quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013




Lhaneza

Pronto. Está quase tudo dito.
Infelizmente caíu em desuso, no esquecimento, esta palavra portuguesa que deriva do latim “planu”, que os dicionários definem como afabilidade, lisura, franqueza, amabilidade, delicadeza.
Manuel Bernardes, em Luz e Calor, de 1724, escreveu “E entretanto se descuidam dos pontos lhanos e substanciais do Evangelho”, e António de Andrade, em 1624, “...continuou em vir assistir a obra sua com muita bondade; e esta lhaneza e muita facilidade que tem no tratar...”
Assim mesmo falta acrescentar ao significado as palavras alegria e carinho. Aquela alegria e aquele carinho que os verdadeiros amigos demonstram sempre que se encontram. Amigos de longa, média e curta data, onde lhaneza continua a existir, difícil, quando não rara, neste mundo esmagado pelo poder da finança.
E foi assim que “voaram” três dias passados em Brasília, a capital do roubo público, com dois amigos que me encheram de lhaneza.
Um, jovem, que conheci há pouco mais de quinze anos, outro menos jovem, desde há três, que se desfizeram para tornar aquela curta estadia um momento inesquecível. Tudo isto complementado por um novo amigo, de alegria contagiante, que nos recebeu em sua casa, onde fomos apresentados, e nos fez parecer que desde sempre nos conhecíamos.
Mas todos preocupados em mostrar que, na verdade, a amizade é uma das maiores maravilhas da nossa existência, e que entre amigos tudo deve ser comum, especialmente os amigos.
Um bem haja ao José Robson e ao Paulo, e também ao novo amigo de quem há que contar um pouco da sua vida.

O curioso caso de Teresio Capra
A história do italiano Teresio Capra é tão peculiar quanto à vivida por Brad Bitt em “O curioso caso de Benjamin Button”. Tal como no filme, Capra vai se reinventando à medida que novos desafios surgem em sua vida. Aos 14 anos, Capra já fazia parte da Brigada de Paraquedistas das tropas de Mussolini, na Segunda Guerra Mundial.
Com 17 anos, começou a trabalhar como minerador em minas de carvão da Bélgica, onde contraiu uma silicose - doença profissional que afeta a elasticidade dos pulmões. Trabalhava no turno vespertino e escapou do acidente que matou 180 mineradores italianos do turno da manhã. Antes de completar 21 anos, Capra desembarcava no Rio de Janeiro, era 1950. Sem formação profissional adequada para os desafios urbanos brasileiros, o italiano tratou logo de se matricular no SENAI, onde fez cursos de carpintaria, pedreiro e mestre-de-obras.
Capra não esperou muito para conseguir emprego em uma construtora e casar com a mineira Maria Aparecida, com quem teve dois filhos, Tânia e Edison. O salário, de quatro mil Cruzeiros, era insuficiente. Então ele tomou uma decisão arrojada: com os músculos bem desenvolvidos graças ao trabalho na construção civil, Capra foi lutar box nos estúdios da TV Rio para complementar a renda. Foi pioneiro também nisso.
Ao atravessar um campo para pegar o ônibus da linha Jacarezinho/Copacabana, Capra sentiu uma forte dor de barriga e procurou um matinho para se acomodar. Pois foi nesta situação insólita que o destino deu uma mãozinha. O vento jogou na direção de Capra um jornal velho com um anúncio pedindo mestre-de-obras para trabalhar em Brasília. A expressão “paga-se bem” chamou sua atenção. Nesse dia, não foi trabalhar. Seguiu direto para o endereço publicado no jornal, na rua México, onde funcionava o escritório da construtora Ecisa. Foi atendido por um engenheiro inglês, Donald.
Para trabalhar em Brasília, Capra fez uma proposta de risco: um mês sem salário e depois o engenheiro avaliaria o resultado. Trinta dias depois, Donald analisou o andamento das obras da Quadra 103 Sul, sob responsabilidade de Capra. Gostou do que viu e perguntou de quanto seria o salário. Capra pediu 12 mil cruzeiros, Donald pagou 14 mil. Era o ano de 1957 e o italiano desembarcara na futura capital do País.
Ao mesmo tempo em que construía a cantina e o alojamento dos operários da Quadra 103 Sul, Capra ergueu a casa de madeira onde sua família iria morar. Disciplinado, sem preguiça para o trabalho, Capra ganharia muito dinheiro ao vencer o desafio proposto por sua empresa de ser a primeira construtora a alcançar a cumieira da obra. Ganhou duas vezes, acumulando 200 mil cruzeiros. Tudo guardado em casa.
Quando a Caixa Econômica Federal abriu sua primeira agência em Brasília, uma Kombi parou em frente à casa de Capra para fazer o depósito da fortuna. “Era muito dinheiro. Havia notas no colchão das camas, em latas, por tudo. Mas não tinha perigo. Naquela época não havia ladrão em Brasília”. “Bons tempos”, recorda Capra.
Com dinheiro no banco e um sócio disposto a buscar novos empreendimentos, Capra comprou de uma alemã a única boate que havia na Cidade Livre. Batizou de Olga’s Bar. Vinte e um dias depois a boate seria consumida por um grande incêndio que acabou com boa parte da Cidade Livre. Foi no governo de Jânio Quadros, época em que as obras em Brasília foram suspensas e muita gente faliu.
O desastre, no entanto, não desanimou Capra. Junto com um amigo, pegou o Simca Chambord rumo ao Rio de Janeiro. Planejava buscar um trabalho alternativo por lá. Mas o período não era de sorte. O carro capotou em uma curva e foi vendido como ferro velho. Com esse dinheiro, Capra voltou a Brasília e começou uma nova obra. Recebeu uma serralheria como pagamento, era 1962, e assim deu início a um novo empreendimento.
Teresio Capra, 85 anos de juventude, dinamismo, alegria e simpatia.

