Duas cartas de
Camilo Castelo
Branco
1ª.-
a Francisco Gomes de Amorim (1827-1891)
Meu Caro Gomes de Amorim
De acordo. Nada de banhos. Ando de terra em terra há 15
dias. Em Braga respiro melhor; mas as pulgas são aos cardumes por aquelas
estalagens – pulgas antigas, coevas dos Bartolomeus dos Mártires* e Caetanos
Brandões**.
Se tu pudesses vir estar em minha casa fazíamos uma
choradeira recíproca. Não te peço que venhas, porque eu sei o que é um doente
sem a sua família. Esta aldeia não tem noras gemebundas, nem a caracterização
estúpida e sarracena dos arredores de Lisboa. Sabes como é o Minho: árvores,
água, frio, bois e padres.
Estou tomando leite de burra (Creio nela por ser burra.)
Os doentes deste país devem ser-lhes caros.
Os meus respeitos a tua senhora e afetos a teus
filhos....
Vai-te, demónio da saudade.
Adeus
Dispõe do teu
C Cast.o Br.co
3 de Junho 74.
*
- O grande Arcebispo de Braga, 1558-1582
**
- Bispo de Belém do Pará, 1782-1789, e Arcebispo de Braga, 1790-1805
2ª. - a José Barbosa e Silva.
Camilo
tinha ido a Lisboa e hospedara-se no mesmo hotel e no mesmo quarto que o seu
amigo, e quando saiu, na sua mala, por engano foi um colete do amigo, que terá
perguntado por ele!
21 de Março de 1858
Meu caro Barbosa
A tua requisição do colete veio desatar um nó
górdio, do qual e para o qual eu tinha sido um Alexandre tão desasado quanto
vais ver da exposição dum joguinho em que tu perdeste, como o boticário do
Tolentino.
Foi o caso. Entre o meu fato aparecia um
colete preto que revelava uma barriga como a que eu tenho sonhado nas minhas
ambiciosas aspirações de presidente de câmara de S. Tirso onde espero comprar
quatro courelas que me dêem censo e senso.
Perguntei dez vezes à D. Eufrásía e à
estúpida filha que diabo de colete era aquele. Responderam-me que tal qual
viera num dos meus baús de Lisboa. Teimei que não era meu; redarguiram-me que
eu talvez por engano o enfaixasse com a minha roupa. O engano parecia-me
parvoinho; porém, como à saída do Motel Central o meu baú foi arranjado por uma
criada, supus que algum hóspede pagou a inadvertência da criada.
Nestas conjecturas, tomei posse do colete, e mandei-o enfaixar com
outra roupa condenada a uma venda inglória e obscura em casa de onzeneiro adelo*.
Tristíssima sorte foi a do teu colete, meu caro Barbosa. Chora-o, como eu o
chorei, quando o adelo me mandou há pouco dizer que um passageiro incógnito lho
comprara. Sabes agora a esperança que me resta? é engordar suficientemente para
servir de molde ao alfaiate, e mandar-te fazer um colete que desbanque o outro
na finura do lemiste, e na recherche da abotoadura. Entretanto fulmina com toda a tua iracúndia a estupidez
da filha da D. Eufrásia, à qual a mãe já transmitiu quatro solenes bofetadas
por causa do colete. Se me não levas a mal, escreverei um necrológio ao tão
ignobilmente perdido colete, depois de lhe teres fadado tão alto destino, como
o de aparecer no Chiado, e roçar as colchas adamascadas dalguma condessa de porcelana, ou de biscuit que é mais delicado
.
* - Usurário, vendedor de
objetos usados; loja de penhores.
A carta continua com outros
assuntos, mas como comenta Alexandre Cabral que a divulgou no livro Correspondência de Camilo Castelo Branco, volume I:
“É encantadora a maneira chistosa como Camilo revela ao amigo o facto
insólito de lhe ter vendido o colete preto que apareceu extravagantemente na sua
bagagem. Perca-se a peça e ganhe-se a maravilha epistolar”.
Ninguém jamais escreveu
como Camilo, o maior romancista português.
Estas duas cartas são um
pequenino exemplo da sua graça, rapidez, capacidade e síntese.
30/01/2013
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