domingo, 28 de junho de 2009

1962.
De Maquela, pela Damba,
para o Uige
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Mata da região do Uige - por Neves e Sousa, o Grande pintor de Angola


Não muitos quilômetros adiante da anterior cena em que o porco foi a personagem de destaque, a estrada estava em construção, ou reconstrução, e como tinha chovido muito nos dias anteriores as obras tiveram que parar, porque numa extensão bastante grande, aquilo se transfomara num lameiro só. Barro vermelho, terrível. Região de café, quente e úmida.
O Fusca sempre foi um carro especial, e com alguma experiência é difícil deixá-lo atolar, mesmo nesses lameiros profundos. Qualquer outro carro, mesmo jeep, dificilmente os atravessa. Fusca dança em cima da lama, entra com as rodas nos trilhos de outros carros, normalmente de caminhões, fundas, roça a barriga pelo chão, escorrega aqui, empurra ali, mas lá progride, Deus sabe como. De repente pela frente um caminhão tombado. Derrapara na lama e estava caído de lado. A carga era de animais: porcos, cabras, galinhas, patos, etc. Tudo por ali espalhado. Uns ciscando, outros fuçando ou picando um pouco de capim aqui e além. O motorista e o ajudante sentados no chão procurando com trabalho alguma sombra da carroceria, procuravam que os animais não se dispersassem, enquanto aguardavam socorro já pedido na véspera. Tinha que vir um trator, possante, para endireitar o carro, ainda por cima a ter que o fazer no meio de um lamaçal que estava longe de secar. Quando chegaria? Quem sabe! Paciência era uma virtude que não podia faltar a quem andava naquelas estradas.
O acidente tinha sido na véspera, há mais de vinte e quatro horas, e tudo ali jazia sob um pesado calor úmido e um desconforto total. Nem na cabine do carro podiam entrar, porque o banco estava na posição vertical!
No meu carro, além das caixas de cerveja ia sempre uma bolsa isotérmica, que antes da saída de qualquer povoação, se enchia com o máximo possível de cervejas bem geladas, e que assim se mantinham o dia todo.
Como é evidente não podíamos fazer nada para ajudar os homens a sair daquela situação.
Parei o carro, boa tarde, isto é que foi azar, iam para onde, vêm de onde, etc., e pouco mais do que isto. Depois de ouvir os escassos lamentos úteis em semelhante ocasião, sempre me pareceu que o melhor seria aliviar um pouco a má disposição daqueles dois. E perguntei:
- E que tal agora uma Cuca gelada?
Perguntar ao nu e esfarrapado se quer uma camisa! Nova e lavada!
- Você vê-nos nesta situação miserável e ainda vem gozar conosco? Cerveja gelada, hein? Siga a sua vida e deixe a gente em paz! - disse o motorista com cara de poucos amigos.
- Bom. Querem, ou não querem uma Cuca geladinha?
- Se isso fosse possível, era milagre. É tudo quanto estou a desejar desde que o sol começou a aquecer. Mas, por favor, não brinque com coisas sérias.
Fui ao carro, tirei duas cervejas, que estavam mesmo geladas, e quando as entreguei aos homens, eles não queriam acreditar! Não é que lhes apareciam, ali no meio de nada, onde ninguém passava há pelo menos vinte e quatro horas, duas cervejas, e geladas! Era mesmo milagre! O espanto na cara daqueles homens era digno de ser perpetuado! E a alegria?
Beberam com um prazer que de certeza nunca outra cerveja lhes havia proporcionado! Só se ouvia Aaaahhhh, que maravilha!
Tive que seguir viagem, mas de certeza aqueles homens, que ainda ali ficaram, esperando por ajuda válida, nunca mais na vida devem ter esquecido que um dia lhes caiu do céu uma Cuca tão bem gelada.
Nessa noite iria dormir no Uige e no seguinte talvez em casa, em Luanda, onde a família, nessa altura composta pela mulher e já cinco filhos, me cutucava de saudades.
A certa altura, caminhando pela berma da estrada, com a tranquilidade de quem dispõe de todo o tempo do mundo, um homem já entrado em anos, porque alguns cabelos teimavam em querer aparecer brancos, carregava na cabeça um bonito cacho de bananas.
Era habitual nestas minhas saídas, correndo através das estradas de Angola, no regresso levar alguma coisa para os muitos dentes do pessoal que me aguardava: por vezes alguma pequena peça de caça, visto que sempre levava comigo uma ou duas armas, ou galinhas, ou frutas, raramente verduras, que comprava aos camponeses a preços muito inferiores ao que se encontravam na cidade, e decidi entabular negociações para comprar o cacho de bananas. Parei o carro.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
- Quer vender o cacho de bananas?
- Não, patrão. É para minha casa.
- Mas onde você encontrou esse cacho pode ir lá buscar mais. E eu pago esse.
- ???!!!
Esta conversa não foi assim tão simples. O nosso homem não queria mesmo vender as bananas! Mas avançando um pouco mais na difícil argumentação, acabei por convencê-lo!
- E então quanto valem as bananas?
O homem pensou, demorou a responder e depois:
- Dez angolar!
- Dez angolares??? Isso é muito caro. É o preço que eu pago na cidade.
Ofereci cinco.
- Cinco não. É pouco. Dez angolar.
Aí ficámos: eu oferecendo cinco e ele insistindo nos dez, sem evoluir, até que o pobre homem capitulou e concordou com os cinco angolares.
Guardámos o cacho dentro do carro e quando lhe fui pagar com uma nota de dez o velhote respondeu que não tinha troco. Aliás não tinha uma única moeda. Rebuscado pelos bolsos lá encontrei dez angolares trocados e passei-os para a mão dele. Viu que era dinheiro demais e quis devolver o excedente do combinado!
Nessa altura era eu que insistia que lhe queria pagar os dez angolares. O homem não aceitava. O combinado tinham sido cinco!
Então lá lhe entreguei o combinado, e a seguir “ofereci-lhe” os outros cinco para ele beber uma cerveja! Assim era outra coisa! Ele aceitou, sorriu, agradeceu, e cada um seguiu o seu destino! O nosso homem com dez angolares no bolso, que lhe deram com certeza muito jeito, e eu, além de ter desfrutado daquela simpática negociação, carregando umas ótimas bananas para a turma dos meus caluandos.
Era assim, naquele tempo!

