terça-feira, 27 de julho de 2010

.
Os Albertos



Meu Deus! Como a vida é curta! Há dias éramos uns meninos, logo adolescentes, jovens, maduros, passados e, por fim... velhos, idosos ou velhinhos!
Não sei o que se passa com a memória, mas à medida que os anos avançam, e já bem avançados, principiamos a esquecer o que se passou ontem, na semana passada ou há pouco tempo, e lembramos passagens da vida tanto tempo esquecidas, da juventude.
A nossa memória é como a de um computador: tem capacidade limitada, com o uso, os “programas” incompatibilizam-se uns com os outros, o “disco” vai apagando o que sobra ou já não interessa, “desfragmenta-se” e tudo fica cada vez mais lento em reagir!
E daí, as histórias que os vovôs gostam de contar! Todos os vovôs gostam. Sobretudo cenas de “naquele tempo”... que não se sabe bem se foi ontem ou há muito tempo!
Sabemos, ou desconfiamos, que o “homo sapiens” apareceu na Terra há uns 50.000 anos, e que isso nada é em relação ao surgimento da própria Terra! Ninguém acredita na “conversa” do Matusalém ter vivido 969 anos, nem Noé 950, e tendo o primeiro filho aos 500! Mesmo contando os anos como os balinescos, de 210 dias... eu só teria 136!
Se assim fosse e com o constante aumento de perspectiva de vida que se tem verificado nos últimos tempos, estaríamos ainda hoje com Dom Afonso Henriques, em vez de tantos imbecis governantes que nos têm perturbado a vida, pediríamos ao Cabral para nos explicar melhor como “achou” as terras de Vera Cruz, e ainda ouviríamos o próprio Vatsayana contar como foi que estudou para escrever o Kamasutra! Etc.
E certamente não deixaríamos também de pedir ao Hamurabi que voltasse a impor a sua lei contra bandidos, ladrões, e outros congêneres como políticos, etc.
Mas, “naquele tempo”... ainda estudante, tive um colega, companheiro, com quem criei uma ótima relação de amizade e de farra, que se chamava, e chama, Alberto.
O Alberto "brasileiro" !

Com dezenove anos, depois de assistir ao desbaratar de todos os bens da família, pelo pai e tio, jogadores inveterados, não lhe foi difícil ver que não havia mais dinheiro para continuar os seus estudos, e imigrou para o Brasil. Aqui fez a sua vida, prosperou profissionalmente, teve várias mulheres de papel passado e boa variedade de outras acidentais, mas nunca enriqueceu a trabalhar para “outrem”, para patrões! Ganhou experiência, o que é evidente, e continua a ser um senhor, porque o berço o marcou!
Estivémos quarenta anos sem saber um do outro. Sem nos vermos! Pouco mais do que desconfiávamos que o “outro” estaria vivo! O reencontro foi uma festa! Falámos de filhos, netos, colegas “perdidos” e outros já idos. Hoje vivemos na mesma cidade, entrados em bons anos, encontramo-nos regularmente, falamos sobre os tempos da juventude e sobre filosofias diversas quando nada mais há para dizer, e essa amizade, de tantos anos, parece fortalecer-se cada vez mais! Conversas sempre acompanhadas com um bom copo de vinho!
Os quarenta anos sem nos vermos sumiu já da nossa memória, mas foi uma perca grande!
Já escrevi neste blog sobre um outro amigo, também Alberto, pescador, filho, neto e... de pescadores, que conheci na Baía das Pipas, no sul de Angola, talvez em 1963. Há quase 50 anos! Tivémos pouco contato nas ocasiões que o visitei, mas sempre guardei uma bela recordação deste amigo. Durante quase todo este tempo tinha o seu rasto como perdido, sabendo somente que saíra de Angola assentara arraiais em Tavira, no Algarve, mas... isso não era suficiente para o encontrar. E a dúvida a perturbar, sem saber se continuava entre nós ou se já tinha, também “ido”!
O Alberto, angolano, na "juventude dos seus 91 anos !

Foi através do blog que um seu amigo me avisou que este Alberto, seu conhecido, vivia mesmo em Tavira, estava com 90 anos, e com mais saúde do que muito rapaz de 20!
Foi uma alegria muito grande. Escrevemo-nos, falamos pelo telefone, e ficou “combinado” que se eu voltasse um dia a Portugal, que faria uma caldeirada à pescador “como manda a tradição”! Bastava isto para me dar uma terrível vontade de atravessar o Atlântico!
De um dos Albertos, o da minha juventude, estive sem nada dele saber por quarenta anos, até que finalmente, e por uma série de coincidências curiosas, nos voltamos a encontrar.
Agora estou a preparar-me para ir abraçar o outro Alberto. O da Baía das Pipas. Vamos ter muito que conversar, sabendo que jamais conseguimos recuperar o tempo que as vicissitudes na vida nos obrigou a vivermos separados.
Mas ao olhar para o tempo “perdido” longe dos amigos, que nos parece uma eternidade, ao final das contas, vemos que foi um quase relâmpago. Um instante. Um átimo, como melhor soa aos ouvidos dos físicos.
E pensamos: quantos “relâmpagos” deste tipo desperdiçamos na vida?
Cada momento que nos surge, some logo a seguir. Se não o aproveitamos com todas as nossas forças, empobrecemos.
Amigo não só não é para esquecer, como custa viver longe deles!

22-jul-10

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Graças e desgraças de um

luso-angolano

nos países baixos!



Quase lá nos antigamentes, já vão 45 anos, fui para a Europa fazer uma série de estágios e visitas a fábricas de material fotográfico, microscopia, raios X, etc.
De Munich a Leverkusen, a seguir Antuérpia, na Gevaert - que Deus tenha em sua memória - para mexer com filmes de artes gráficas.]Perto do final do estágio, muito amável, o diretor de exportação que tinha África a seu cargo, convidou-me para jantar em sua casa, um tanto fora do centro da cidade. Eu tinha comprado um carro, usado, mas ótimo, e com um pequeno esquema que o anfitrião me passou, consegui chegar no horário combinado.
Só ele e a mulher. Sentámo-nos na sala onde já estava em cima da mesa uma garrafa de whisky e dois copos - daqueles largos e não tão baixos – e o dono da casa, sempre amável, encheu o meu copo até acima, sem gelo nem nada. O dele, igual. Quando vi aquela brutalidade de bebida pensei que não conseguiria depois sair dali, mas fomos bebendo, devagar, e eu, sem saber bem como, consegui tragar tudo e ficar mais ou menos normal. O dono da casa, ainda amável, perguntou se eu queria repetir a dose que recusei. Para ele, mais meio copo.
Entretanto a dona da casa avisa que o jantar está servido e lá fomos os três para a mesa onde, amáveis, estava, aberta, uma garrafa de Casal Garcia (!). A meio do primeiro prato o nosso amigo empurra o prato, talheres e copos, afasta tudo quanto tem na frente, deita a cabeça na mesa e... ali fica ressonando que nem um porco.
A senhora, envergonhada, quis justificar, dizendo que o marido andava com muito trabalho, cansado, etc., mas ele estava era bebedissimo. Ficou a senhora à mesa e eu, sem dizermos uma palavra, ela a levantar-se para levar os pratos à cozinha e trazer outras comidas, e por fim aparece com um bolo daqueles que embucham o mais destemido, que eu aproveitei para ver se ajudava a abafar o tanto whisky que tinha bebido, além do copo do vinho que, por honra do país e para não fazer má figura, fui obrigado a beber!