Resumindo toda esta vivência: “em matéria de sentimento, tudo quanto pode ser avaliado, não tem valor, como o tempo na eternidade. ”
E se o reconhecimento é a memória do coração, ele hoje bate mais forte.


27/02/13

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013


Para se poder acompanhar o caminhar deste país. Ou o descaminho que tem levado nos últimos dez anos.
Agora, a madama presidentA, já se propôs à reeleição em 2014, tomou medidas “excepcionais”: criou mais 70.000 mil famílias para receberem o Bolsa Família, mais conhecido por “Bolsa Voto”.
Vale a pena ler os artigos abaixo, todos do jornal “O Globo” e, no que respeita a estradas, rever o meu texto sobre a ida ao Mosteiro de 08/12/2012. O que sofri naquela estrada!
A recepção à cubana Yoani foi uma verdadeira demonstração de fidelismo ou stalinismo, a que o (des)governo de Brasília está sujeito. Uma vergonha. E uma tristeza.
De qualquer modo o Brasil é imparável. Cresce e vai continuar a crescer mesmo com os buracos nas estradas e os poços cavados pelos políticos nas finanças públicas. Mas roubá-lo tão vergonhosamente e desgovernar assim...

UMA ESTRADA FEDERAL COM BURACOS A CADA 38 METROS

Motoristas sofrem com precariedade da BR-493, 
que liga Manilha a Magé

elenilce bottari - elenilce@oglobo.com.br
SlMONE cândida - simone.candida@oglobo.com.br  
São 25 quilómetros de uma es­trada estreita (cerca de dez metros, somando os dois sen­tidos de tráfego e os acosta­mentos), marcada por grandes desníveis, sem iluminação e com sinalização precária. Além disso, como O GLOBO constatou na quarta-feira da semana passada, havia 665 buracos ao longo da via—­uma média de um a cada 38 metros. Apesar do cenário de abandono, ela está longe de ser um caminho da roça qual­quer. Trata-se da BR-493 (que liga Manilha, em Itaboraí, a Santa Guilhermina, em Magé), por onde são transportados 70% dos alimentos que abaste­cem o Rio. Na estrada, passam diariamente 18 mil veículos, 60% deles caminhões. A rodo­via é também o principal aces­so da Região Metropolitana e do Sul do estado ao Norte Flu­minense e a grande parte do Nordeste do país.
O próprio Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) reconhece que a estrada não comporta mais tamanha carga: são mais de 150 mil toneladas por dia sobre a pista. Numa parceria fechada em 2008 entre o go­verno do estado e a União, centro das obras do Arco Me­tropolitano, caberia ao Dnit realizar a duplicação da BR-493. No entanto, após qua­tro anos sem nenhum quiló­metro construído, o consórcio foi desfeito. Isso aconteceu de­pois de denúncias envolvendo a Construtora Delta, que fazia pare do consórcio contratado para obra, orçada na época em R$ 950 milhões.
SEM AVISO PARA OUEBRA-MOLAS
Os acidentes são constantes, principalmente na região de Magé. Moradores costumam chamar a estrada de rodovia da morte.
À noite, não se vê nada, mas se ouvem muitas freadas e batidas. Volta e meia, tem gen­te morta — contou José das Graças, de 62 anos, há 57 vivendo às margens da BR-493, no quilómetro 21.
Ele conta que não falta traba­lho para mecânicos da região:
- Não tem nenhuma marca indicando os quebra-molas. Por isso, depois de cada que­bra-molas, tem sempre um bu­raco, por causa do impacto dos carros sobre a pista.
