quarta-feira, 19 de junho de 2024

 

Continuemos com o NOSSO

Francisco Gomes de Amorim

 

Quem diria que um rapazinho tão azougado e irrequieto, sem exame de instrução primária, viria a dar um escritor brilhante e tão fecundo, deixando-nos deliciosas poesias e maravilhosas descrições de pessoas e ambientes?

Que indómita força de vontade o animou da juventude à velhice, fazendo de um autodidata um apreciado e consagrado escritor!

(Boletim Cultural da Póvoa de Varzim)

Soffrendo de ataques de gota na cabeça, depois complicados com uma lesão cardíaca, Gomes de Amorim, quasi nunca sahia de casa, excepto no verão, que passava numa pequena vivenda, que tinha em Cintra, na Villa Estephania; essa casa porém, que era a sua homenagem de prisioneiro de doença, era um encanto de arte e de sentimento pelo perfume de afffeição, pela sinceridade e graça de tofdas as pessoas de família que a habitava...

(Parte do discurso do dr. José Frederico Larando no funeral de FGA)

 Estas novas informações sobre o vovovô FGA, destinam-se à família e amigos, principalmente àqueles que leram o livro Çauçúpára...

Uma retificação e alguns dados novos.

Tenho lido e escrito muita vez sobre este meu bisavô, e um dos erros cometidos ao montar o livro foi não ter lido o que, desde há anos tenho escrito, e onde estão informações interessantes, perdidas, ou mal encontradas no computador cheio, cheio de escritos e tudo já baralhado pelas várias vezes que teve que ir para conserto.

Mas eu disse que iria continuar a falar dele, e cá está.

 Na pag. 11 do livro escrevi;

“Aos 23 anos traduz do francês um Manual de Veterinário que a editora lhe pagava só 4 reis por página” ...

Informação truncada. O certo seria:

“Em 1850, foi-lhe entregue pelo Editora Rocha, da rua das Vinhas, em Lisboa (não consegui identificar onde ficava esta rua e, evidente, nem o editor) o Manuel de Santé... de François-Vincent Raspail (1794-1878 célebre químico, naturalista, médico, fisiologista, advogado e político socialista francês) para que FGA o traduzisse. Foi ele quem escreveu que a editora lhe pagava só 4 reis por página” o que ele considerava um roubo!” A edição que deve ter usada para a tradução será a de 1845, em Paris.


Para quem aos 10 anos pouco mais que soletrava, antes de fazer 23 era já um literato considerado a ponto de lhe entregarem um livro de 275 páginas altamente técnicas para traduzir do francês.

Quem achar de interesse faça cópia destas páginas (A5 ou A4) e guarde dentro do livro!

 

*****

Mais duas histórias

FGA, como vimos no livro, foi sempre um grande entusiasta de Camões, chegando antes dos 12 anos a ler tanta vez os Lusíadas, que no Pará, com seu irmão Manuel e seu primo José Gomes Amorim, mais velho do que ele 3 anos, faziam desafios para saber quem mais estrofes do Lusíadas sabiam de cor!

E foi o livro “Camões” de Almeida Garrett que lhe tocou e o fez poeta.

Tanto que mais tarde publicou até os Lusíadas “corrigidos de erros”.

Além disso, além dos amigos literatos, políticos e outros que recebia em sua casa havia também artistas, como Rafael Bordalo Pinheiro, Ferreira Chaves e mais.

Quando faleceu, a viúva sem meios de subsistência, teve que leiloar, entre outras coisas a biblioteca onde havia um “camoniana” impressionante, incluindo uma 1ª/2ª edição dos Lusíadas.

Esse conhecimento de Camões deve ter-se espalhado. Um dia recebe uma carta do pintor Francisco Augusto Metrass (Lisboa, 1825 - Madeira, 1861) considerado "o pintor mais romântico da sua geração", pedindo conselho sobre o quadro que ele estaria a pintar – Camões e Jaú ou Camões na Gruta de Macau – sobre com que indumentária devia pintar o grande Mestre e que cores devia usar nessa indumentária.

FGA não foi com grande simplicidade que lhe respondeu mais ou menos assim (porque não encontro já onde ele escreveu isso):

“Eu não sou pintor e ninguém sabe como Camões se vestia no seu tempo. O senhor é que tem que decidir em função do ambiente e dos seus conhecimentos artísticos que eu não possuo.”