Acabou o jantar e nessa altura o bêbado acorda e novamente tenta servir-me mais bebida. Como a conversa não tinha a menor hipótese de se fazer, porque o homem não abria mais do que um olho de cada vez, agradeci muito e fui embora, alegando que era tarde, etc. Aquelas desculpas esfarrapadas mas necessárias.
Entrei no carro e nessa altura o esquema do caminho a percorrer choca no primeiro obstáculo: a rua por onde viera agora era contramão! Procurei uma “paralela” que desse retorno, e comecei a dar voltas àquela área, meio perdido, sem encontrar o caminho. Ninguém nas ruas a quem perguntar, eis se não quando surge um autocarro – ônibus – e, esperto, eu, pensando que ele iria para o centro onde estava o meu hotel, decidi segui-lo. Andei, parei, andei, parei e cada vez me parecia que mais me afastava, quando de repente o dito autocarro entrou num portão e sumiu. Era a sua garagem e encerrava o dia de trabalho!
Esperei algum tempo até que um outro carro sai da garagem. E eu atrás. Anda, pára, anda, pára e ao fim de quase uma hora, desde que saí daquele “magnífico” jantar, reconheci uma rua do centro e cheguei ao hotel!
Se fosse hoje e a polícia me mandasse soprar no “bafômetro”, teria ido direto para a prisão!
O estágio a chegar ao fim, no último dia os vários estagiários – cinco – decidiram convidar o “mestre”, um jovem e simpático engenheiro, para um jantar de despedida. Comemos “moulles marinières”, uma delícia que ainda hoje me faz água na boca. Ninguém se embebedou!
E no dia seguinte a caminho de Amsterdam. Bem me avisaram que a meteorologia previa intenso nevoeiro vinal da Mancha, e que as estradas ficavam perigosas, mas assim mesmo no fim do dia resolvi arriscar.
Ao passar em Rotterdam, já noite, dentro da cidade, não se via um palmo adiante do nariz, nem sequer as placas indicando as estradas.
Entrei numa rotunda e depois de me terem informado que devia sair na segunda rua à direita, andando com o carro a passo de caracol e junto ao passeio, os olhos bem abertos à procura da tal segunda rua, a verdade é que não conseguia distinguir nenhuma “saída”.
Passado um pouco ouço uma sirene da polícia atrás de mim. Parei. Sai do carro um polícia, atencioso, e pergunta o que ando ali a fazer.
“Á procura da estrada para Amsterdam, mas não consigo encontrar!”
“O senhor já deu três voltas à rotunda! Venha atrás de nós que lhe mostramos o caminho, mas tenha muito cuidado que a estrada está toda assim!”
Quando chegamos à estrada e não havia mais que errar, deixaram-me seguir, sempre avisando que o caminho estava perigoso. E estava. Muito.
E lá vou, ainda a passo de caracol. Já me doíam os olhos e a cabeça com o esforço para não sair da estrada.
A certa altura um “anjo salvador”: um letreiro luminoso indicava ali um hotel! Chegava ao fim o meu sofrimento!
No dia seguinte de manhã segui viagem, sem nevoeiro, atravessando aqueles campos lindos e cheguei ao meu destino!


