quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013




Duas cartas de 

Camilo Castelo Branco


1ª.- a Francisco Gomes de Amorim (1827-1891)

Meu Caro Gomes de Amorim

De acordo. Nada de banhos. Ando de terra em terra há 15 dias. Em Braga respiro melhor; mas as pulgas são aos cardumes por aquelas estalagens – pulgas antigas, coevas dos Bartolomeus dos Mártires* e Caetanos Brandões**.
Se tu pudesses vir estar em minha casa fazíamos uma choradeira recíproca. Não te peço que venhas, porque eu sei o que é um doente sem a sua família. Esta aldeia não tem noras gemebundas, nem a caracterização estúpida e sarracena dos arredores de Lisboa. Sabes como é o Minho: árvores, água, frio, bois e padres.
Estou tomando leite de burra (Creio nela por ser burra.)
Os doentes deste país devem ser-lhes caros.
Os meus respeitos a tua senhora e afetos a teus filhos....
Vai-te, demónio da saudade.
Adeus                         
Dispõe do teu
C Cast.o Br.co
3 de Junho 74.

* - O grande Arcebispo de Braga, 1558-1582
** - Bispo de Belém do Pará, 1782-1789, e Arcebispo de Braga, 1790-1805


2ª. - a José Barbosa e Silva.

Camilo tinha ido a Lisboa e hospedara-se no mesmo hotel e no mesmo quarto que o seu amigo, e quando saiu, na sua mala, por engano foi um colete do amigo, que terá perguntado por ele!

21 de Março de 1858

Meu caro Barbosa

A tua requisição do colete veio desatar um nó górdio, do qual e para o qual eu tinha sido um Alexandre tão desasado quanto vais ver da exposição dum joguinho em que tu perdeste, como o boticário do Tolentino.
Foi o caso. Entre o meu fato aparecia um colete preto que revelava uma barriga como a que eu tenho sonhado nas minhas ambiciosas aspirações de presidente de câmara de S. Tirso onde espero comprar quatro courelas que me dêem censo e senso.
Perguntei dez vezes à D. Eufrásía e à estúpida filha que diabo de colete era aquele. Responderam-me que tal qual viera num dos meus baús de Lisboa. Teimei que não era meu; redar­guiram-me que eu talvez por engano o enfaixasse com a minha roupa. O engano parecia-me parvoinho; porém, como à saída do Motel Central o meu baú foi arranjado por uma criada, supus que algum hóspede pagou a inadvertência da criada.
Nestas conjecturas, tomei posse do colete, e mandei-o enfai­xar com outra roupa condenada a uma venda inglória e obscura em casa de onzeneiro adelo*. Tristíssima sorte foi a do teu colete, meu caro Barbosa. Chora-o, como eu o chorei, quando o adelo me mandou há pouco dizer que um passageiro incógnito lho comprara. Sabes agora a esperança que me resta? é engordar suficientemente para servir de molde ao alfaiate, e mandar-te fazer um colete que desbanque o outro na finura do lemiste, e na recherche da abotoadura. Entretanto fulmina com toda a tua iracúndia a estupidez da filha da D. Eufrásia, à qual a mãe já transmitiu quatro solenes bofetadas por causa do colete. Se me não levas a mal, escreverei um necrológio ao tão ignobil­mente perdido colete, depois de lhe teres fadado tão alto destino, como o de aparecer no Chiado, e roçar as colchas adamascadas dalguma condessa de porcelana, ou de biscuit que é mais deli­cado . 

* - Usurário, vendedor de objetos usados; loja de penhores.

A carta continua com outros assuntos, mas como comenta Alexandre Cabral que a divulgou no livro Correspondência de Camilo Castelo Branco, volume I:

“É encantadora a maneira chistosa como Camilo revela ao amigo o facto insólito de lhe ter vendido o colete preto que apareceu extravagantemente na sua bagagem. Perca-se a peça e ganhe-se a maravilha epistolar”.

Ninguém jamais escreveu como Camilo, o maior romancista português.
Estas duas cartas são um pequenino exemplo da sua graça, rapidez, capacidade e síntese.

30/01/2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário