(continuação)
Viagens pelo interior do Brasil
Da obra de Francisco Gomes de Amorim que viveu no Amazonas entre 1837 e 1848
Trabalho publicado em Artes e Letras, Lisboa, 1872.
III
O ubá, canoa dum só cedro, e feito por ele com a forma duma
flecha, para correr mais, toma-se seu companheiro inseparável até à morte; quando
sai dos lagos para os rios, leva-o pelo canal mais curto; se é preciso dar uma grande
volta, por ficar distante a boca do lago, prefere arrastá-lo através da floresta,
às vezes até distancias grandíssimas: de sorte que quando o ubá não leva o índio,
é o índio quem leva o ubá; e assim atravessam a vida, unidos sempre!
Nas horas de repouso, a canoa dorme também, amarrada, com
cordas de embira (xylopia frutescens) no portozinho, onde o índio ergue o seu tijupar;
ao menor rumor desconhecido, adeus casa e família! Com o remo em uma das mãos e.as
armas na outra, o homem arremessa-se ao ubá e faz-se ao largo, com a rapidez da
seta despedida pela corda do arco! A canoa toma-o invencível; os rios, lagos e igarapés,
são aos milhares, e ele conhece-os todos; se porém navega em sítios desconhecidos,
vai sempre pelo meio do rio, e se o rio é estreito atravessa-o sem cessar, de uma
para outra margem, aproximando-se da terra o menos possível e remando sem ruído;
uma boa remadela coloca-o num instante longe da praia, e outra o aproxima; sentado
à popa do ubá, maneja-o com o remo, com que rema e governa ao mesmo tempo, melhor
e mais facilmente .do que o ilustre marquês de Marialva manejava um cavalo. De vez
em quando, se a prudência lhe não recomenda que seja desconfiado, lança-se à água
e nada alegremente à roda da canoa, coma faria em volta de qualquer jovem índia
um amante apaixonado; umas vezes pendura-se-lhe à popa, outras à proa; ora se debruça numa, ora
noutra banda; e não raro se compraz em nadar com uma das mãos, arrastando-a com outra
sobre o elemento liquido!... Ao vê-los tão estreitamente unidos - homem e embarcação
- dir-se-ia que o madeiro inanimado sente, compreende, e é sensível a essas demonstrações
de ternura! Outra mão que não seja a de seu dono, move custosamente o ubá, governa-o
mal, e não lhe imprime a velocidade usual; como o cavalo, que reconhece nas rédeas
e nas pernas o seu cavaleiro, o cedro cavado pela mão do selvagem parece distinguir
o seu remador, e como que se faz mais leve e mais dócil para ele do que para os
estranhos! Privado da canoa, o índio, apesar de nadador excelente, foge da água,
entristece, esconde-se nos matos e toma-se mais feroz. Os hábitos da vida fluvial,
no sertão do Brasil, ao contrário do que sucede entre os povos cultos, são mais
brandos e suaves do que os da terra. A guerra com as onças, tigres, serpentes, ou
tribos inimigas, toma os gentios mais selvagens e sanguinários; os rios também tem
os seus jacarés, mas a canoa separa-os do índio, e um remador valente nem teme afrontá-los,
nem ser alcançado por eles quando quer fugir.
Havia mais duma hora que nos tínhamos sentado tristes
e desalentados ao pé das tartarugas, quando avistámos uma canoinha passando
ao largo; tripulada por uma só pessoa. Antes de gritarmos para que nos acudisse,
ocorreu a um de nós que podia muito bem ser a nossa canoa e o seu roubador; deitámo-nos
imediatamente na praia, espreitando-lhe a direção e procurando adivinhar, pelos
movimentos do remador, as suas intenções.
A lua estava meio encoberta e próxima a desaparecer de todo.
O desconhecido remava lentamente, e, conquanto não virasse
a proa para a terra, indicava visível intenção de se aproximar dela; ia rodeando
a praia, que formava um semicírculo, e parecia perscrutá-la com o olhar - que nós
adivinhávamos, mais do que víamos, pelos movimentos da sua cabeça. Chegado a certa
altura, virou para trás, sempre com a mesma indolência de movimentos, e sem fazer
o menor ruído. Era evidente que procurava alguém ou alguma coisa. Não havia probabilidade
de que andasse ali para se divertir, sozinho, às onze horas ou meia-noite. Não podia
ser pescador nem caçador de tartarugas, porque para isso deveria ter vindo ao anoitecer,
que é quando elas costumam sair da água; e no Xingu pesca-se deitado na rede, dentro
de casa, e mata-se peixe sem necessidade de perder a noite em peregrinações aventurosas
pelo rio.