17-jul-10





quarta-feira, 14 de julho de 2010

...

LOURENÇO  MARQUES

 desde 1876 até  1930

Algumas fotos

Quando a "cidade" era só a parte baixa, em 1876
Com o Forte, a casa do Governador, a Alfândega, as fortificações de defesa,
a Igreja, o Cemitério e o canal de drenagem


Gravura de época, mostrando a chegada de António Ennes a LM em 1894, vendo-se a Fortaleza,
mais tarde quase no meio da Praça 7 de Março


O "Cinematographo", em 1898
(Não tinha ar condicionado!)


A famosa Rua Araujo.
À direita é o lugar onde mais tarde foi o BCCI
(Banco de Crédito Comercial e Industrial)


Foi neste local que esteve o BCCI

Os "Automóveis de Praça", em 1930
Ao fundo o Bazar ABC, na Praça 7 de Março

Em 1902. Refugiados boers da Segunda Guerra do Transvaal,
aguardam no Cais o embarque para Lisboa

Nota: todas as fotografias foram tiradas do belo livro "LOURENÇO MARQUES, XILUNGUÍNE", do Dr. Monteiro Lobato, editado em Lisboa em 1970

domingo, 11 de julho de 2010

Casos de Polícia - 3 -



Quinze anos depois de Angola se ter tornado independente, tive que voltar a Luanda, e também num sábado lá fui, com um amigo, fazer a volta habitual pela ilha. Beber umas cervejas na Barracuda na ponta norte da ilha, um lugar lindo, e na volta comprar lagostas e mariscos na feira que fazem os pescadores na sua aldeia. Lagosta, peixe e mariscos, tudo fresquissimo e de qualidade inigualável. Comprámos umas quantas lagostas e gambas que depois, em casa, grelhámos para o almoço.
No regresso, surgem atrás de nós duas motos Harley Davidson novinhas, lindonas, brilhando, com dois polícias muito bem fardados, a condizer com o estado das máquinas, que nos fazem sinal para encostar.
Com ar impecável pedem os documentos, verificam, olhar professoral e superficial, o estado do carro, e quando se certificam que tudo estava em ordem, mandam-nos seguir. Montam nas motos e partem na nossa frente.
Nem quinhentos metros adiante, na rotunda à saída da ponte, estão outros dois polícias, com equipamento mais velho, meio a cair aos pedaços, também a controlar o trânsito. Os das motos novas param para cumprimentar os colegas e aproveitar para exibirem o status que lhes dava todo aquele equipamento e fardamento. Tudo novo.
Ao passarmos por eles, os mesmos guardas mandam-nos parar outra vez.
- Oh! Seu guarda. Vocês mandaram-nos parar agora mesmo ali atrás.
- Onde?
- Ali mesmo. Logo adiante da ponte. Em frente ao Hotel Panorama.
- É verdade. Tem razão.- perfila-se, faz a continência, e diz: - Então tenham um ótimo fim de semana!

Quanda esta "fotografia" foi tirada, ainda não havia ponte para a Ilha
 
*     *     *

Pelas estradas do Brasil as histórias são mais do que muitas, mas neste país temos que levar em consideração algo que não existe no resto do planeta: o jogo de cintura, a simpatia latente, a alegria do povo que muito tem a ver com a disciplinada indisciplina! Parece contra senso? Como é possível haver indisciplina disciplinada? Não se explica, mas a verdade é que o Brasil é assim. É o jeitinho brasileiro. Há outro parecido? Não há.
Vejam-se as escolas de samba. Onde já se viu maior bagunça aparente, mas onde reina uma organização e uma disciplina impecáveis? Nos desfiles dessas escolas vão, lado a lado, empresários, polícias, assaltantes, artistas, traficantes, funcionários, representantes de todos os setores da sociedade. Não é verdade que se fala à boca pequena e grande que os donos da máfia ou do jogo do bicho (oficialmente ilegal, mas que se pode jogar em qualquer esquina!), ou quaisquer outros importantes do Rio são os grandes alavancadores das escolas de samba? Não faço a menor idéia se é verdade ou mentira, nem qualquer um dos cento e oitenta milhões de brasileiros está preocupado com isso. Com jogo do bicho ou sem ele as escolas de samba têm que existir e mostram ao mundo inteiro como é este país, que com todos os defeitos que lhe queiram imputar é o maior transmissor mundial de alegria.
E as torcidas da seleção brasileira de futebol? Já se viu outra mais animada? Verdadeiras escolas de samba futebolístico. A torcida brasileira não admite, nunca, por hipótese alguma, que o Brasil não ganhe todas as copas do mundo, todas as olimpíadas, todos os torneios americanos e sul americanos, mesmo que no fim não ganhe. E quem mais anima esses torneios? Experimentem um dia não levar a seleção do Brasil a um campeonato desses e verão os estádios ficar com metade dos lugares por preencher. O sonho de todas as seleções é jogar a final com o Brasil. E a gente assiste, sofrendo que nem condenado a jogos mal jogados, equipa desorganizada, selecionador xingado de tudo o que a vocabulária inventou e ainda vai inventar, mas não perde a esperança de ganhar sempre mais um titulo. E lá vai ganhando. Alguns. Às vezes.
Isto são as escolas de samba, as torcidas, o povo. O país. Dança, xinga, sofre e dá risada.
A polícia é composta de gente do povo. Desfila em escolas de samba, torce pelo futebol, bebe a sua cervejinha estupidamente gelada, não desgruda os olhos da mulata gostosona que passa na rua a gingar e exibir a bunda redondona, porque sabe que todos os olhos são para ela, mas também há uns quantos que fazem hora extra, por conta própria, com as próprias armas da polícia! Para quê comprar uma arma para assaltar se a corporação já lha fornece e com balas de graça? Os polícias são como todos os outros homens. Não podem ser diferentes. São só homens.
E então num país que tem tudo isto de exótico e muito mais, quando os mesmos cento e oitenta milhões estão cansados de todos os dias, através dos órgãos de informação serem informados da corrupção que envolve tantos políticos, governantes, funcionários, fiscais de tudo o que se possa imaginar, compradores de empresas, estatais e privadas, ninguém se vai privar, por qualquer meio que esteja ao seu alcance, de tentar convencer o policial, sobretudo o rodoviário, a esquecer aquela infraçãozinha, que muitas das vezes não prejudicou alguém. Claro que não vai.
E para tudo há jeito, com um mínimo de boa vontade e educação. O policial está investido de funções que para quem gosta de bagunça são uma chatice, e uma ameaça à libertinagem selvática! Tem que fazer cara séria, mas é igualzinho a qualquer outro cidadão, e como tal tem que ser tratado.