As poucas placas de sinaliza­ção somem atrás do mato alto. É o que acontece, por exemplo com a placa que alerta para o estreitamento da via no trecho sobre o Rio Iriri, em Magé.
- É brabo. A gente paga pe­dágio (R$ 12,50) por uma coisa dessa. Os buracos estão sem­pre quebrando o meu carro - protestou o motorista Cláudio Silva.
Segundo moradores, a situa­ção se agravou a partir de 2002, quando a Ponte Rio-Niterói foi fechada ao transporte de car­gas, transferindo esse fluxo de veículos pesados para a Magé-Manilha (também conhecida como Estrada do Contorno da Baía de Guanabara).
“O Globo”, 21.02.2013

A intolerância recepciona Yoani Sánchez

A denuncia publicada  pela revista “Veja! De que o embaixador cubano no Brasil, Carlos Zamora Rodriguez, patrocinara uma reunião em Brasíliapara abastecer grupos radicais de “informações” contra a bogueira Yoani Sanchez foi o sinal de que a viagem da cubana dissidente ao Brasil poderia não ser tranquila.
Para tornar o fato mais grave, participou do encontro Ricardo Poppi Martins, militante do partido petista coordenador de Novas Mídias e Outras Linguagens de Participação, da Secretaria Geral da Presidência, de Gilberto Carvalho. Entre os presentes à reunião, articulada pelo coordenador político da embaixada, Rafael Hidalgo, havia mais representantes do PT, além do PcdoB, da CUT, etc.
Impossível não estabelecer relação entre a reunião de "agitação e propaganda" patrocinada pelo senhor embaixador cubano em Brasília, na qual foi distribuído pelo menos um CD da dita­dura cubana para ajudar a difamar Yoani, e rui­dosas e agressivas manifestações feitas por gru­pelhos na passagem da blogueira principal­mente por Recife (PE) e Feira de Santana (BA).
Um dos símbolos da luta pela liberdade de expressão em Cuba, Yoani teve a melhor das reeações diante da claque que avançou com violência contra ela no Recife: "Esta é uma expres­são da democracia que espero ver em Cuba". Mas, assim como em Cuba, ela teve limitada a liberdade pois, na Bahia, não pôde ser exibido o filme "Conexão Cuba-Honduras” um dos mo­tivos de sua viagem, depois de cinco anos de tentativas de obter visto para ir ao exterior.
Recebida, ontem no Congresso, por iniciativa correta da oposição e apoio de pessoas sensa­tas da base do governo, como o senador Edu­ardo Suplicy (PT-SP), Yoani, com a sua viagem, ajuda a sociedade brasileira a ter uma ideia de como se articulam, dentro e fora do governo, grupos radicais, antidemocratas, intolerantes.
A tíbía reação do Itamaraty a uma reunião numa embaixada estrangeira para deflagrar uma ação política de sabotagem em território nacional já demonstra o poder dessa gente em Brasília. Ficou evidente, ainda, que se usa a mesma rede de militância existente na internet:
- a partir de perfis falsos, e-mails de "laranjas"
- para disseminar acusações de toda ordem contra Yoani, deixando a impressão digital de uma operação orquestrada. Mais uma vez. Até os cartazes, como registrou a cubana em seu blog GeneraciónY, brandidos contra ela no de­sembarque, eram padronizados.
Nada a estranhar quanto a manifestações. É parte da democracia - que não existe mesmo em Cuba. Lá, ativismo político só a favor. O preocupante é quando esquemas autoritários de militância têm raízes dentro do aparelho de estado.
A pressão sobre a blogueira no Brasil expõe algo bem mais grave do que a ação de minori­as fanáticas.