Mas que procurava então? Quem era? Donde vinha? Para onde
ia?
Tais eram as interrogações mudas, que cada um de nós fazia
aos seus botões, apertando o punho do sabre. E viria só, ou teria perto alguns companheiros?
Havia pouco tempo que a revolta dos cabanos (1) se tinha apaziguado no sertão, e
alguns restos dispersos do acampamento de
Icuipiranga (2) não tinham ido entregar-se, preferindo ficar com as armas a gozar
da amnistia que lhes salvava as vidas.
Não poucas canoas de comércio tinham sido assaltadas e metidas
a pique, depois de roubados e mortos os tripulantes; muitas casas haviam sido invadidas
em diferentes lugares do Amazonas, e corriam vagos rumores de que nos bosques do
Xingu se acoitava um bando de assassinos. Todas estas lembranças nos salteavam o
espírito ao tempo em que o misterioso navegador girava em volta da praia, chegando-se
sempre, e cada vez mais cautelosamente, para a terra. •
- É o ladrão da
nossa canoa - disse em voz baixa o índio mundurucu.
-Talvez.
- Com certeza.
Vem espreitar se estaria por aqui alguém, para depois passar com ela ... porque,
provavelmente, quer passar para este lado e tem-na amarrada a alguma árvore, lá
para trás da ilha...
- Pode muito bem
ser.
- É algum pescador
de tartarugas, que andaria pelas praias do lado oposto ao tempo que a maré a levou
pelo rio abaixo; viu-a sem gente, amarrou-a, e veio a descoberta; se visse aqui
um homem só... Quem sabe? Talvez tentasse matá-lo!... Acreditem que já nos sentiu
e que se anda assim devagar e para ver se nos descobre...
- Mas com que
fim?
- Eu sei... para
nos vender, talvez, a nossa canoa ... ou para saber quem nós somos, e a levar depois
para sítio onde não a tornemos a ver...
Vê-se que o tapuio discorria admiravelmente, e chegava à verdade
pelos caminhos por onde andam os maiores sábios.
Eu continuei o dialogo com ele.
:- Seria bom chamarmos
o homem?
- E se ele fugir?
- Sendo o ladrão,
de certo que foge! Porém, se não for? Perderemos a ocasião de atravessar o rio para
a feitoria, e Deus sabe quando passará por aqui outra canoa que nos leve.
- Isso é verdade
... O homem parece que já nos viu... Lá volta para o largo e agora rema com força!
Ponham-se todos em pé, e deixem-me falar eu só.
Erguemo-nos dum salto, e o índio gritou:
-Ó da canoa!
O remador desconhecido deu ainda duas remadelas para se afastar
mais de terra; depois atravessou a canoinha e respondeu pachorrentamente:
- Que é? Quem
me chama?
- Atraca!
O homem virou a proa para o rio, dispondo-se, provavelmente,
para pôr-se mais ao largo. Neste momento a lua, já prestes a esconder-se, rompeu
o véu de nuvens que a envolvia e alumiou esplendidamente o teatro desta cena.
- Se das mais
uma remadela para o largo - gritou o índio mundurucu fazemos-te fogo, e de cinco
balas alguma te há-de acertar!
Dizendo isto agitou no ar o sabre, pondo-o em pontaria como
se fora espingarda; nós movemos também os nossos, e o luar, reflectindo-se nas lâminas,
fez crer talvez ao desconhecido, que eram com efeito os canos das armas de fogo
que ele via luzir, porque se aproximou sem responder.
Conservamo-nos todos em posições de atiradores até a canoa
estar quase em seco; providencialmente a lua sumiu-se no momento em que o remador
perguntou:
- Então que me
querem?
Em vez de responder, precipitamo-nos sabre ele, e apoderamo-nos
da canoa.
- Não me matem!
- Reconhecemos
com grande mágoa que a embarcação era uma casquinha de noz, que apenas levaria dois
homens a vontade!
Interrogamos
o tripulante; sobre se tinha visto a nossa; pedimos-lhe, que se a tinha achado,
nos levasse onde ela estava porque o recompensaríamos largamente; mas ele afirmou
que tal canoa não vira, e que andava por ali a caça das tartarugas - confirmando
o dito com uma, que levava a bordo, e não tivemos dificuldade em o acreditar.
- Então leve-nos à nossa feitoria, na boca do rio Arapari!
