quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Enquanto não recupero o velho (quase novo) computador, vamos deixar África e viagens de Cabral em águas mornas, e vejamos um pouco o que se passa neste Brasil, quando o mundo pensa que isto aqui é um paraíso!
Seria, se...
Vale, muito, a pena ler este texto:

Dilma, ele assina em teu nome

 

DEMÉTRIO MAGNOLI

O ditador Bashar Assad encontrou nos enviados do ibas (Índia, Brasil e África do Sul) os bonecos de ventríloquo ideais para transmitir ao mundo a sua versão dos eventos sangrentos em curso na Síria. 0 comunicado final da delegação, um dos documentos mais abjetos jamais firmados pelo Brasil, pinta o cenário de um regime engajado na sua reinvenção democrática, mas assediado pela violência de grupos armados opositores. A assinatura brasileira converte Antonio Patriota em cúmplice de um Estado policial que se dedica à matança de sua população. Patriota, contudo, é funcionário de Dilma Rousseff. A assinatura dele é a dela.
O Itamaraty difunde a narrativa oficial síria, segundo a qual o derramamento de sangue deve-se à violência de setores da oposição. Há, nisso, uma nota sinistra, só audível para quem conhece o passado recente da Síria. Refiro-me a Hama e a fevereiro de 1982. Naquela cidade sunita, operavam guerrilheiros islâmicos que combatiam o regime de Hafez Assad, pai de Bashar. Após uma emboscada dos rebeldes contra forças militares, o ditador ordenou o bombardeio de toda a cidade, por terra e ar. Num tempo anterior a internet e aos celulares, há escassas, mas pungentes, imagens do resultado. No fim, Hama parecia as cidades alemãs extensivamente bombardeadas na guerra mundial.
Um dos filhos do ditador supervisionou o ataque e se gabou de matar quase 40 mil pessoas, uma cifra confirmada pelas estimativas independentes. Quando os escombros ainda ardiam, o governo vazou para a imprensa libanesa a notícia das dimensões da carnificina, enviando uma mensagem ao povo sírio. A mensagem foi decodificada, em muitos sentidos. Até há pouco, aos murmúrios, os sírios se referiam ao massacre por meio de um sombrio eufemismo: "os incidentes de Hama". Agora, enfrentando munição real, os manifestantes voltam às ruas num ânimo quase suicida pois sabem que só têm a alternativa de derrubar o regime. Patriota deveria ter a decência de pensar duas vezes antes de colar o selo do Itamaraty sobre a versão de Damasco: na linguagem dos Assad, a expressão "gangues terroristas" é a senha para aplicar a "lei de Hama".
Além de tudo, a versão é falsa. No 17 de julho, uma conferência nacional de 450 líderes opositores, laicos e religiosos, condenou a desobediência civil pacífica. 0 regime respondeu armando 30 mil milicianos da minoria alauita, a fim de reconfigurar o cenário como um conflito sectário. Artilharia, tanques e navios alvejam Hama, Homs, Deir ez-Zor e Latakia. O saldo provisório já atinge 2 mil mortos. Líderes da tribo Baqqara, de Detr ez-Zor, autorizaram o uso de armas contra incursões assassinas do Exército, de casa em casa, que não poupam crianças. Vergonha: o gesto desesperado de pessoas acuadas serve como o pretexto para Patriota reverberar a senha de uma ditadura inclemente.
Pretexto é a palavra certa. O Itamaraty não se importa com os fatos: segue uma agenda ideológica. A Constituição prescreve, no artigo 4°, que o Brasil "rege-se, nas suas relações internacionais" pelo principio da prevalência dos direitos humanos'". Dilma prometeu respeitar o artigo constitucional. O compromisso, expresso num voto contra o Irã, não resistiu a um outono. Em março. a abstenção na resolução da ONU de intervenção na Líbia evidenciou uma oscilação. Em junho, a recusa da presidente em receber a dissidente iraniana Shirin Ebadi, Nobel da Paz, sinalizou o recuo. No 3 de agosto, a rejeição a uma condenação da Síria no Conselho de Segurança da ONU concluiu a restauração da política de Lula, Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia. No seu desprezo inigualável pelo mandamento constitucional, o comunicado do Ibas equivale a uma celebração orgiástica da velha ordem.
Num “Roda Viva” da TV Cultura, indaguei a Celso Amorim sobre os motivos do governo para ignorar sistematicamente o artigo 4° da Constituição. O então ministro do Exterior retrucou invocando o princípio da autodeterminação dos povos e da não intervenção, contemplados no mesmo artigo, mas em posição inferior. A resposta vale tanto quanto as promessas reformistas de Assad. Na verdade, como fica explícito num livro do ex-secretario geral do Itamaraty Samuel Pinheiro Guimarães, a linha do governo deriva de uma curiosa tradução do objetivo de promover a "Multiporalidade" nas relações internacionais. "Multipolaridade", no idioma de nossa atual cúpula diplomática, exige a redução da influência global dos EUA - o que solicitaria o apoio brasileiro aos regimes antiamericanos, sejam eles quais forem.
A Turquia perdeu a paciência com a Síria e exigiu uma imediata retirada militar das cidades assediadas. Sob pressão popular, governos árabes condenam, sem meias palavras a selvagem repressão. O Egito alertou Damasco sobre a ultrapassagem de um "ponto de nao retorno”. Nas ruas do Cairo e de Beirute, manifestações pedem o isolamento de Assad. Longe da região, irresponsável, alheio às obrigações assumidas pela comunidade internacional, o governo brasileiro se converte num dos últimos bastiões de um Estado policial sanguinário. Desse modo, numa única tacada, viola um elevado princípio constitucional da nossa democracia e agride o interesse nacional, afastando nos da meta legítima de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Não há muito a fazer. A Comissão de Relações Exteriores do Senado é presidida por um neolulista chamado Fernando Collor. A oposição renunciou ao confronto político de idéias, limitando-se a pescaria de ocasião na lagoa pútrida da corrupção nos ministérios. Os intelectuais de esquerda, sempre prontos a fulminar com os raios de sua fúria santa os desvios retóricos do editorial de um grande jornal, não produzem manifestos de contestação aos atos do lulopetismo - ainda mais se justificados pela doutrina do antiamericanismo. Resta escrever: atenção, Dilma, Patriota assina em teu nome!

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.

E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br



De “O Globo” – 18/agosto/2011










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