“O Globo”,  21.2.2013

Na Moral

Parei minha moto no shopping, rou­baram a tampa da válvula do pneu. Tinha uma ótima tesoura Tramontina para tosar cachorros, mas alguém que esteve na minha casa a trocou por uma de pior qualidade. O médico me mandou tirar ra­diografia desnecessária só para gastar dinheiro do plano de saúde. Minha revista semanal su­miu na portaria do prédio.
A prosaica semana de um leitor carioca, tão banal e parecida com a de milhões de brasilei­ros de todas as classes sociais que são vítimas constantes de pequenos (e grandes) roubos e malandragens públicos e privados, mostra co­mo isto está arraigado na nossa cultura, atravancando o crescimento do nosso IDH, por mais que se invista em educação, tecnologia e infraestrutura.
O Brasil está rico, mas 43% dos alfabetizados não sabem ler, mais da metade das cidades não tem esgoto tratado, e um terço das Câmaras e do Congresso está nas mãos de processados ou condenados
Será que estamos condenados para sempre a essa cultura nefasta ? Ou já foi pior e aos poucos está mudando por força da lei, da polícia e da justiça? E dos bons exemplos que se espalham na mídia e nas redes sociais, embora os piores exemplos venham justamente dos que têm por obrigação a conduta exemplar: os políticos que fazem do Congresso uma das instituições mais desmoralizadas diante da população. Tudo bem, o Brasil está rico, poderoso, solidário, mas 43% dos alfabetizados não sabem ler, mais da metade das cidades não tem esgoto tratado, 1/3 das Câmaras Municipais — e do Congresso Nacional — está nas mãos de processados ou condenados pela Justiça. Não é uma questão de ideologia, é de uma cultura; que não muda com leis, programas ou verbas, mas com o tempo e os exemplos que vêm de cima e de fo­ra, em casa e no trabalho. Moralismo otário? Ou exigência do desenvolvimento social?
Nos anos 60, acreditava-se que a revolução castrista não só transformaria a política, a economia e a cultura em Cuba, mas criaria o "novo homem cubano”, limpo, livre e solidário, mas hoje os furtos, as agressões e malandragens se tornaram um modo de vida na ilha, pela nobre causa de comer todo o dia.
Não bastam a economia, a educação e a tecnologia, é o exercício dessas leis não escritas – porque todos conhecem – que vai tornar melhor, ou pior, viver em um país rico e sem miséria.

NELSON MOTTA
é jornalista

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013



Mas... o que é Utopia?