Neste alegre rodopio, quem vai querer multar ???

A Dutra é a rodovia mais importante do Brasil. Auto estrada, Rio-São Paulo, entre as duas maiores cidades do país, com um movimento imenso de veículos de todos os tamanhos e qualidades, condutores bons e péssimos, conscientes e inconscientes, e como seria de esperar, patrulhas ao longo de todo o trajeto. Tem que ter.
De vez em quando o governo faz umas leis gozadas. Épocas há em que a velocidade máxima permitida é de 100 km/hora, outras 80, outras ainda 120. Coisa de político que gosta de viver sobre a rama sem ir à raiz da maioria dos problemas, e fica muito contente com estas alterações que por sua iniciativa propõe ao legislativo, que com isto perde tempo e vai esquecendo os hospitais, os aposentados, as tão famosas e faladas dívidas interna, e social, a guerreada reforma agrária, as favelas, etc.
Esquece. Estamos a tratar de outras coisas, que não política.
80 km/hora, mesmo quando a Dutra estava com o piso bastante deteriorado, era ridículo. Mas era a lei. Então a polícia rodoviária facilitava a lei. Deixava ir a 100! Já melhorava um pouco.
Uma tarde, de regresso a São Paulo, seguia tranquilo naquela estrada larga, e estava até convencido de que ia devagar, para quem, como eu, gosta de pisar no acelerador. De repente a polícia manda-me parar. Radar!
- O que foi senhor guarda?
- Excesso de velocidade.
- Excesso de velocidade??? Não pode ser. A quanto eu ia?
- Cento e um.
- Oh! Seu guarda! Cento e um?!
- A velocidade máxima permitida por lei é oitenta, mas nós até cem fechamos os olhos.
- Só unzinho a mais seu guarda?
- É. Mas tem que haver um limite, quando não daqui a pouco vem outro a cento e dois, três e por aí vai.
- Mas unzinho só a mais é muito azar.
- Lá isso é verdade.
- E não dá p’ra... esquecer?
- Não. Eu não posso. Está ali o chefe, o senhor fale com ele.
Saí do carro e fui falar com o chefe, ar de chefe, sentado meio dentro, meio fora do carro, à sombra da árvore que escondia o carro da vista da estrada, ao lado do radar, talonários de multas na mão.
- Seu chefe. Olhe o meu azar: cento e um. Não dá para o senhor perdoar esta?
Sem levantar os olhos, o chefe, depois de me pedir os documentos e tê-los examinado:
- Continue fazendo cara de quem está sendo autuado.
- ???!!!
Aí complicou. Eu não estava muito alegre, como é de supor, mas de repente ter que fazer cara de cara sendo autuado, foi demais! Comecei a pensar como deveria ser essa cara, e quanto mais tentava a mímica, virado para a estrada, para que todos me vissem com ar triste pela punição que me estaria a ser imposta por alguma irregularidade, mais vontade de rir me dava. Mas não podia rir, se não estava ferrado!
O chefe tinha dois blocos na mão. Sempre sem olhar para mim, ar grave, calmo, tira o bloco que estava por baixo e passa-o para cima. Os dois rigorosamente do mesmo tamanho. Um de folhas brancas, para autuações, o que passou para cima, verdes.
Escreveu devagar o meu nome numa das folhas que depois arrancou. Devolveu-me os documentos e mais a folha verde, voltando a avisar:
- Só deve ler este papel quando entrar no carro.
- Muito obrigado.
De volta ao carro digo à minha mulher:
- Só posso rir daqui a quinhentos metros. Até lá tenho que fazer cara de quem foi multado.
- Como assim? Ele multou?
- Olha a multa!
O papel verde dizia o seguinte:
A Polícia Rodoviária Federal avisa o Sr. F...... que deve dirigir com cuidado e atenção, manter sempre a viatura em condições de segurança, observar os sinais de trânsito, etc. etc. e terminava com um simpático “Boa Viagem”!
Onde já se viu maneira mais bonita de esquecer uma infração, que quase não seria infração, sem perder a postura e a autoridade?
Imagine-se um polícia alemão ou um americano a fazerem isto! Ou um português!