Metrass terminou o quadro em 1853, que o rei D. Fernando II acaba por comprar e em 1921 foi readquirido pelo Estado.  Hoje está exposto no Museu do Carmo, no Chiado, em Lisboa.


Camões na gruta de Macau e seu escravo Jaú

                                                          ***********

Mais uma pequena história para, por hoje, terminar.

Quando FGA chegou a Lisboa, no retorno do Brasil, praticamente sem dinheiro, foi alojar-se no Beco do Forno. Apesar de eu ter um Roteiro da Cidade de Lisboa de 1919 “com nomes antigos e modernos”, lá encontro três Becos do Forno e mais cinco outros Becos, a Alcântra, do Castelo, etc.

Penso que seria o antigo Beco dos Cavaleiros, ao lado do Martim Moniz, porque pouco depois mudou-se para a rua Nova da Palma, hoje rua da Palma, ali bem perto, “por cima de uma loja de chapéus, num casebre a que davam o pomposo título de 1° andar, favor devido à posse injustificável de uma janela de sacada com grades de madeira!” E fui trabalhar na loja do meu pobre amigo Miguel Butler, que Deus haja em glória, o qual teve a simplicidade de acreditar que eu podia ganhar o que comia, ajudando-o a fazer os seus chapéus! Depressa se desenganou, coitado”!

Entretanto foi por aí que FGA começou a compor alguns versos, que iam aparecendo impressos nos jrnais, e o público chamava-lhe “o poeta operário”. Pouco depois “A minha casa, como já disse, era na travessa do Forno, n° 8, atrás do Teatro D. Maria II (atrás do Largo do Regedor), num segundo andar, com janelas para a travessa. Entrando no páteo, à direita, havia fornos de padeiro; à esquerda, fábrica de amêndoas doces,; na frente, a escada, sem porta em baixo; e à direita-fundo o beco sem saída. Nas noites escuras, tudo aquilo dava medo.

... Garrett (28 anos mais velho do que o jovem que viera do Brasil) amava muito aquela vivenda, porque, dizia ele, lhe dava a mais graciosa ideia dos círculos do inferno. Denominou-a “casa dantesca”. Na noite do mais rigoroso inverno que teve o ano de 1851, chovera torrencialmente ao escurecer; os meus vizinhos do pateo, acabavam apenas de armar o passadiço de tábuas, quando o poeta assomou à porta. De um lado a rama de pinheiros ardendo, lançava enormes línguas de fogo das bocas dos fornos; do outro, baloiçava-se, pendente do teto, com outro fogaréu por baixo, o enorme tacho de arame, onde dançavam ruidosamente as amêndoas semi-torradas, mexidas sem cessar pelo meu honrado vizinho Luiz. O clarão das chamas refletia-se na água,e as tábuas gemiam e vergavam, fazendo chape-chape no charco, sob os pés do autor de D. Branca. Encantado com aquele fragmento de poema, e sem saber a qual dos quadros devia prestar maior atenção, hesitou, perdeu o equilíbrio , deslocou a ponte e caiu na poça, praguejando e dando a poesia local a todos os diabos. Teve que despir-se e meter-se na minha cama, enquanto lhe fui buscar roupa e botas, porque ficara que nem um pinto.

Dessa noite em diante, dizia que eu morava na casa dantesca subindo, à mão esquerda do inferno de Dante”.

Mas Garrett continuou a visitá-lo. FGA dividia a casa com um amigo (de quem jamais mencionou o nome) e parece que a desarrumação lá dentro era mais que evidente. Garrett, Par do Reino, deputado, visconde, sempre impecavelmente vestido deitava mão à limpeza e arrumaçãoa casa do pupilo que le tratava quase como um filho.

Naquela humilde casa, se reuniram, durante os últimos anos de vida de João Batista, muitos homens notáveis das diversas parcialidades políticas, com íntima e fraternal convivência literária.

N.- A “história” destas casas onde morou, são relatadas por FGA em “Frutos de Vário Sabor”, ed. 1876, pág. 167, e nas “Memórias Biográficas de Garrett”, Tomo III, capítulo XII, pag. 353.

