorias para saber se
havia naquela terra alguma daquelas coisas. E as mercadorias eram canela, e
cravo, e aljôfar, e ouro e assim outras coisas, e eles não entenderam em
aquelas mercadorias nada, como homens que nunca as viram; pelo qual o
capitão-mor lhes deu cascavéis (guizos)
e anéis de estanho. E isto foi à sexta-feira [Novembro 10] e isso mesmo ao sábado seguinte.
E ao domingo [Novembro
12) vieram obra de 40 ou 50 deles, e nós, depois que jantámos, saímos em
terra e, com ceitis que levávamos, resgatámos conchas que eles traziam nas
orelhas, que pareciam prateadas, e rabos de raposa, que traziam metidos em uns
paus, com que abanavam o rosto. Onde eu resgatei uma bainha, que um deles
trazia em sua natura, por um ceitil; pelo qual nos parecia que eles prezavam o
cobre, porque eles mesmos traziam umas continhas dele nas orelhas.
Nesse mesmo
dia um Fernão Veloso, que ia com o capitão-mor, desejava muito ir com eles a
suas casas, para saber de que maneira viviam e que comiam ou que vida era a
sua. E pediu por mercê ao capitão-mor lhe desse licença para ir com eles a suas
casas. E o capitão, vendo-se importunado dele, que o não deixava senão que lhe
desse licença, o deixou ir com eles; e nós tornámos ao navio do capitão-mor a
cear, e ele se foi com os ditos negros. E, tanto que eles de nós foram
apartados, tomaram um lobo marinho e foram-se ao pé duma serra, em uma
charneca, e assaram o lobo marinho; e deram dele ao Fernão Veloso, que ia com
eles, e das raízes de ervas que eles comiam. E, acabado de comer, disseram-lhe
que se viesse para os navios; e não quiseram que fosse com eles.
E o dito
Femão Veloso, como veio em direito dos navios, começou logo de chamar e eles
ficaram metidos pelo mato. E nós estávamos ainda ceando e, quando o ouvimos,
deixaram logo os capitães de comer e nós outros com eles, e metemo-nos na barca
à vela; e os negros começaram de correr ao longo da praia e foram tão prestes,
com o dito Femão Veloso, como nós. Em nós o querendo recolher eles nos
começaram a atirar com umas zagaias, que traziam, onde foi ferido o capitão-mor
e 3 ou 4 homens.
E isto porque
nós fiávamos deles, parecendo-nos que eram homens de pequeno coração e que não
se atreveriam a cometer o que depois fizeram, pelo qual íamos desapercebidos
de armas. Então nos recolhemos aos navios.
E, tanto que
tivemos os nossos navios aparelhados e limpos e lenha tomada, nós partimos
desta terra...
Em 25 dias do
mês de Dezembro, um sábado à tarde, dia de Santa Catarina. Entrámos na angra de
São Brás (hoje Mossel Bay) onde
estivemos treze dias, porque nesta angra desfizémos a nau que levava os
mantimentos e os recolhemos aos navios.
À sexta-feira
seguinte [Dezembro 1], estando nós ainda na dita angra de São Braz,
vieram obra de 90 homens baços, da arte daqueles da angra de Santa Helena;
e andava (parte) deles ao longo da praia e [parte) deles ficava pelos
outeiros. E nós estávamos todos, ou a maior parte de nós, a este tempo na nau
do capitão-mor. E, como os vimos, fomos em terra em os batéis, os quais
levávamos muito bem armados. E, como fomos junto com a terra, o capitão-mor
lhes lançava cascavéis pela praia fora e eles os tomavam. E não somente tomavam
os que lhe lançavam, mas vinham por eles a tomá-los da mão do capitão-mor. Do
que nós ficámos muito maravilhados porque, quando Bartolomeu Dias aqui esteve,
eles fugiam dele e não tomavam nenhuma coisa daquelas que lhes ele dava. Mas antes,
um dia, em (que) ele tomava água em uma aguada, que aqui está muito boa
à beira do mar, eles lha defenderam às pedradas de cima de um outeiro que está
sobre esta aguada, e Bartolomeu Dias lhes atirou com uma besta e matou um
deles. E, ao que supusemos, não fugirem de nós foi que nos pareceu que houveram
novas dos da angra de Santa Helena, onde nós primeiro estivemos, que
são duma terra à outra 60 léguas por mar, como nós éramos homens que não
fazíamos mal mas antes dávamos do nosso.