Ouvi há dias um professor falar sobre utopia, e puz-me a pensar no que vai de utopia por esse mundo “au diante”!
Só para recordar, a palavra de origem grega, significa “o lugar que não existe”! Mas existem os utópicos, os quixotescos, os franciscos de Assis, e muitos outros babacas, ingênuos ou idiotas, como eu por exemplo, que continuam a não querer deixar de acreditar que o mundo pode ser melhor, e ainda o povão empobrecido, abestalhado que se permite gastar algumas horas do seu hipotético descanso para discutir em qual governante vai votar: se o que rouba mais ou menos ou que mais depressa ou mais devagar vai contribuir para destruir o próprio povo.
Em França o tal hollande quase se transfigura em Napoleão com a intervenção no Mali, e ainda tem o descaramento de dizer, ao fim de poucos dias, que a guerra estava vencida! Agora é que ela vai começar a doer para aquele povo esquecido do SAEL. E arredores.
Também há poucos dias um consul, aliás ex-consul do Irã na Noruega, em Oslo, recebeu, surpreso, a inesperada visita de alguns agentes da temível polícia shariacreta iraniana. Uma espécie de CIA ou KGB, mas pior! Tinha havido em Teerã manifestações contra o governo e o tal aiatolá, que a polícia registou detalhadamente em filme. Depois analisou um por um dos manifestantes, mascarados, e começou a caçada.
Mostraram o filme ao consul perguntando-lhe se reconhecia alguém. Negativo. Então pararam uma imagem, ampliaram, e atrás da máscara o consul reconheceu um filho seu, rapaz de 20 anos, universitário. O consul, chocado, tentou defender o filho com a exuberância própria da idade. Nada perturbou os carrascos, que lhe disseram que para esquecer o acontecimento ele deveria ir a Teerã, e fazer um pronunciamento na TV oficial – a única! – condenando a manifestação, e por consequência a atitude do filho. Deram-lhe 24 horas para responder. O consul pediu demissão e asilo político porque já sabia o que o esperava se voltasse ao seu país.
E foi assim que ele deu essa entrevista à TV na Noruega, durante a qual afirmou, categoricamente, saber que o Irã quer por força ter a bomba atómica para a largar em cima de Israel, porque, segundo o todo poderoso aiatolá, o Islã tem que limpar o mundo dos infiéis para preparar a vinda do Mahdi, o redentor profetizado do Islã – (exclusivamente pelos xiitas) – que permanecerá na Terra por sete, nove ou dezenove anos antes da chegada do dia final, o Yawm al-Qiyamah o "Dia da Ressurreição".
Esta é uma das tais utopias, de vertente louca e assassina. Mas grave, e há que jamais menosprezar as atuações e intenções dos inimigos da humanidade.
Em muitas mesquitas imãs insistem em fomentar o ódio contra sobretudo os Estados Unidos, mesmo nalgumas em território americano, e mais ainda na Europa.
O mais que estes fanáticos loucos, assassinos, vão conseguir é criar uma barreira mais profunda ainda, entre o mundo “ocidental” e a grande maioria dos muçulmanos que até agora têm vivido em paz, mas que vão ter dificuldade em mantê-la.
Lembro ainda, não deixando a utopia, uma vergonha passada em Moçambique em 1998 (meu livro Loisas da Arca do Velho, 2001).
Quanto vale a vida de uma pessoa em Moçambique?
Por 1998, um dos garotos da Casa do Gaiato ali foi recolhido muito fraco, mal nutrido, genética doença da desnutrição, pobreza, etc. Tempos depois adoece novamente e o seu estado de saúde ultrapassa a capacidade de atendimento que lhes é ministrada no posto de saúde da Casa. Correm com ele a um médico italiano, a meia dúzia de quilómetros dali, voluntário contratado em muitos dólares por uma empresa italiana que tinha acabado de construir uma barragem, em cooperação. O garoto chega ao médico muito mal. É logo visto, e o médico:
- Não vale a pena.
- Não vale a pena, o quê?
- O tratamento.
- O que significa isso, não vale a pena?
- O medicamento é muito caro.
- !!!
Não havia mais conversa. Internou-se o garoto, encomendou-se o remédio da África do Sul, que chegou no dia seguinte - em Moçambique até aspirina era difícil encontrar - e salvou-se-lhe a vida. Está vivo e alegre até hoje. O remédio custou caro, mais de quinhentos dólares. Foi muito caro, sim. Mas quanto vale a vida de um indivíduo? Será que em Itália só tratam italianos até quatrocentos e cinquenta dólares, ou... o valor de uma criança em África é mais baixo?
Quem continua a acreditar que uma pessoa vale menos do que dinheiro?
E segue o rosário de esperanças utópicas, umas só caricatas, outras assassinas, outras criminosas pelo descaso e/ou despreparo dos governantes.
O “bom” utópico será esquecido, quando não ridicularizado pelo seu quixotismo. Mas há muitos, graças a Deus, que não desistem, quebram a cara, são insultados, e conseguem atingir o maior ideal que o homem deveria ter nesta vida: “dar a vida pelo seu irmão”!
Homens, e mulheres, desta têmpera, por muitos que sejam serão sempre pouquissimos. O bezerro de ouro fala mais alto e mais forte, o lucro alcançado de qualquer forma, sempre e sempre à custa dos mais fracos, a constante lavagem cerebral que a mídia, sobretudo a TV, nos impõe, onde tudo parece fácil, o ódio fomentado pelos ignorantes, o descaso no ensino, a mentira, o poder, sim, o poder, são a grande atração.
A grande atração dos canalhas. Canalhas, que por estas bandas se apoderaram da res publica e a delapidam.
Algum dia um canalha pode virar cavalheiro??? Isso não é utopia, é piada.