 

18/06/2024

terça-feira, 11 de junho de 2024

 Este texto é, primeiro, dedicado a alguém que me perguntou se o Salazar não era igual ao Putin !

Um pouco de História

Os comunistas não vão gostar, os extremistas também não e os centristas espero que compreendam um pouco mais sobre uma época remota e atual, que vou tentar mostrar.

Quando Marx, Lenine e Cia. viraram a história, assassinaram milhões, incluindo o Tzar e família. E foram declarando que o mundo seria subjugado pelo socialismo marxista (eufemismo que significa violenta ditadura de uns quantos gananciosos e incapazes de promover a economia de um país).

Viviam-se tempos de monarquias idiotas onde foi muito fácil virar o jogo, metendo na cabeça dos trabalhadores que ia ser tudo deles, correndo com os nobres (parecido com o que se passou, por exemplo, em Angola, quando assumiu a independência e o povo se convenceu que ia ficar rico com toda a infraestrutura que os portugueses lá deixaram). Só a Inglaterra não foi na conversa porque estavam progredindo economicamente  (bem sei que ajudados pelo sistema quase escravocrata do que pagavam aos operários, incluindo a crianças de 10 e 12 anos) (“culpa” do Adam Smith, o “pai do capitalismo” apesar de ter afirmado que a riqueza vem do trabalho!).

Mas esse pseudo socialismo espalhou-se pelo mundo quase na mesma velocidade que o Islão nos séculos VII e VIII, e as pessoas, idiotas, sonhavam que tudo ia ser um paraíso.

Alemanha, Itália, França e Espanha estavam já transbordando com esse socialismo que os foi destruindo.

Na Espanha reinava uma anarquia geral, antagonismo feroz entre nobres e trabalhadores, militares, catalães, bascos e monarquia absoluta, sindicatos, etc. Eleições várias elegiam o governo ora de um lado ora de outro com os republicanos numa aliança de conveniência com anarquistas e comunistas, e os nacionalistas em outra aliança de falangistasmonarquistascarlistas e católicos, acabou em guerra feroz. Os primeiros apoiados pela URSS, México e França e do outro lado a Itália (que acabou por se retirar), Alemanha e um pouco de Portugal.

Os comunistas começaram com atos de terrorismo, e anunciavam, ufanos que logo que dominassem a Espanha, Portugal era um “uma coisinha” que eles dominariam de seguida.

Estamos em 1936, início da Guerra.

Portugal no final do século XIX já agonizava com monarquias incapazes, cresciam movimento revolucionários, com a Carbonária, profundamente anti-religiosa, onde incluíam os monarcas católicos, até que, ligados a republicanos, assassinaram o Rei e o Príncipe Herdeiro, em 1908.

Dois anos depois implantou-se a República, 5 de Outubro de 1910, que desde cedo deu sinais de instabilidade e de progressiva degradação das suas instituições. Eram constantes os rumores e as ameaças de golpe.

Nos primeiros anos da década de 1920, terminada a I Grande Guerra, a instabilidade cresceu: para além dos governos se sucederem a um ritmo alucinante (foram 23 os ministérios entre 1920 e 1926), os atentados bombistas e a forte actividade anarco-sindicalista criavam no país um clima pré-insurreccional que fazia adivinhar um fim próximo para o regime.

A inflação atingia valores insuportáveis e o anticlericalismo era feroz.

Em 1926 o General Gomes da Costa, monárquico, dá início a uma revolta contra o descalabro que o país vivia, ainda ele e outro militar assumem a presidência, mas em 1928 o general Carmona, num contra golpe assume a presidência.

As finanças eram um outro descalabro, e não se encontrava ninguém capaz de “arrumar” a casa.

Em Coimbra, na Universidade, um professor de destacava. O único aluno que tinha completado o curso de direito de cinco anos, em quatro, e com 19 valores, é logo convidado para professor mesmo antes de defender a sua tese; catedrático de Economia Política, Ciência das Finanças e Economia Social da Universidade de Coimbra

Ex seminarista, católico, filho de gente humilde, rebatia nos jornais os pobres artigos sobre economia, propondo soluções, ao mesmo tempo defendo com veemência os ataques à Igreja Católica.