N.- Em 1962 a moeda já tinha deixado de ser “angolar” para ser “escudo”. Mas isso fica para outra história!

in "Contos Peregrinos a Preto e Branco" de Francisco G. de Amorim

28 jun 09


sexta-feira, 19 de junho de 2009


1962.
De Maquela do Zombo para Damba.
Norte de Angola.
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Seria mais ou menos assim a senzala

Bem perto da fronteira norte com o Zaire. Por ali a guerrilha não dava muita trégua, o que tornava deveras perigoso circular por aquela região. No entanto, volta e meia as coisas se apresentavam mais calmas ou mais controladas e sempre aparecia quem se aventurasse a fazê-lo. Não havia outro meio de visitar todas as povoações, porque poucas justificavam ter pista para aviões, por pequena que fosse. Alem disso o eventual ataque de guerrilheiros a carros particulares era raro, menos ainda numa estrada de bom piso. De qualquer modo raros eram os caros que ali passavam.
A estrada estava boa, piso firme e liso, e o carro, desta vez um Fusca, seguia em boa velocidade. Comigo só o ajudante que falava, alem de português, nada mais do que a língua da sua região, o umbundo. Como se dizia na época, bailundo!
De repente ao passar ao lado de uma sanzala, um porco de tamanho já razoável, pesando quatro ou cinco arrobas, andar tranqüilo e despreocupado, já que o problema colonial não era com ele, lembra-se de cruzar a estrada. Sem hipótese de desviar ou travar completamente, o Fusca apanhou-o e jogou-o longe. Longe... uns 4 ou metros.
Que chatice! Logo em plena região efervescente. Pára-se o carro e analisam-se os estragos mútuos. Um porco morto e um pára-lamas torcido, encostado no pneu. Felizmente só isso.
Acorre gente, primeiro a criançada, os candengue, e os homens, enquanto as mulheres largam o pilão, a mandioca, as quindas e os mussalos para virem juntar-se ao grupo de espectadores.
Num instante está um monte de gente à nossa volta, mais ou menos todos falando ao mesmo tempo, ou para si mesmos, uns com os outros ou somente imitindo expressões de pasmo.
- Háca! Aiué!
A língua daquele povo é o quicongo, mesma remota raiz do quimbundo e do umbundo, mas já assaz diferente, para não permitir um entendimento fácil com as gentes do centro e sul. E a gente daquela sanzala pouco ou nada falava de português.
Para encetar o diálogo avança um homem, uma espécie de intérprete porta voz do pensamento e vontade da comunidade! Começa a discussão, calma e difícil por causa da língua, mas não impossível, sobre o porco, que estava morto. Todos na esperança, quase certeza, que o motorista lhes ia pagar o animal, procuravam valorizá-lo. Para que não houvesse divergência de atitudes e valores a passar ao branco, antes de se pronunciarem conferenciavam primeiro entre si e o porta voz transmitia a opinião aprovada. Depois era preciso traduzir a mensagem, e a seguir discuti-la. Regatear o valor. O primeiro valor é sempre alto! Voltava o grupo a confabular entre si, com uns quantos mais calmos e condescendentes e outros linha dura, deixando transparecer que nem todos estavam de perfeito acordo, cabendo sempre ao mesmo porta voz transmitir a opinião, se não unânime, pelo menos da maioria, e acordada. Tudo isto sem pressa, pacífica e tranquilamente. Para eles o tempo passa devagar, e sabem bem que as cadelas apressadas parem os filhos cegos. Encostado ao carro eu gozava aquela negociação, feita com a colaboração do ajudante, bailundo forte, o Agostinho, que não entendia bem, creio que nem mal, as mensagens emitidas pelos co-proprietários do porco. Entretanto eu deixara de ter pressa em sair dali porque aquele dialogo era sensacional, e muito me divertia.
Ao fim de um bom tempo tinha-se conseguido estabelecer a primeira plataforma de entendimento. O valor do porco. Cem escudos. Mas era conveniente que se repetisse para que não restassem duvidas:
- O porco vale então cem escudos?
Todos abanaram positivamente a cabeça, porque cem escudos era linguagem geral!
- Sim.
A cara deles mostrava-se satisfeita com o acordo. Estava encerrado o primeiro capítulo. Depois desta etapa decidi que era preciso passar a discutir um outro aspecto importante da questão: a estrada fora feita para porcos ou para carros?
Não esperavam por esta! Com ar de candengues apanhados com a mão no doce, recomeçam as sessões parlamentares entre todos, que não tiveram muita dificuldade em concordar que as estradas haviam sido feitas para carros. Sentido de justiça não lhes faltava, e mesmo sabendo que podiam perder a disputa, se disputa se podia chamar aquela procura de entendimento, não negavam o que a consciência lhes ditava. O porco não devia ter atravessado a estrada. Fim do capítulo segundo.