15/02/20113

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013




Duas cartas de 

Camilo Castelo Branco


1ª.- a Francisco Gomes de Amorim (1827-1891)

Meu Caro Gomes de Amorim

De acordo. Nada de banhos. Ando de terra em terra há 15 dias. Em Braga respiro melhor; mas as pulgas são aos cardumes por aquelas estalagens – pulgas antigas, coevas dos Bartolomeus dos Mártires* e Caetanos Brandões**.
Se tu pudesses vir estar em minha casa fazíamos uma choradeira recíproca. Não te peço que venhas, porque eu sei o que é um doente sem a sua família. Esta aldeia não tem noras gemebundas, nem a caracterização estúpida e sarracena dos arredores de Lisboa. Sabes como é o Minho: árvores, água, frio, bois e padres.
Estou tomando leite de burra (Creio nela por ser burra.)
Os doentes deste país devem ser-lhes caros.
Os meus respeitos a tua senhora e afetos a teus filhos....
Vai-te, demónio da saudade.
Adeus                         
Dispõe do teu
C Cast.o Br.co
3 de Junho 74.

* - O grande Arcebispo de Braga, 1558-1582
** - Bispo de Belém do Pará, 1782-1789, e Arcebispo de Braga, 1790-1805


2ª. - a José Barbosa e Silva.

Camilo tinha ido a Lisboa e hospedara-se no mesmo hotel e no mesmo quarto que o seu amigo, e quando saiu, na sua mala, por engano foi um colete do amigo, que terá perguntado por ele!

21 de Março de 1858

Meu caro Barbosa

A tua requisição do colete veio desatar um nó górdio, do qual e para o qual eu tinha sido um Alexandre tão desasado quanto vais ver da exposição dum joguinho em que tu perdeste, como o boticário do Tolentino.
Foi o caso. Entre o meu fato aparecia um colete preto que revelava uma barriga como a que eu tenho sonhado nas minhas ambiciosas aspirações de presidente de câmara de S. Tirso onde espero comprar quatro courelas que me dêem censo e senso.
Perguntei dez vezes à D. Eufrásía e à estúpida filha que diabo de colete era aquele. Responderam-me que tal qual viera num dos meus baús de Lisboa. Teimei que não era meu; redar­guiram-me que eu talvez por engano o enfaixasse com a minha roupa. O engano parecia-me parvoinho; porém, como à saída do Motel Central o meu baú foi arranjado por uma criada, supus que algum hóspede pagou a inadvertência da criada.
Nestas conjecturas, tomei posse do colete, e mandei-o enfai­xar com outra roupa condenada a uma venda inglória e obscura em casa de onzeneiro adelo*. Tristíssima sorte foi a do teu colete, meu caro Barbosa. Chora-o, como eu o chorei, quando o adelo me mandou há pouco dizer que um passageiro incógnito lho comprara. Sabes agora a esperança que me resta? é engordar suficientemente para servir de molde ao alfaiate, e mandar-te fazer um colete que desbanque o outro na finura do lemiste, e na recherche da abotoadura. Entretanto fulmina com toda a tua iracúndia a estupidez da filha da D. Eufrásia, à qual a mãe já transmitiu quatro solenes bofetadas por causa do colete. Se me não levas a mal, escreverei um necrológio ao tão ignobil­mente perdido colete, depois de lhe teres fadado tão alto destino, como o de aparecer no Chiado, e roçar as colchas adamascadas dalguma condessa de porcelana, ou de biscuit que é mais deli­cado . 

* - Usurário, vendedor de objetos usados; loja de penhores.

A carta continua com outros assuntos, mas como comenta Alexandre Cabral que a divulgou no livro Correspondência de Camilo Castelo Branco, volume I:

“É encantadora a maneira chistosa como Camilo revela ao amigo o facto insólito de lhe ter vendido o colete preto que apareceu extravagantemente na sua bagagem. Perca-se a peça e ganhe-se a maravilha epistolar”.

Ninguém jamais escreveu como Camilo, o maior romancista português.
Estas duas cartas são um pequenino exemplo da sua graça, rapidez, capacidade e síntese.