Em junho de 1926 os militares convidam Salazar para a pasta das finanças; relutante, aceita, mas passados treze dias Salazar renuncia ao cargo e retorna a Coimbra por não lhe ter quaisquer condições que achava indispensáveis ao seu exercício. Simplesmente virou costas e voltou para Coimbra. O que tinha encontrado era confusão, indisciplina e muitos a dar sentenças.

Em 27 de abril de 1928, após a eleição do general Óscar Carmona e na sequência do fracasso do seu antecessor em conseguir um avultado empréstimo externo com vista ao equilíbrio das contas públicas, Salazar reassumiu a pasta das finanças, mas exigiu o controlo sobre as despesas e receitas de todos os ministérios. Satisfeita a exigência, impôs forte austeridade e um rigoroso controlo de contas, com aumentos de impostos e criação de novos, adiamento de obras de fomento e congelamento de salários, conseguindo um superavit, um "milagre" nas finanças públicas logo no primeiro exercício económico de 1928–29.

"Sei muito bem o que quero e para onde vou", assim definiu os seus objetivos.

Na imprensa, era controlada pela censura, Salazar seria muitas vezes retratado como "salvador da pátria". Mas também algumas imprensas internacionais, não controladas pela censura, apontavam méritos a Salazar; em março de 1935 a revista Time afirmou que

"é impossível negar que o desenvolvimento económico record registado em Portugal não só não tem paralelo em qualquer outra parte do mundo como também é um feito para o qual a história não tem muitos precedentes”.

Acabou a inflação, o país sossegou.

Ameaçado pela Guerra civil em Espanha, apesar de completamente oposto a tudo que fosse comunismo, apoiou os falangistas, mas mostrou a Franco que protegia também fugitivos republicanos que entravam em Portugal, desviando-os das mãos dos inimigos.

Veio a 2ª Guerra Mundial, 1939-1945; assediado por Hitler que queria ocupar a Península Ibérica para evitar a entrada de americanos por esse lado, apesar das ótimas relações seculares com a Germânia, negou-se a participar, o mesmo acontecendo com os ingleses nossos “aliados” desde o século XIV, também se negou a participar desse lado e Portugal foi o único país que em toda a Europa viveu esse período em paz.

A II Guerra mudou a mentalidade dos povos não só europeus, estes querendo mais liberdades democráticas, mas também africanos que começam a querer libertar-se do colonialismo.

Aí Salazar, foi incapaz. Um grande economista e financeiro, mas um péssimo político, não aceitando dialogar com liberdades, quer de expressão como de ações. Ele era o “imortal”, o único que tinha mostrado conduzir o país em paz e estabilidade económica, e quem se lhe opusesse estava condenado. Para isso a PIDE, polícia do Estado, facilmente extrapolou o seu poder e prendeu e torturou muita gente.

A sua mentalidade em relação ao povo mais simples e em grande maioria analfabeto, dizia que se eles aprendessem mais e ganhassem mais dinheiro iam começar a comprar tudo, endividar-se e viver pior!

Se até aquela altura se podia falar abertamente, depois passou a haver cuidado.

Um pouco do que estamos a assistir agora no Brasil com a ditadura do STF mancomunado com o socialismo marxista num governo desgovernado. Liberdade de expressão ou agrada ou... cadeia.

A diferença é que em Portugal ainda se não metia a mão na “res publica”, nem consta que nem um dos seus colaboradores, durante todo o governo de Salazar, tivesse enriquecido, enquanto no Brasil é o que fazem os “democratas-bolcheviques” com maior à vontade e descaramento.

Salazar governou Portugal durante 40 anos e morreu com menos dinheiro do que quando era só professor em Coimbra.

Em vez de dialogar com portugueses liberais e com líderes africanos, ou os mandava prender ou esles tiveram que fugir para outros países onde aprenderam sobretudo táticas de guerrilha.

Aprés moi le deluge! Eu não sei se Salazar terá dito ou pensado assim. Ele sentia-se o Presidente Imortal e Único capaz. Mas foi a herança que deixou, e os “libertadores” da democracia, os idiotas do 25 de Abril, fizeram um revolução de capitães bonitinhos e entregaram tudo na mão dos tais marxistas que arruinaram o país num instante. O estoque de ouro (tempo do padrão ouro) foi esvaziado num instante, e o dólar que valia 28$00 passou para cerca de 150$00. E pior, os que usurpara o poder venderam-se à URSS, que os trataram ($$$) muito bem, o que permitiu o desmonte de tudo o que os portugueses tinham deixado nas colónias, fundamentalmente em Angola, onde até fábrica de caminhões Mercedes havia, para ser destruída logo de seguida. E originou duas guerras fratricidas, Angola e Moçambique que deixaram cerca de 2.000.000 de vítimas.