E o
capitão-mor não quis sair em terra, porque esta, onde os negros estavam, (era)
um mato grande, e mudou-lhe o posto. E fomos pousar a outro lugar descoberto e
ali saiu; e acenámos aos negros que fossem para onde nós íamos, e eles foram.
E o capitão-mor com os outros capitães saíram em terra, com gente armada onde
iam alguns com bestas. E o capitão-mor lhes mandou então que se apartassem e
que viessem, um ou dois
deles, e isto por acenos, E, àqueles que vieram, o capitão lhes deu cascavéis e
barretes vermelhos, e eles nos davam manilhas de marfim, que traziam nos
braços, porque nesta terra, segundo nos parece, há muitos elefantes; e nós
achávamos o estrabo (estábulo) deles
bem a carão da aguada, onde eles vinham beber.
Ao sábado (Dezembro
2) vieram obra de 200 negros, entre grandes e pequenos, e traziam obra de
doze reses, entre bois e vacas, e quatro ou cinco carneiros; e nós como os
vimos, fomos logo em terra, E eles começaram logo de tanger quatro ou cinco
flautas, e uns tangiam alto e outros baixo, em maneira que concertavam muito
bem para negros de que se não espera música; e bailavam como negros. E o
capitão-mor mandou tanger as trombetas e nós, em os batéis, bailávamos e o
capitão-mor de volta connosco. E, depois de acabada a festa, nós fomos em terra
onde (tínhamos ido) da outra vez, e ali resgatámos um boi negro por três
manilhas, o qual jantámos ao domingo; e era muito gordo, e a carne dele era saborosa
como a de Portugal.
Ao domingo (Dezembro
3) vieram outros tantos, e traziam as mulheres consigo e moços pequenos; e
as mulheres estavam em cima de um alto, perto do mar, e traziam muitos bois e
vacas. E puseram-se em dois lugares, ao longo do mar, e tangiam e bailavam como
ao sábado. E o costume destes homens é os moços ficarem no mato com as armas. E
os homens vieram a falar connosco, e traziam uns paus curtos nas mãos e uns
rabos de raposa, com os quais abanavam o rosto. E nós, estando assim à fala por
acenos, vimos andar por entre o mato os moços, agachados e traziam armas nas mãos.
Pedro Álvares Cabral **
E
o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele
começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de
maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou
vinte.
Pardos,
nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos,
e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes
fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver
fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente
arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na
cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas
de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de
papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que
querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa
Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde.
E
estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi mandado
do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no esquife a
sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de
bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete
setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes
serviram. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com
muito prazer e festa.
A feição deles é
serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes,
bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de
mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.
O Capitão, quando
eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro
mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar,
Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau
com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram.
Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém
um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a
terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também
olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente
para o castiçal como se lá também houvesse prata.
Mostraram-lhes um
papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram
para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não
fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe
queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes ali de
comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não
quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram
fora.
Trouxeram-lhes
vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que
lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas
contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e
lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a
terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que
dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós
assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e
mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de
dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se
de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas
vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas
e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da
cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e
eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
Ao sábado pela
manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui
larga e alta de seis a sete braças. E tanto que as naus quedaram ancoradas,
todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a
Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois
homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois fez dar a cada um
sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso,
que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com
eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam
Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim
mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de
frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus,
e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se
afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram
muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo
degredado com eles.
Além do rio,
andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem
pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife
que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um
gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas
mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita.
Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e
salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com
aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais
monteses, e foram-se para cima.
* Roteiro da Primeira Viagem de
Vasco da Gama, por Álvaro
Velho
** Carta de Pero Vaz de Caminha
5 fev. 13
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