Até aqui já se tinham passado talvez uns trinta minutos. O semblante daquela gente perdera parte do sorriso! Já antevia os tais cem escudos a voarem!
Novo ponto a discutir: uma vez que a estrada era para carros, o porco é que havia estragado o carro, que ficou com um pára-lama todo torcido, a que entretanto o Agostinho já havia dado ali mesmo um jeito para não encostar no pneu, que não chegou a sofrer. O culpado era o porco. Quem devia pagar a reparação?
Aquela gente com ar ainda um pouco mais triste, após conferenciarem ativa e novamente entre si acabaram por acordar que a verdade era aquela. A culpa era do porco. Todos, através do porta voz, acabaram por dizer que sim, e ficaram em silêncio à espera do desfecho do diálogo.
Calculou-se então que a reparação do carro custaria outros cem escudos, assunto de que eles não tinham noção, e que na verdade ia custar bem mais. Foi preciso explicar-lhes que o carro tinha que ir para a oficina, pára-lamas novo, pintura, etc., e isto se não tivesse afetado a direção. Tudo coisas que significavam mais ou menos... chinês. Ao fim de mais outro tanto tempo, concordaram também que esse valor seria, quem sabe?, o custo da reparação.
Quarto capítulo. Recapitulando, antes de passar à final: se o porco valia cem escudos, a culpa do acidente fora do dito porco, e o custo da reparação era também de cem escudos, está-se mesmo a ver que quem ia pagar o estrago era o próprio porco.
- !!!!
Desilusão. Começaram por pensar que além de ficarem com o porco para o comerem, ainda iam receber cem escudos de indenização, e agora não só não receberiam nada, como tinham que entregar o porco!
O ar era de tristeza e confusão no semblante de cada um e de todos. Ficou no entanto bem assente que eu levaria o porco para me pagar dos estragos por ele feitos. O porco passou a ser minha propriedade. Tudo muito devagar e cordial, nunca se passando ao ponto seguinte sem que o primeiro ficasse bem claro em suas mentes. Mas o que é justo é justo!
Nessa época eu trabalhava na fábrica de cerveja, a Cuca, a mais antiga e bem conhecida em todos os cantos de Angola, e sempre viajava levando o carro abastecido com umas quantas caixas, para o que pudesse acontecer. Nunca havia perigo de se acabarem porque no próximo distribuidor repunha o estoque.
- Bom, então o porco é meu.
- ... sim, siô.
Vai começar nova discussão, desta vez mais sutil e delicada.
- Eu vou dar o porco para vocês comerem.
- ???!!!
- Dado; oferecido!
Não queriam. Aquilo fazia muita confusão nas suas cabeças. Porquê lhes havia eu de oferecer o porco? Alguma coisa ia querer de volta. O negócio não estava a cheirar-lhes bem! Nunca alguém lhes tinha dado alguma coisa sem querer de volta uma paga maior. Desta vez não era o caso. Foi difícil convencê-los que eu simplesmente lhes oferecia o porco e não queria nada de volta. Assim mesmo continuavam desconfiados.
Só se convenceram quando o finalmente o Agostinho a um sinal meu tirou de dentro do carro uma caixa de cervejas e lhes entregou.
- Como vocês foram simpáticos, não só vão ficar com o porco, como ainda com esta caixa de cerveja, para acompanhar a festa.
Como se pode imaginar, isto não foi dito com tanta singeleza, por dificuldade de entendimento lingüístico.
Quando por fim ficaram bem cientes de que iam mesmo ficar com o animal, sem pagar nada e ainda por cima recebiam, de graça, uma caixa de cervejas, foi uma festa. Quizomba, aliás madinga!
Toda esta conversa havia durado perto duma hora, mas valeu muito a pena. Analisar as discussões entre eles, cautelosas para não deixarem transparecer os seus pensamentos, desconfiados com um indivíduo que nunca tinham visto, e desejosos de, como toda a gente, levar alguma vantagem, era um espetáculo.
Nas suas caras via-se agora tranquilidade. As crianças não entenderam muito bem o negócio, nem era negócio que lhes interessasse. Mas os adultos, homens e mulheres batiam palmas de alegria e agradecimento. Correram a pegar no porco para o esfolar, e não queriam deixar-me ir embora sem que ficasse para comer com eles! Infelizmente não podia. Naquela estrada não se devia nunca circular de noite, e ainda tinha muito quilometro a percorrer.
Bebemos uma cerveja juntos, quase trocámos juras de amizade eterna, o que não era difícil de concretizar, e depois, com muita mágoa, tive que ir embora.

(a continuar...)
in "Contos Peregrinos a Preto e Branco", 1998
por Francisco G. de Amorim
4 jun. 09

terça-feira, 16 de junho de 2009



De Benguela
a Sá da Bandeira


Não era este o hotel do Toco, mas... parecido!