Para terminar, Salazar ainda hoje é lembrado pela sua austeridade e integridade, mas ninguém pode esquecer aquela miserável polícia política e a perseguição aos líderes nacionais e africanos, com requintes de bestialidade.

 

10/06/24

 

 

 

quarta-feira, 5 de junho de 2024

 

FGA  e  Fga

Um diálogo

 

Comecemos por apresentar os FGA:

 

1° - Francisco Gomes de Amorim, 1827-1891

2° - F.G.A. (Jr.) filho – 1862-1949

      (Jorge de La Rocque G. A., neto – 1900-1943)

3° - F. Manuel Frick G. A., bisneto – 1931- ...

4° - F. de Almeida G.A., trineto – 1958- ...

5° - F. Dornelas Cysneiros G. A., tataraneto  – 1988- ...

Por ora não há perspectivas de continuidade de outro FGA, apesar de uma muito ténue esperança em dois netos ainda solteiros. O neto Francisco já declarou que o mundo não está em condições para cá pôr um filho !!!

 

*****

O diálogo a que vamos assistir é entre o primeiro FGA e o terceiro, aqui designado como “Fga”.

Mais um Encontro semi-etéreo entre o bisavô e o bisneto.

Quem leu o livro “Tetralogia de Encontros Etéreos” lá viu o primeiro - “Çauçúpára Carayba Goataçara Cuapará” – que entretanto deu origem a um livro editado. Ainda há alguns disponíveis!)

O local escolhido para este Encontro poderia ter sido a praia de A-Ver-O-Mar, terra do FGA, o poeta, ou em Sintra no Jardim Correnteza, em frente à casa onde ele viveu.

Optei por Sintra, aliás, Cintra, mas nessa altura era a Villa Estefânia, a “mais ou menos um kilómetro da vila de Cintra”, que ambos conhecíamos bem.

Por especial deferência de São Pedro fui autorizado, somente eu, a ver a figura etérea do meu bisavô, tipo halogênica, mas que mais ninguém poderia ver.

Parecia que eu ia ficar no banco de um jardim concorrido, sentado, “só”, a falar sozinho, mas isso não me atrapalhou.

Chegou o bisavô e sentou-se ao meu lado.

Fga – Meu querido bisavô, espero muito que goste do lugar que escolhi para nos encontrarmos. Eu sei que certamente lhe traz muitas recordações, mas começo por lhe pedir que meu deixe tratá-lo somente por avô. É mais simples. Devo dizer que o prazer de estar consigo é imenso. Muito, muito grande.

FGA – Chico, lá de cima eu tenho acompanhado a tua vida, e vejo o carinho que sempre me dedicaste. Tenho também o maior prazer em estar aqui contigo, neste lugar lindo, frente à casa que como sabes comprei, a vista para o Castelo dos Mouros e todo este ambiente que Cintra sempre teve.

Fga – Hoje aquela rua tem o seu nome. Uma pequena homenagem a um grande poeta, dramaturgo e historiador, sobretudo com as Memórias de Garrett. A bisavó Maria Luísa viveu nessa casa até que foi para o seu lado em 1929. O seu neto Jorge, meu pai, era por ela muito estimado e ela disse à minha mãe que não queria morrer sem ver um filho do Jorge. O Senhor fez-lhe a vontade. O meu irmão nasceu a 27 de Junho e a bisavó morreu em Setembro. Chamou-se Luis António, nome dos dois antepassados vivos, a bisavó Maria Luísa e o bisavô António Arroyo. Infelizmente deixou-nos muito novo.

FGA – A compra dessa casa deu uma história alegre que publiquei no meu livro “Muita Parra e Pouca Uva”, mas a verdade é que ainda passámos aqui mais de uma dezena de verões (?) que muito bem me faziam à minha saúde debilitada.