30/01/2013

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013




Que povo pode escrever na sua História, com letras de ouro, alguns dos primeiros, alegres e carinhosos encontros com novas gentes, como aconteceu com os portugueses?
Convidar um “selvagem” para ir comer a bordo, na mesa com o Capitão, deixá-los passar a noite a dormir a bordo, e no dia seguinte mandá-los de volta a terra, todos elegantemente vestidos e com presentes; quem mais fez isso?
E logo nos primeiros contatos sairem a terra e aos som de músicas nativas e portuguesas dançarem juntos?

Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral
As primeiras danças com nova gente


Vasco da Gama *

À terça feira, (7 de Novembro, 1497) houvemos vista duma terra baixa e que tinha grande baía... à qual puseram o nome de Baía de Santa Helena. (Ainda hoje assim se chama e aí foi morto em 1510 D. Francisco de Almeida).
À quarta-feira lançámos âncora e estivémos oito dias limpando os navios, corrigindo velas e colhendo lenha.
Nesta terra há homens baços, que não comem senão lobos marinhos e baleias, e carne de gazelas e ervas, e andam cobertos com peles e trazem umas bainhas em suas naturas, e têm muitos cães como os de Portugal e assim ladram.
Ao outro dia que foi à quinta-feira saímos em terra com o capitão-mor e tomámos um homem daqueles, o qual era pequeno de corpo e se parecia com Sancho Mexia; e andava apanhando mel na charneca, porque as abelhas naquela terra o fazem ao pé das moitas, e levámo-lo à nau do capitão-mor, o qual o pôs con­sigo à mesa, e de tudo o que nós comíamos comia ele.
E ao outro dia (Novembro 10) o capitão-mor o vestiu muito bem e o mandou pôr em terra.
E ao outro dia seguinte vieram 14 ou 15 deles aqui onde tínhamos os navios. E o capitão-mor foi em terra, e mos­trou-lhes muitas mercadorias para saber se havia naquela terra alguma daquelas coisas. E as mercadorias eram canela, e cravo, e aljôfar, e ouro e assim outras coisas, e eles não entenderam em aquelas mercadorias nada, como homens que nunca as vi­ram; pelo qual o capitão-mor lhes deu cascavéis (guizos) e anéis de estanho. E isto foi à sexta-feira [Novembro 10] e isso mesmo ao sábado seguinte.
E ao domingo [Novembro 12) vieram obra de 40 ou 50 deles, e nós, depois que jantámos, saímos em terra e, com ceitis que levávamos, resgatámos conchas que eles traziam nas orelhas, que pareciam prateadas, e rabos de raposa, que tra­ziam metidos em uns paus, com que abanavam o rosto. Onde eu resgatei uma bainha, que um deles trazia em sua natura, por um ceitil; pelo qual nos parecia que eles prezavam o cobre, porque eles mesmos traziam umas continhas dele nas orelhas.
Nesse mesmo dia um Fernão Veloso, que ia com o capitão-mor, desejava muito ir com eles a suas casas, para saber de que maneira viviam e que comiam ou que vida era a sua. E pediu por mercê ao capitão-mor lhe desse licença para ir com eles a suas casas. E o capitão, vendo-se importunado dele, que o não deixava senão que lhe desse licença, o deixou ir com eles; e nós tornámos ao navio do capitão-mor a cear, e ele se foi com os ditos negros. E, tanto que eles de nós foram apartados, tomaram um lobo marinho e foram-se ao pé duma serra, em uma charneca, e assaram o lobo marinho; e deram dele ao Fernão Veloso, que ia com eles, e das raízes de ervas que eles comiam. E, acabado de comer, disseram-lhe que se viesse para os navios; e não quiseram que fosse com eles.
E o dito Femão Veloso, como veio em direito dos navios, começou logo de chamar e eles ficaram metidos pelo mato. E nós estávamos ainda ceando e, quando o ouvimos, deixaram logo os capitães de comer e nós outros com eles, e metemo-nos na barca à vela; e os negros começaram de correr ao longo da praia e foram tão prestes, com o dito Femão Veloso, como nós. Em nós o querendo recolher eles nos começaram a atirar com umas zagaias, que traziam, onde foi ferido o capitão-mor e 3 ou 4 homens.
E isto porque nós fiávamos deles, parecendo-nos que eram homens de pequeno coração e que não se atreveriam a come­ter o que depois fizeram, pelo qual íamos desapercebidos de armas. Então nos recolhemos aos navios.