Continuemos em 1954
Por esta estrada, pouco mais do que picada, passei inúmeras vezes. Era a ligação de Benguela para o sul, para Sá da Bandeira, hoje Lubango, e daqui para Moçamedes, hoje Namibe, para o Humbe, e para a região dos cuanhamas e cuamatos, fronteira com a Namíbia.
O mesmo furgão, Renault, duro, incómodo, e somente dois passageiros. A minha mulher e o ajudante, o Sebastião.
Este, que um dia depois de eu ter ido embora de Benguela me escreveu uma longa carta que começava com Meu amado mestre, que quase me fez sentir o Messias! Era um rapaz novo, o Sebastião, humilde, alegre, prestável. Nada sabia de mecânica, mas foi sempre imensamente prestável, quando o carro avariava no caminho, em casa dos agricultores onde tantas vezes tive que prestar assistência a equipamentos agrícolas, e até nos escritórios da empresa, na montagem das máquinas novas que iam chegando. Ao fim de um ano de andar comigo já fazia muita coisa. Talvez daí o tratamento de Mestre!
Desta vez o Renault ia com o motor a falhar. Engasgava-se com facilidade, sobretudo nas subidas. A gasolina não chegava bem ao carburador, e nunca se chegou bem a saber se era a bomba, que foi trocada, mais tarde até colocada uma outra em paralelo, elétrica, que a original era mecânica, desmontou-se e lavou-se o deposito de combustível, limparam-se os canos, enfim fez-se tudo o que era possível, e o carro continuava a falhar.
Perto de Cacula saímos da estrada principal para visitar um fazendeiro, com quem troquei idéias sobre problemas ligados à melhoria da sua produção agrícola. Trabalhava este ainda de acordo com o que a natureza lhe dava, o que significa que não melhorava a terra, não fazia rotação de culturas, nada. Achava ele que se a terra era virgem tinha que dar produções imensas durante bastante tempo! Só dali a muito tempo é que iria pensar em qualquer ajuda, análise de terras, eventual adubação, etc. Burro! Produzia algum milho, massambala, pouca horta e umas quantas arvores de fruta, e criava gado. Tudo à boa moda do Deus dará!
Alem de um pastor, tomava conta do gado uma cadela de raça misturada com Leão da Rodésia, valente e bonita. Uma semana antes de lá passarmos tinha enfrentado, sozinha, uma leoa que se aproximou do gado certamente com a intenção de levar alguns bifes para a família. Enfrentou-a e conseguiu afastar a leoa que desistiu dos seus intentos. Bichinho valente, estava com uma ninhada de sete filhotes. E como filhote, mesmo de vira latas, é bonito, aqueles eram lindos. Saímos de lá com um macho, que cresceu conosco e se fez um estupendo companheiro e guarda.
O destino era Sá da Bandeira, cidade situada numa região montanhosa, a mil e oitocentos metros de altitude, um clima maravilhoso, e que naquela altura tinha o melhor hotel do mundo: o Grande Hotel da Huíla. Limpíssimo, as camas com colchões ingleses, altos, muito macios e confortáveis, o ar era condicionado pelo tempo sempre fresco de dia e frio de noite devido à altitude, os quartos de banho impecáveis, banheira grande, sempre com água quente a qualquer hora, uma sala de jantar sóbria e uma suculenta comida caseira, mas que ainda hoje não tem hotel, mesmo com cem estrelas, que se lhe compare! Era uma delicia.
...
Grande Hotel da Huila, restaurado. Era todo branco (mais bonito) e tinha um simpático jardim onde agora está a piscina
...
Chegar a qualquer hotel depois de uma viagem por estradas de terra, poeirentas e esburacadas era sempre uma maravilha. Mas chegar ao Grande Hotel da Huíla, e sobretudo lá ficar alguns dias, era o Máximo que se podia almejar.
Depois de Cacula a estrada começa já a subir para o planalto, e o carro falha cada vez mais.
Engasga-se. Pára. Abre o capô. Olha-se para dentro e nada se faz porque não há nada que se possa fazer, apesar de carregar sempre no carro uma completa mala de ferramentas. Seria a tal bomba de gasolina? Talvez, mas mesmo que fosse não havia outra para trocar em pleno mato. Com isto vai-se perdendo tempo, e entretanto a noite adensa-se. O local mais próximo onde ficar era no Toco, no entroncamento das estradas de Sá da Bandeira para Benguela e para a Matala.
Depois de Hoque a estrada entra no começo do alto da serra e sobe íngreme e ziguezagueante até chegar ao topo, a dois mil metros de altitude.
O carro, cada vez mais engasgado, não consegue subir. Fez-se tudo, e... nada. Só de marcha a trás, de ré! Faltando ainda uns doze a quinze quilômetros, a única solução para não ficar na estrada foi virar o carro e ir às arrecuas p´a trás!
Abriu-se a porta traseira do furgão, o Sebastião sentado com as pernas para fora, lanterna na mão tentando alumiar, mal, as bermas da estrada, e eu com o pescoço torcido quase 180º conduzindo aquela droga de carro montanha acima. O frio entrava pela porta aberta e ia congelando a todos. Velocidade lenta. Lenta, ainda é pouco, lentíssima. Por todas as razões, e até porque o motor podia não aguentar e fundir de vez!
Nem o motorista aguentava muito apesar da sua juventude! Anda um pouco, pára para descansar e mexer o pescoço. Anda um pouco mais, torna a parar, e assim, com uma canseira imensa, finalmente chegámos ao Toco às duas horas da manhã. Ainda hoje não sei bem como conseguimos tal proeza. Os vinte e poucos anos de idade...