Fga – Outra curiosidade deste local foi a compra que o seu filho e meu avô fez daquela quinta ali, em baixo, ali, está a ver? Mas foi só em 1913, bem perto da mãe dele a sua Maria Luiza. Ali, eu aprendi a jogar ténis logo com dez anos e passei todos os verões da minha vida até casar e ir embora para Angola. Uma casa grande, onde cabiam os filhos todos e os netos e grande espaço de jardim e horta. É muita a ligação e saudade desta terra.

Avô conte-me como foi a sua participação na Maçonaria, de que há pouquíssima referência.

FGA – Sabes bem que quando se é jovem todos queremos revolucionar o mundo, saindo debaixo dos déspotas, tiranos, etc. Assim que regressei a Portugal, depois da estadia no Brasil, comecei a fazer alguns versos e quando passíveis de serem publicados mandei-os para o jornal onde começaram a aparecer. Dois anos depois dá-se a Revolução popular na Hungria que lutava pela sua independência e eu entusiasmei-me com a luta pela liberdade, que tanto tinha apreciado entre os índios. Comecei a escrever uns pequenos poemas sobre esse povo que a aspirava e isso atraiu a atenção de muita gente. Daí convidaram-me para fazer parte da Maçonaria, tinha eu 22 anos! Mas era tudo muito desorganizado e não demorei por lá. Era muita conversa e pouca ação!

Fga – Um dos seus escritos que sempre admirei, e divulguei, foi a carta que escreveu a seu filho quando este com 14 anos deixava a família e ia também para o Brasil, carta essa assinada por si e pela bisavó. É uma profunda lição de ética, probidade e respeito pelo Outro. Admirável.

FGA – Esse meu único filho homem, foi sempre um exemplo do Bom Filho. Foi uma grande infelicidade eu ter falecido logo seis meses depois que ele casou, lá no Brasil. Comportou-se toda a vida de acordo com as recomendações que lhe fiz e, além de me ter ajudado sempre mandando-me todos os meses parte os seus proventos, que muito me ajudaram a viver, mostrou-se sempre um homem honesto, probo e amigo, muito amigo das irmãs a quem mandou presentes valiosíssimos quando casaram.

Fga – Eu não cheguei a trabalhar com ele, mas tive ocasião de ver como era preciso, disciplinado e muito admirado por colegas e subalternos. Quando o nosso pai morreu, o seu filho tinha 80 anos e sofreu muito com isso. O meu pai era um grande colaborador dele, na empresa onde trabalhavam. Para nós, seus netos ainda pequenos foi sempre muito rígido, exigente.

Sabe porque o meu pai se chamou Jorge e não Francisco? Quando ainda no Brasil nasceu o primeiro filho homem do seu filho, logo batizado como Francisco, mas o bebé infelizmente só durou uns dias e morreu. Foi grande o desgosto como pode imaginar. Veio o segundo, novamente Francisco, e ao fim de 3 meses, doentinho, faleceu também. Um horror. A seguir uma filha que com seis meses os médicos disseram que ela tinha que sair do Pará porque não ia aguentar. E foi por isso que ele regressou a Portugal. Essa filha Albertina, nome da avó materna, morreu com mais de 100 anos. Quando veio outro homem, traumatizado, ele não quis mais usar o nome de Francisco! Eu que fui o segundo filho do seu neto Jorge, só sou Francisco porque o meu pai insistiu, uma vez que os avôs de ambos os lados eram Franciscos! Se eu não teria outro nome. E agora eu tenho um filho e um neto com o seu nome!

Mas, avô, diga-me uma coisa: não há, além desta sua casa um laço especial com Cintra?

FGA – Que laço?

Fga – Talvez a famosa cadeira que fora de Garrett.

FGA – Creio que te queres referir ao pequeno poemeto que dediquei à Condessa d’Edla, porque foi ela que pediu ao marido para me oferecer a cadeira que tinha sido do meu mestre Garrett, e que ele tinha adquirido no leilão quando o grande mestre morreu.

Fga – E mais: quando veio a Cintra ver a casa que acabou por comprar, escreveu depois que se hospedara no Hotel Vitor e que visitou a Pena onde passeou a cavalo. Nessa altura o Senhor Dom Fernando ainda estava vivo. Nessa visita esteve com o Príncipe ou com a Condessa, porque cita que o generosos príncipe franqueia a todo o viajante, nacional ou estranho, o seu castello e o parque da Pena ?