E, tanto que tivemos os nossos navios aparelhados e lim­pos e lenha tomada, nós partimos desta terra...
Em 25 dias do mês de Dezembro, um sábado à tarde, dia de Santa Catarina. Entrámos na angra de São Brás (hoje Mossel Bay) onde estivemos treze dias, porque nesta angra desfizémos a nau que levava os mantimentos e os recolhemos aos navios.
À sexta-feira seguinte [Dezembro 1], estando nós ainda na dita angra de São Braz, vieram obra de 90 homens baços, da arte daqueles da angra de Santa Helena; e andava (parte) deles ao longo da praia e [parte) deles ficava pelos outeiros. E nós estávamos todos, ou a maior parte de nós, a este tempo na nau do capitão-mor. E, como os vimos, fomos em terra em os batéis, os quais levávamos muito bem armados. E, como fomos junto com a terra, o capitão-mor lhes lançava cascavéis pela praia fora e eles os tomavam. E não somente tomavam os que lhe lançavam, mas vinham por eles a tomá-los da mão do capitão-mor. Do que nós ficámos muito maravilhados porque, quando Bartolomeu Dias aqui esteve, eles fugiam dele e não tomavam nenhuma coisa daquelas que lhes ele dava. Mas an­tes, um dia, em (que) ele tomava água em uma aguada, que aqui está muito boa à beira do mar, eles lha defenderam às pedradas de cima de um outeiro que está sobre esta aguada, e Bartolomeu Dias lhes atirou com uma besta e matou um deles. E, ao que supusemos, não fugirem de nós foi que nos pareceu que houveram novas dos da angra de Santa He­lena, onde nós primeiro estivemos, que são duma terra à outra 60 léguas por mar, como nós éramos homens que não fazíamos mal mas antes dávamos do nosso.
E o capitão-mor não quis sair em terra, porque esta, onde os negros estavam, (era) um mato grande, e mudou-lhe o posto. E fomos pousar a outro lugar descoberto e ali saiu; e acená­mos aos negros que fossem para onde nós íamos, e eles foram. E o capitão-mor com os outros capitães saíram em terra, com gente armada onde iam alguns com bestas. E o capitão-mor lhes mandou então que se apartassem e que viessem, um ou dois deles, e isto por acenos, E, àqueles que vieram, o capitão lhes deu cascavéis e barretes vermelhos, e eles nos davam ma­nilhas de marfim, que traziam nos braços, porque nesta terra, segundo nos parece, há muitos elefantes; e nós achávamos o estrabo (estábulo) deles bem a carão da aguada, onde eles vinham beber.
Ao sábado (Dezembro 2) vieram obra de 200 negros, entre grandes e pequenos, e traziam obra de doze reses, entre bois e vacas, e quatro ou cinco carneiros; e nós como os vimos, fomos logo em terra, E eles começaram logo de tanger qua­tro ou cinco flautas, e uns tangiam alto e outros baixo, em maneira que concertavam muito bem para negros de que se não espera música; e bailavam como negros. E o capitão-mor mandou tanger as trombetas e nós, em os batéis, bailávamos e o capitão-mor de volta connosco. E, depois de acabada a festa, nós fomos em terra onde (tínhamos ido) da outra vez, e ali resgatámos um boi negro por três manilhas, o qual jan­támos ao domingo; e era muito gordo, e a carne dele era sa­borosa como a de Portugal.
Ao domingo (Dezembro 3) vieram outros tantos, e tra­ziam as mulheres consigo e moços pequenos; e as mulheres estavam em cima de um alto, perto do mar, e traziam muitos bois e vacas. E puseram-se em dois lugares, ao longo do mar, e tangiam e bailavam como ao sábado. E o costume destes homens é os moços ficarem no mato com as armas. E os ho­mens vieram a falar connosco, e traziam uns paus curtos nas mãos e uns rabos de raposa, com os quais abanavam o rosto. E nós, estando assim à fala por acenos, vimos andar por entre o mato os moços, agachados e traziam armas nas mãos.

Pedro Álvares Cabral **

E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde.
E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora.
Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles.
Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.

* Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama, por Álvaro Velho
** Carta de Pero Vaz de Caminha

5 fev. 13