Dizer-se que ia cansado é piada. Arrasado. Depois de ter saído de Benguela a pensar que ia dormir no melhor hotel do mundo, para onde tinha telefonado a reservar o quarto, e não poder lá chegar, qualquer lugar servia para descansar e tentar endireitar o pescoço, mais do que torto!
Até mesmo numa espécie de hotel, no Chongoroi, a uns duzentos quilômetros de Benguela, que tinha unicamente dois quartos, e onde uma vez tive que ficar para dormir. O travesseiro estava tão limpo, que fui obrigado a cobri-lo com a minha camisa, mesmo empoeirada, para poder disfarçar! Acordei de manhã com uma pontada nas costas, e pensei que fosse do colchão, feito de palhas de milho, que pelo meio tinha uns tarolos imensos, duros que nem troncos! Não era. Alguém que lá dormira antes tinha esquecido um lápis dentro da cama que se me enfiara nas costas! Os lençóis desses palaces não deviam ser mudados mais do que uma vez por ano! Começavam por ser brancos e quando já não se viam de escuridão, então iam lavar! Dormia-se vestido, só se tirando as botas! Alguns nem isso!
Mas quando se era obrigado a ficar nesses cinquenta estrelas a razão era ditada pelo cansaço que não permitia andar mais sem risco de adormecer ao volante. Era o que havia!
Mais estrelas ainda tinha outro hotel em Menongue. Depois de me deitar e apagar a vela, assim que me habituei à escuridão do quarto, começo a ver uma imensa porção de estrelas no teto! Não, não era a classificação turística hoteleira! Faltavam algumas telhas, o que permitia ver aquele céu, lindo quando se quer apreciar, mas pouco convidativo quando o buraco do telhado é bem por cima da cama! Por acaso nessa noite não choveu!
No Toco, a que eufemisticamente se chamava povoação, onde como é evidente luz elétrica não existia, havia somente três casas, todas pertencentes à mesma família. A de comércio, a habitação e uma espécie de hotel ou albergue, construída num local um pouco mais elevado, em cima de uma rocha. Era um edifico térreo com cinco portas para a rua, aliás a estrada. Cada porta dava para um quarto com meia dúzia de camas, onde os viajantes, praticamente só camionistas, à medida que chegavam, qualquer que fosse a hora, se deitavam para dormir. Nenhuma porta tinha chave. Não fazia falta. Era assim a África, tranquila.
A organização ali era simplissima. Quem fosse chegando procurava uma cama vazia, deitava-se, dormia, e no dia seguinte pela manhã, depois de matabichar pagava a sua conta e seguia então viagem. O matabicho, para gente que além ter estômagos fartos, não sabia quando chegava ao próximo destino, compunha-se de café, leite, pão e manteiga, e ou bifes, grandes, com batata frita, ou então bacalhau cozido com batatas! O que no Brasil se chama café da manhã, ali era algo de substância. E matabichar às cinco, seis horas da manhã, uma bacalhauzada, era ótimo! Já se saía aviado para o que desse e viesse.
Dormiam os viajantes uns quantos no mesmo quarto e muitas das vezes nem se chegavam a ver pelo desencontro das horas de chegada e partida. Mas dormiam e roncavam.
Pescoço à banda, braços e costas doloridos, todos nós enregelados, tudo o que eu naquela ocasião pedia a Deus que me desse era uma cama com dois cobertores de papa bem quentinhos. Não aguentava mais.
Abri a primeira porta, entrei sem acender a luz, porque nem havia, adivinhei algumas camas vazias, e cansado como estava comecei logo a despir-me. Minha mulher atrás, lanterna na mão, cautelosamente percorrendo os cantos do quarto à procura de alguma barata! Eu queria lá saber de baratas. Só queria mesmo era deitar-me. De repente o foco da lanterna ilumina uma cadeira que tem pendurada um par de calças. De homem. Mais uma camisa e no chão umas botas.
Sussurrando, chama-me e mostra-me a descoberta. Aponta a lanterna para a cama, e lá estava outro hospede, dormindo o sono dos justos, profundamente.
Eu já tinha despido a camisa e as calças. Pegamos tudo novamente e vá de ir procurar outro quarto. O segundo estava vazio, bem confirmado pela lanterna que desta vez não procurou mais baratas mas percorreu todas as camas.
Para não dar hipótese a que outro retardatário viesse dormir conosco, improvável devido ao adiantado da hora, empurrei uma cama para a porta, para teoricamente a trancar. Não trancava, mas pelo menos dificultava a entrada de alguém mais e talvez, talvez, se tentassem forçar devia fazer suficiente barulho nos acordar e assim podermos avisar que o quarto estava ocupado! Cansado como estava, eu não acordaria de jeito nenhum, mas ficámos moralmente mais à vontade!
Num instante acabei de me despir e em menos de outro estava enfiado por cima daquele colchão de palha, mesmo duro, debaixo dos tais cobertores pesados. Não sei quanto tempo levei para adormecer, mas creio ter entrado na cama já com um olho fechado!
Depois daquela viagem incrível, com um frio miserável, de ré, todo torcido, aquela cama mesmo sendo bastante péssima era uma maravilha! E devo ter dormido bem porque me levantei só a meio da manhã! E não perdoei o meu matabicho de herói!
No dia seguinte, feriado, 8 de dezembro de 1954, conseguimos finalmente, e ainda muita engasgadela do motor chegar a Sá da Bandeira, porque já não havia mais subidas íngremes, a estrada desenvolvia-se pelo topo da serra, e aí, sim, descansar e gozar aquele clima e Aquele Hotel.
Que saudades!...