FGA – Não, não os vi, nem desejaria tê-los incomodado. Creio até que nesse dia eles estavam fora de Cintra, Mas ainda lembro do poemeto. Queres que t’o recite?

Fga – Adoraria

FGA –

Senhora: se os colossos da floresta

Aos céos enviam divinaes perfumes,

Também o agreste cheiro da giesta

Ousa humilde subir aos pés dos Numes. *

 

Se o sol, que é vida e alma do universo,

Não desdenha aquecer o ínfimo insecto,

A vós do rude bardo implora o verso

Calor e luz de generoso affecto.

 

Gota d'água levada pelo vento;

Modesto aroma d'uma flor cahida;

Nem tanto valerá meu pensamento;

Mas inspira-o uma alma agradecida.

 

Fga – Uma das características mais fortes dos seus livros, sobretudo quando trata do Brasil é a espantosa memória com que descreve cenas vividas quando muito jovem, entre 1837 e 1846, no meio da Amazónia e dos índios que só vem a escrever, com detalhes incríveis, 30 anos mais tarde. Como conseguiu isso.

FGA – Eu penso que na realidade tive uma memória privilegiada, mas quando estava com dificuldades socorria-me de alguns livros, sobretudo de botânica já existentes e cheguei até a escrever a amigos que tinha deixado no Pará e Alenquer, quando precisava de me certificar que o que lembrava estava correto.  Mas a verdade é que os meus amigos, desde Garrett, Rebelo de Sousa, Palmeirim, Júlio César Machado e outros muito elogiavam a minha memória.

Fga – E tinham mesmo que o fazer. Se eu lhe disser que tem muitos aspetos da minha vida que têm bem marcado o seu gene! O primeiro é que fui eu de todos os seus descendentes quem mais leu e apreciou a sua obra, depois fui o único que um dia começou também a escrever, quando criança fui um rebelde na escola e já no curso secundário enfrentava professores idiotas. Não atirei com manteiga na cara de ninguém, mas nunca levei desaforo para casa, e nessas ocasiões dizia para comigo mesmo: “Era assim que o bisavô poeta fazia”, o que me deixava compensado pelas asneiras!

FGA – Eu sei muito do que me estás a dizer e, mesmo que não acredites, por vezes “lá em Cima” ainda me ri!

Fga – Está a fazer-se tarde, eu quero muito continuar a conversar consigo, mas... o São Pedro está a dizer que tem que o chamar. Mas voltaremos a estar juntos. Como eu gostei de estar aqui consigo. Infelizmente não dá para o abraçar.

Antes de ir embora, deixe-me penetrar um pouco (muito!) no seu íntimo. As simpáticas jovens de Alenquer tratavam-no por “Çauçúpára” que parece significar “amante, querido”. Com esse sucesso, e com o costume de algumas tribos oferecerem mulheres para se deitarem com hóspedes, naquelas confortáveis redes que tanto elogia, não teve algumas noites passadas acompanhado?

FGA – Isso pertence ao foro mais íntimo de cada um! Não devias estar a fazer tal pergunta.

Fga – Avô, eu nesta altura tenho 92 anos, mais 28 do que a idade com que nos deixou. Não sou um moleque que queira brincar consigo. Jamais faria isso. Mas tenho pensado se isso tivesse acontecido era natural que eu tivesse lá pelo Amazonas algum parente, de que me sentiria muito feliz. Mesmo sabendo que nunca o conseguiria encontrar.

FGA – Como te disse, se aconteceu ou não, só eu sei, e nunca divulguei coisa alguma que pudesse levar a qualquer conclusão. Esquece isso, só não esqueças que todos os índios, como qualquer ser humano devem ser tratados como teus irmãos.

Fga – Obrigado, meu querido e muito estimado bisavô. Continue no seu tão merecido descanso. Qualquer outro dia voltaremos a falar. O mais provável seja com ambos já “Lá, em Cima”.

FGA – Adeus meu bisneto. Muito obrigado.

 

05/06/24

 

PS.- Ler os anexos

- Carta a seu filho https://fgamorim.blogspot.com/2009/04/mais-outro-francisco-gomes-de-amorim.html,

- História da cadeira https://fgamorim.blogspot.com/2014/07/