Escrito em 1998

domingo, 4 de julho de 2010

Um pouco de história de Lourenço Marques

.
Um pouco de história de

Lourenço Marques,

Xilunguine ou Maputo.

Em 1894 o jornalista e dramaturgo António Enes, que dentro da sua profissão, já havia visitado Moçambique, que vivia num caos de desordem e guerrilhas/matanças, e manifestado os erros que por lá encontrou, foi convidado para assumir o cargo de Alto Comissário.
Levou consigo um pequeno Estado Maior, escol de militares que mostraram a sua bravura e disciplina e ficaram na história: Freire de Andrade, o médico Rodrigues Braga e Paiva Couceiro. Foram ainda Aires de Ornelas e Ferreira da Costa
O texto que segue, tirado do livro “A Guerra de África em 1895”, de António Ennes, relata a chegada desta “equipa” a Lourenço Marques, em 18 de Janeiro de 1895.

Passei o resto do dia tomando providencias urgentes, foi-me solicitada a atenção para a falta de meios de descarga das mercadorias que estavam afluindo ao porto para demandar o Transval, verifiquei com meus próprios olhos a necessidade de mudar os aquartelamentos das tropas, e à noite fui instalar-me na pequena casa da Ponta-Vermelha,


a propriedade da empresa concessionária do caminho de ferro, em que os governadores do distrito já haviam estabelecido residência, e que eu ia promover a paço do governo e quartel-general, embora a sua modéstia arquitectonica lhe proibisse prosápias, e a sua varanda alpendrada, sobranceira à vastidão da baía e toda afestoada de trepadeiras floridas, lhe desse ares de moradia romântica de alguma Julieta. Pelas 9 horas da noite montámos a cavalo — o capitão Freire de Andrade, o tenente Couceiro e eu, — na praça de Sete de Março, e pusemo-nos a caminho.
A caminho de que? Que sorte nos esperava, sumida na escuridão do futuro, tão compacta, tão impenetrável como as trevas corridas adiante dos nossos passos, apenas furadas aqui e além pelas luzes distantes da avenida de D. Carlos, amarelentas e enfumaçadas como morrões de tochas fúnebres? Sabíamos que nos ficava para trás um murmúrio de maus agouros. Tínhamos sentido, na praça, as frialdades de uma atmosfera de desconfianças e pavores; pequenos grupos de portugueses, parados nos passeios que o arvoredo arrendado mosqueava à sombra e luz, segredavam rezas pelas nossas almas; abancados nos quiosques-bares do jardim, estrangeiros de barbas fulvas plantadas em peles requeimadas, deitavam-nos olhares de desdém e escárnio, puxando fumaças dos cachimbos.
Pensava-se, dizia-se, que o nosso capricho de ir viver na Ponta Vermelha poderia custar-nos caro. 0 lugar havia sido abandonado pelos seus escassos moradores. Ficava muito fora das linhas de defesa. Era considerado à mercê dos rebeldes, que já haviam salteado a Pulana, logo ali adiante: por que não iriam eles também, num lusco-fusco, meter dentro as portas de vidraça, que naquele ermo seriam a única defesa e guarda dos homens recém-vindos da Europa de propósito para os profligarem ? 0 coup de main era tentador, era, e o Maazulo e o Matibejana tinham na cidade, talvez na própria casa do governador, quem lhes mandasse avisos e conselhos! (Em casa do governador do distrito havia um criado preto, da Zichacha, que se tornou tão suspeito de conivência com os revoltosos que o próprio amo, que lhe era muito afeiçoado, mandou-o prender, afinal.)