Do livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”, 1998, por Francisco G. de Amorim
16 jun. 09

terça-feira, 9 de junho de 2009


Ainda em 1954

Pelas estradas de Angola
.

Outro modelo daqueles famigerados Renault!

Foto (colorida!) da época, com o viandante... novo!


Em África, dar boleia a africanos era atitude um quanto inusitada, mas não impossível de acontecer. Eles também não pediam. Nem conheciam o significado do polegar para tais situações. Não eram turistas, apesar de alguns se deslocarem com regularidade para centenas de quilômetros de distancia. Como deslocações longas já vinham fazendo desde que o mundo é mundo, boleia era coisa de branco!
Para quem trabalhava por Angola fora, rodar por aquelas estradas, não asfaltadas, as chamadas picadas, com pouquissimo trânsito, chegava a ser monótono, apesar de todo o motorista viajar sempre com um ajudante. Indispensável. Não se podia ficar sozinho naquelas imensidões africanas, onde tudo é longe de tudo, e em caso de acidente ou avaria o socorro eventual poderia demorar dias a aparecer.
Quantas vezes foi preciso quebrar um tronco de arvore para levantar melhor o carro e meter o macaco por baixo, empurrá-lo para ajudar a sair de um atoleiro, ir chamar socorro por ali, sabe Deus às vezes a que distância, etc. O ajudante era peça fundamental.
Antes de alguém se meter ao caminho era bom indagar como estava a estrada para tal lugar, e a resposta era simples: ou passa-se bem ou está péssima! Naquele tempo só havia dois tipos de estradas: passa ou não passa. Muitas vezes depois das chuvas, chuvadas tropicais, não se passava mesmo. Havia que esperar que as águas se escoassem e que o chão secasse, para não se atolar na lama, o que tantas vezes acontecia, ou quando tinha caído uma ponte de madeira, interrompendo a passagem por vários dias até se solucionar o problema com nova ponte ou com outro itinerário. Era uma aventura andar por aqueles caminhos.
Benguela, é uma pequena cidade no sul de Angola, na costa, com praias lindas, grande centro de comércio, onde naquele tempo não viviam nem brancos, nem pretos, nem mulatos. Só gente. A única cidade de África de onde isto se podia dizer com propriedade, não obstante casos de estúpida atitude de alguns, felizmente raros, e naquela ocasião já coisa a ficar para o passado.
Esta imagem de Benguela foi um dia lembrada no meio de um grupo de pessoas que conversavam sobre África, durante uma pequena festa na Alemanha. Presente um membro feminino da embaixada de Angola, já independente há bastantes anos. O espanto e a felicidade que se estampou no rosto dessa senhora foi sensacional. Ela era de Benguela, e entusiasmada confirmou:
- Isso eu venho afirmando há anos, e nunca me acreditaram. Foi preciso vir alguém do Brasil para o confirmar!
Cidade onde o tempo teimava em passar, ciosa das suas tradições, o bairro de Benfica com seus quintalões e famílias tradicionais, cidade dengosa, trabalhadeira, com o generoso mar em frente e as hortas do Cavaco ao lado, de onde lhe vinham a toda a hora os mais frescos legumes e bananas. Ah! Benguela!
A minha vida profissional em Angola começou aqui, e com máquinas agrícolas. Isso me proporcionou a possibilidade de percorrer no primeiro ano toda a região centro e sul de Angola, com bastante minúcia, não só as povoações como o mato. E foi o meu primeiro, e íntimo, contato com o interior, com o povo. Mais tarde o trabalho nas cervejas e sobretudo a caça complementariam este contato. Uma das mais curiosas lições daquela gente me foi dada logo de início.
Era necessário carregar num caminhão um arado de discos, grande, pesando mais de uma tonelada. Os discos, afiados, cortantes, eram perigosos, e como tinha que ser carregado à mão, todo o cuidado era pouco.
Chamaram-se todos os homens que por ali estavam disponíveis. Dezessete! Era um enxame à volta do arado, mas dividido o peso da máquina pelos homens dava ainda uns sessenta quilos por cabeça. Era mesmo pesado!
- Atenção! Todos ao mesmo tempo. Vamos lá: um... dois... três. Já.
Ouviram-se uns quantos gemidos, como se muitos deles se estivessem esforçando, mas o tal arado não se mexeu um milímetro! Estranho!?
Repete-se a cena. Nada. Mais uma vez. O mesmo.
Parei para pensar o que se estaria passando. Diz o motorista do caminhão:
- Estão mangonhando!
- Estão o quê?
- Finge só, patrão. Nem faz força!
- Ai é?
Tirei dez homens com o pretexto que muitos não deixavam espaço suficientemente para se moverem. E repetiu-se o atenção. Vamos lá...
Desta vez foi, num instante!