- Tão longe! A canoa não pode com mais de duas pessoas...
- Pois há-de levar-nos todos,
que somos seis,
com você, afora as
tartarugas.
- Impossível!
- Experimentemos.
- Vamos todos para o fundo!
- Paciência.
- Valha-me Deus!
O homem era um mestiço, que dizia morar da outra banda do rio; tremia de
medo, vendo-nos embarcar as tartarugas, e, se dois dos nossos não estivessem a bordo,
teria fugido, desde que viu que não tínhamos armas de fogo. A previdência aconselhava-nos
a que f6ssemos metade par cada vez; mas, como a distância era grande, ninguém quis ficar na ilha deserta, a qual todos tinham
tomado horror, sem nenhuma razão porque era formosíssima!
Metemo-nos, pois, dentro da montariazinha (3), e afastámo-nos da praia. Imediatamente
começou a entrar água por todas as costuras mal calafetadas, e por cima das bordas,
a cada movimento do remo!
As tartarugas esperneavam no fundo da canoa fazendo maior balanço e dificultando o esgoto da água, que metíamos sem cessar,
a noite tornava-se escuríssima!
O homem desconhecido, que
era quem remava, dava grandes gemidos e
encomendava-se a Deus, chamava pelos nomes da mulher
e dos filhos; e pedia-nos, por tudo quanto havia de mais sagrado, que, ao menos, deitássemos fora as tartarugas, que pesavam por dois ou três homens.
O pedido era sensato; mas custava-nos, depois
de tantos trabalhos, da canoa perdida - que
teríamos de pagar ao chefe da exploração da borracha
- e dos sustos passados na praia dos Cajueiros, não levarmos sequer par prémio as objectos
dessas fadigas! Ordenámos ao mestiço, que em vez de seguir pelo rio acima, na direção da nossa cabana, atravessasse em linha reta para
a ilha (4) onde ela era situada, porque depois,
embora naufragássemos, não corríamos o risco de morrer afogados;
e se de todo em todo a canoinha não pudesse levar-nos
pelo rio acima, iriamos
por terra, logo que nascesse o sol.
0 terror era geral quando
chegamos a meio rio; não se dava vencimento à água, e íamos prestes a alagar-nos. Por maior diligência
que fizéssemos para evitar o balanço, tínhamos que revezar-nos a miúde no esgoto,
aumentando-o com os nossos movimentos; íamos todos estafados, e, se não fosse o
temor de soçobrarmos mais depressa, teríamos então deitado todas as tartarugas ao
rio! Mas essa manobra tornava-se agora perigosíssima, porque os animais eram muito
grandes e pesados!
Tive muitas ocasiões
de susto, muitos perigos e naufrágios; mas nunca me vi em situação comparável à
daquela travessia, onde tive de encarar friamente a morte, durante duas mortais
horas, por uma escuridão horrível! E tudo isto sem necessidade, porque, se esperássemos
o dia, teríamos feito uma jangada em que facilmente atravessaríamos!
Enfim, chegamos
ao pé de terra, e respirámos. Nessa ocasião quis um dos tapuios experimentar se
haveria por ali jacarés, para saber se eles nos devorariam, em caso de naufrágio,
e imitou-lhes os gritos. Respondeu-lhe um milhão de vozes temerosas, cavas, profundas,
tétricas, que nos fizeram arrepiar; por isso, em vez de desembarcarmos ali, que
também era perigoso e difícil pelo emaranhado da margem, preferimos ir indo pelo
rio acima, lutando com o esgoto da canoinha. Seriam três horas da manha quando chegamos
à feitoria! Gratificamos o nosso remador, e dias depois soubemos que fora aquele
desalmado tratante que nos havia roubado a nossa canoa! Mas nunca mais os tornamos
a ver, nem a ele nem a ela.
(1) Denominação dada ao bando de facínoras que em 1835, se apoderou
do Pará..
(2) Lugar onde pretenderam resistir à tropa que os perseguia.
(3) Denomina-se montarias, umas canoinhas muito leves, que não são
coma os ubás, de uma só peça, mas feitas como as outras embarcações pequenas, com
costuras e cavernas.
(4) Julgava-se que era terra firme e ainda hoje se denomina rio Arapari,
o que não é mais que um furo ou canal, que, tendo do lado superior esse nome tem
de inferior a denominação, creio eu, de rio Acahi. Os dois não fazem senão um, que
forma a ilha em que assentava a minha feitoria e que erradamente se considera terra
firme.
(a continuar)