Era isto o que se murmurava e o que nós mesmos pensávamos; mas, antes de tudo, cumpria-nos restabelecer a confiança, tão quebrantada ainda que raras noites discorriam sem sobressaltos, pânicos e alertas. De Moçambique, quando não conhecíamos bem o estado das coisas, tínhamos mandado preparar, para nossa residência, a casinha da Ponta-Vermelha, e nem sequer nos lembrámos, portanto, de que era possível não irmos lá viver.
Tínhamos a percorrer cerca de quatro quilômetros. A princípio, o caminho é civilizado e policiado; sobe-se a Avenida de D. Carlos, larga como as esperanças e ambições da cidade e do porto. À mão direita, o arvoredo oscilante do Jardim Botânico cobre como um biombo recortado as estrelas baixas do céu, e exalam-se de lá baforadas de umidade e vozearias monótonas de rãs. Depois ainda se vê bruxulearem as lamparinas dolentes das enfermarias do hospital, mas, poucos passos andados sai-se de toda a luz e toda a sociedade passa, sobre areia solta, desta que recua com os pés que a pisam, e por entre fímbrias de arvoredo e mato, costear primeiro as altas dunas escalvadas, e depois a aresta das ribanceiras, cada vez mais altas e aprumadas, que marginam a entrada do porto. Durante largos trechos está-se ali tão só como no entranhado sertão; de dia vêm os macacos do Machaquene fazer gaifonas aos transeuntes do alto das mafurreiras; de noite, só dá fé de que está à beira de uma cidade quem repara que as luzinhas, acesas lá em baixo, estão muito alinhadas para serem estrelas nascentes.
Atravessamos estas trevas ermas a passo, mais guiados pelo instinto dos cavalos do que pelos próprios olhos. Mal nos víamos uns aos outros. 0 canto estrídulo dos ralos acompanhava-nos, tão persistente, tão igual, como se nos seguisse uma escolta dos importunos insectos. Falávamos pouco, porque sentíamos muito. Vínhamos da pátria e da família, e íamos embrenhar-nos num labirinto de perigos formidáveis, de trabalhos esmagadores, de responsabilidades temerosas. Que seria de nós ? Os presságios não eram animadores, não! 0 canal de Moçambique acolhera-nos com dois temporais desfeitos; o vento sul, impróprio da estação, parecera querer desviar-nos da costa portuguesa; a nossa chegada à capital fora festejada com a noticia dum morticínio à margem da linha férrea; a Afonso de Albuquerque encalhara conosco ao dobrar a Ponta-Vermelha. Um grego ou um romano desesperaria de empresa começada sob o influxo de tão porfiado azar. Que mais viria ainda provar-nos a fortaleza de ânimo ? Já seria vento das asas da morte aquela aragem morna e úmida que nos roçava pelas faces? Estariam cafres emboscados no arvoredo rumorejante que nos tapava as estrelas? Uma voz aguda, precipitada, rompeu do escuro:
— Quem vem lá?
— Oficiais! respondemos.
Nem sequer entrevimos o vulto do soldado. Era uma sentinela perdida, um angola, dos vinte e tantos recrutas e inválidos que tinham ficado, como esquecidos, no quartel da Ponta-Vermelha quando a tropa recebera ordem de se concentrar na cidade.