Mas para a história de outra boleia, vamos sair dessa Benguela cheia de luz e inocência um quanto manhosa, num dia da semana. Principio da noite. Escura. Chovia, e chovia bem. No carro, um furgão, Renault, de suspensão dura como molas de azinho o que significa que ao passar sobre um palito o carro saltava como corça, ia um agricultor para casa de quem seguíamos para dar assistência a um equipamento agrícola, e mais o indispensável ajudante. Passado Catengue, a caminho de Chongoroi encontrámos quatro homens seguindo a pé, em fila, pela estrada, envoltos nos seus cambriquites encharcados, um só velho guarda chuva meio rasgado para todos! Parei o carro.
- Vamos levar estes homens.
- O senhor vai dar boleia, sem saber quem são???
- Vou. Claro. Porquê?
- Eu nunca dou boleia. Sabe-se lá o que pode acontecer.
- Tem razão. Nunca se sabe o que pode acontecer. Mas assim mesmo vou levá-los.
Entraram os quatro. Mostrando, no escuro da noite só os dentes sempre de grande alvura, sorrindo a agradecer, porque ainda tinham pela frente muitos quilômetros a percorrer, o que seria feito mesmo a pé, tranquilos, se não tivesse aparecido alguém que os levasse.
- ´brigato, patrão.
Apesar do piso arenoso daquela picada, o carro agora com o peso de sete homens seguia mais confortável, saltava menos, mas prosseguia com dificuldade devido à quantidade de chuva que caía, que entre outras coisas dificultava a visão.
Talvez uma hora depois avistámos no meio da picada duas luzes vermelhas que pareciam de outro carro, e só muito perto pudemos reconhecer que era mesmo um carro, parado. Um belo carro americano, de um advogado de Benguela, muito dado a escapadas amorosas, que seguia para Sá da Bandeira com duas amigas, engates de fim semana, bonitonas, como seria de esperar. Ménage a trois? Quem sabe! Não era meu problema!
Parámos e logo se constatou o que tinha acontecido. Ao tentarem atravessar uma pequena linha de água, seca quase todo o ano, que naquele dia as chuvas tinham enchido e transformado num rio, pouco fundo, mas caudaloso, o carro morreu afogado! Ali estavam ele e elas, apavorados, abrigados dentro do carro, a água subindo de nível já quase a meio das portas, sem possibilidade de saírem tão cedo dessa situação. Teriam que esperar que as águas baixassem, se não subissem mais ainda, e que a parte elétrica secasse para o motor voltar a trabalhar. Isto pressuponha ficarem ali até lá para o meio dia do dia seguinte, se a chuva parasse! E não só não estava com cara de parar, como o nível da água insistia em subir.
Assim que avistaram os faróis de um carro a aproximar-se, o galã, jovem, gordo, e rico, com alguma dificuldade saiu pela janela, porque se abrisse a porta o carro ficaria alagado, e parecendo emergir de uma piscina veio pedir ajuda. Precisava de um trator que lhe rebocasse o carro dali para fora.
Não foi preciso dizer coisa alguma ou pedir ajuda aos homens que iam de boleia comigo. Saíram logo, e com mais o ajudante, o agricultor e o galã entrámos todos na água. Uma das bonitonas ao volante, ao fim de algum tempo e algum esforço, o carro estava em lugar seguro. Abriu-se o capô, secou-se a fiação e o distribuidor, e com alguma insistência o motor voltou a funcionar, e o trio farrista ficou pronto a seguir as suas aventuras amorosas... ou escabrosas!
Não sem antes agradecerem muito, e sobretudo terem dado ao ajudante e aos quatro homens algum dinheiro pela ajuda, porque sem eles não teria sido possível sair daquela enrascada! Aos homens, humildes, esse dinheirinho extra soube muito bem. Melhor foi para quem conseguiu sair de uma complicada situação, que poderia ter-se agravado mais ainda. A continuarem as chuvas nada impedia que o carro acabasse por ser arrastado e impossibilitado depois de ser retirado sem a ajuda de um trator, difícil de encontrar naquelas redondezas, ou até mesmo destruído, o que tantas vezes aconteceu.
De volta ao carro disse ao agricultor
- Viu? Realmente nunca se sabe o que pode acontecer. Imagine que não tínhamos trazido estes homens. Acha que sem eles a nossa ajuda teria valido de alguma coisa?
- Só nós os três não tínhamos tirado o carro dali.
- Repare que eu não dei boleia à espera de me aproveitar dos serviços deles. Trouxe-os porque isso não me custa nada. Eles ficaram muito gratos, o pouco mais de chuva que apanharam para tirar o carro do rio foi-lhes indiferente, ainda levam no bolso uns angolares extra bem merecidos, e eu vou todo satisfeito porque, sem premeditações, ajudei a resolver uma porção de problemas.
- É verdade. Nunca tinha pensado nisso. Valeu a pena. Aprendi a lição.
Espera-se que sim, que tenha aprendido.
(... e que, se ainda viver, não tenha esquecido!)
do livro "Contos Peregrinos a Preto e Branco", 1988, de Francisco G. de Amorim

09 jun. 09

sábado, 6 de junho de 2009

Modelo do Renault, com a diferença do meu ser um furgão,
sem vidros laterais atrás.

Pelas estradas de Angola
1954

(Do livro "Contos Peregrinos a Preto e Branco" - 1998)
Nas andanças por aquelas picadas, percorrendo distancias que algumas vezes pareciam não ter fim, mesmo com ajudante ao lado, o sono encontrava ensejo para brigar com o motorista, e em muitas dessas ocasiões, sem grande dificuldade o vencia.
Saída de Benguela, uma sexta feira ao sol posto, direção sul, estrada para Sá da Bandeira, hoje Lubango, sempre com o afável ajudante Bartolomeu, para ajudar a “quebrar o galho” em caso de avaria naquelas estradas imensas e despovoadas, e um passageiro a mais, empregado da empresa onde eu trabalhava, que sabendo que íamos passar ao lado da sanzala onde vivia a sua família, veio pedir que o levasse. Não teve qualquer dificuldade em ouvir o sim. Era uma rara oportunidade de visitar os seus durante o fim de semana, sem gastar um cêntimo.
Já depois de termos percorrido quase duzentos quilômetros, no local indicado, deixou-se este homem, bem novo ainda, que se deveria recolher de volta no domingo pela hora do almoço. E seguimos em frente. O destino ainda estava longe. Não muito, mas a estrada ia piorando, e era já noite. Mais um grupo de pessoas a pé pela estrada, duas mulheres, uma com o filho às costas, e um homem.
- Para onde vão?
- Vai no Caluquembe.
- Entrem.
- Háca! Bom mesmo. ´brigato.
A viagem segue, o sono a insistir comigo que não gostava muito de me dar por vencido, e sobretudo porque queria chegar ao destino e ali então dormir tranquilo. Depois de algumas perigosas cabeçadas, acabei por fechar os olhos uns lapsos de segundo, suficientes para perder o controle do carro e sair fora da estrada.
Passámos com muita sorte entre duas arvores, o carro salta com força ao atravessar a vala que ladeava a estrada e pára.
- Alguém se magoou?
- Não siô.
- Então vamos dormir um pouco, aqui mesmo, até eu poder conduzir de novo.
Todos se ajeitaram, o que não foi difícil, sobretudo para quem vive vida dura do interior, e assim ficámos uma ou duas horas.
Depois deste cuchilo, quando me senti em forma para prosseguir, pus o carro a trabalhar, mas sair de onde tinha parado, o que era bom, nada. Estava com uma roda no ar e parte do chassis assente no chão!
Toca a sair do carro e a carregar com ele. Carrinho pesado aquele Renault! Para o deslocar pouco mais do que um metro, deu uma boa canseira, pior ainda por ser noite. Mas o esforço de todos, inclusive das mulheres, acabou resolvendo o problema, e lá fomos adiante.
Mais uma vez os boleias foram de primordial ajuda, sem que isso tivesse custado alguma coisa a qualquer das partes.
Missão cumprida no destino, resolver um problema mecânico de um trator, domingo pela manhã de regresso a casa. Com passagem no mesmo lugar onde dois dias antes havia deixado o rapaz que tinha ido visitar a família.
Na estrada, à sombra de uma frondosa mulemba lá estava ele, com a mãe, o pai e mais alguns familiares. Fizeram uma grande festa quando parei o carro, agradecendo muito ter-lhes levado o filho, e queriam à viva força que fosse com eles comer uma galinha que tinham já preparado, para mostrar o seu agradecimento!
Ir, era atrasar o regresso a casa, e não ir era uma desconsideração àquela gente simples. Devo dizer em abono da verdade que, sem fazer com isso nenhum sacrifício, fui forçado a aceitar o convite com a intenção premeditada de tentar fingir que comia alguma coisa para não perder muito tempo.
O fogo nas sanzalas está sempre pronto, e a galinha também estava pronta para se chegar ao lume. Para beber, uma espécie de cerveja de massambala, uma variedade de sorgo que é a base da alimentação daquela região.
Esta bebida, que se pode chamar Uala, Quilombo ou Macau, conforme a região, com vinte e quatro horas de fermentação é muito leve, fresquissima, e de graduação alcoólica que não deve passar de 1º. No segundo dia, mais fermentada, o álcool aumenta, e a partir do quarto dia já não se pode mais beber. Sobretudo no primeiro dia é muito agradável, e pode beber-se à vontade; o perigo de embriagar é diminuto.
África, a meio do dia, numa região a mil e tantos metros de altitude, agradavelmente quente e seca, onde as sombras são sempre frescas, uma sanzala com meia dúzia de cubatas, tudo muito limpo, um fogo no centro com duas galinhas a assar, e uma bebida pura e fresquissima, não há restaurante cinco estrelas que se lhe possa comparar. Quem resiste? Não há no mundo melhor galinha de churrasco do que a que se comia no mato, em Angola! Não há mesmo. Galinha que se alimenta pelo campo, no Brasil se chama caipira, e que em África é totalmente caipira porque ninguém lhe dá complemento, é o Maximo.
Assada com carinho e paciência naquele fogo de lenha que há milénios os africanos fazem possivelmente melhor do que alguém mais, e muito bem temperada com jindungo, a malagueta que deixa as beiças a arder, cujo fogo se apaga com uala, cerveja ou vinho... Meu Deus, que coisa boa!
A intenção era fingir que comia um pouco e dar logo o fora, porque o que faltava percorrer era longa caminhada, em estrada de terra, e ainda queria estar um bocado em casa, domingo, a descansar, e acompanhar a minha mulher à espera do primeiro filho. Mas depois de sentado numa quibaca, gozando aquele ambiente, a paz, o clima, a simpatia e a felicidade daquela gente ao poderem retribuir a quem lhes proporcionou a visita do filho, tudo isso valia muito mais do que correr para casa! Sem esquecer a galinha e a uala, claro. São momentos que não se esquecem, e não se podem perder. Claro que me fui deixando ficar e acabei por chegar a casa já noite bem entrada, mas regalado. Feliz.
Quanto eu daria para voltar lá de novo!Estas boleias não se apagam da memória
(do Brasil, por Francisco G. de Amorim)
06. jun. 09