Seguimos adiante. Um traço negro projectado sobre a neblina luminosa da via-lactea, fez-nos reconhecer, pelo mastro da bandeira, a estação da companhia inglesa do telégrafo. Mais avante descortinamos à distância ramarias altas tingidas por uma vermelhidão afogueada e trémula, sobre a qual passavam flocos alvacentos de fumo: havia por ali indígenas, que se aqueciam à fogueira. As trevas eram cada vez mais densas. Perdemos de todo a noção dos lugares. Não demos pela bifurcação das estradas; mas já íamos descendo, e havíamos portanto entrado na vasta plataforma da Ponta-Vermelha. Ali, o terreno é todo retalhado por vedações de fio de arame farpado, em que os cavalos poderiam tropeçar; lembrei-me desse perigo e avisei dele os meus desprevenidos companheiros.
— Eu vou adiante! ofereceu logo o tenente Couceiro, sempre pressuroso de se atirar para a frente.
— Vou eu, conheço melhor o caminho; opôs Freire de Andrade. Nisto o meu cavalo esbarrou violentamente no que quer que fosse, cujo contacto duro também senti na perna esquerda; atirou-se para o lado e partiu às upas, levando-me destribado, desequilibrado, cego pelas trevas, inconsciente da situação, de encontro a umas ramagens que o fizeram estacar e me apalparam a face e o corpo todo com os galhos rijos e frios. Ao mesmo tempo ouvi, para trás de mim sons confusos de embates, interjeições abafadas de surpresa, o baque de um corpo pesado, e, no meio do meu próprio desconcerto, pressenti que algum desastre sucedera aos outros cavaleiros. Interroguei-os de longe.
— Foi o cavalo que caiu comigo; respondeu Freire de Andrade, com o seu habitual tom de voz, baixa e arrastada.
— Espera que eu me apeie! dizia Couceiro, com sobressalto.
— Molestou-se ?
— Não posso levantar-me; volveu Andrade com a mesma inflexão serena; mas não é nada.
Continuava o azar a perseguir-nos! Diligenciava apear-me, quando avistei a pouca distância uma luz movendo-se por detrás de folhagens ralas; chamei, gritei, respondeu-me a voz de um criado preto, que logo surgiu, açodado, com uma lanterna acesa. A cem passos da alta sebe de miosporos que detivera o meu cavalo na carreira, estava Freire de Andrade prostrado na areia profundamente escavada, forcejando por levantar-se e ter-se em pé amparado pelos braços de Couceiro; muito pálido, mal podendo reprimir contrações faciais de dor, forcejava por se rir da sua triste aventura, repetindo sempre:
— Não é nada! Não se aflijam! A luz permitiu reconhecer a causa e o processo do desastre. No momento em que eu me recordara das vedações de arame, estávamos a dois passos da que fechava pelo lado da cidade o quintal da casa em que íamos residir, e que era interrompida ali por uma larga cancela de ferro. Estava aberta essa cancela, e pelo seu vão passou desempedidamente o tenente Couceiro, que cavalgava a minha direita; o meu cavalo esbarrou num umbral, e o de Freire de Andrade, tendo batido em cheio com o peito na vedação farpada, feriu-se, empinou-se, saltou, quebrou o fio de arame mais alto, prenderam-se-lhe os pés nos fios inferiores, e chapou-se entalando debaixo do corpo a perna esquerda do cavaleiro. O pobre rapaz parecia ter fractura na articulação do pé. Couceiro e o negro pegaram-lhe ao colo, e a nossa entrada no paço do governo da África Oriental Portuguesa, no quartel-general das tropas apelidadas para renovar a fama dos lusos feitos medievais, teve a desoladora solenidade de um cortejo de dor transpondo o limiar de um hospital à luz baça de uma lâmpada, que me fez lembrar, a mim, a que acompanha de noite a Extrema- Unção.

Tive um momento de desanimo. Que agouros! Que estréia! Em curtos dias, duas tempestades, a notícia duma façanha bárbara dos revoltosos, um encalhe à entrada do porto, e a entrada de casa um desastre, que inutilizava por largo tempo um dos meus companheiros devotados!
Vinte minutos depois chegava em nosso auxílio o Dr. Rodrigues Braga, que nos seguira em machila, fiando-se corajosamente dos ombros a lealdade de quatro malandrins negros, que a policia fora buscar à cadeia para o transportarem através das trevas e dos pavores. Também teve aventuras. Os machileiros extraviaram-se, foram parar às vizinhanças do quartel de Caçadores 3, e o doutor, que não sabia já por onde andava, foi surpreendido por um grito açodado de quem vem lá? que rompeu da escuridão impenetrável. Oficial! respondeu; mas ouviu logo o estalido seco dum cão de espingarda a armar-se, e se não se tem ido rapidamente da machila abaixo correndo para a sentinela e falando-lhe, teria levado um tiro quási à queima-roupa.
— Porque não disseste escamarada ? observou-lhe o recruta negro, que não conhecia a fórmula de reconhecimento.
Freire de Andrade foi então examinado e tratado com fraternal carinho. Não havia fractura, felizmente. A causa das violentas dores que o torturavam era uma entorse, tão grave, porém, que o reteve mais de quinze dias no leito e fez-se lembrada durante meses.

Imagens de autor desconhecido impressos no Centário da Cidade de Maputo em 1887.