ALCIBÍADES
Não se preocupem. Não vou tecer considerandos sobre o velho Alcebíades que viveu meio milénio antes da E.C. É bem possível que este, de quem vou escrever, ainda hoje esteja vivo.
Isto começa lá, nas largas planas do Alentejo, onde trabalhava José, um homem simples, que, desde o começo do século XX, muito novo, dava seu melhor, braçal, e vivia numa modesta casa na herdade do dr. Romão de Matos, médico herdado e abastado, muito conceituado na região.
Um dia, já homem feito, humilde, foi pedir autorização para casar! Encontrara a sua Anastácia, filha de outro trabalhador rural. Tinham-se visto numa feira e faíscas saltaram!
Aplaudido pelo patrão que o estimava e logo providenciou para que a casa do Zé recebesse mais alguns móveis e conforto; ainda lhe prometeu a festa do casório!
A vida seguiu, os dois filhos do dr. Romão estariam com uns 10 a 12 anos, e não tardou a ver-se a barriguinha da Anastácia a aumentar de volume.
O patrão chamou o Zé e disse-lhe: “Esse filho ou filha que vais ter, não vai andar no campo de enxada ou a tocar os bois. Vai estudar. E se for esperto e trabalhador como os pais, chegará longe. E tem mais, os padrinhos da criança vão ser a minha mulher e eu. Você merece.”
Zé, quis beijar as mãos do patrão, que não deixou, saiu eufórico e foi contar à futura mamãe. A criança ainda não nascera e já tinha o futuro assegurado.
Mas o azar rondou a casa de José. Anastácia não se recompôs do parto e logo deixou um órfão pouco mais do que recém nascido e um viúvo.
Batizado de imediato, o dr. Romão assumiu fez questão de dar o nome à criança: Alcebíades, porque sabia que em grego significava filho de um homem com muita força vital! E ainda decidiu levar o afilhado para ser criado em sua casa, com todos os cuidados e segurança, deixando o Zé triste mas sem o problema de ter que cuidar aquele pequenino ser.
Todo o dia, depois do tralhado, o triste pai, ia a casa do patrão, pedia permissão para entrar, tirava o chapéu, cumprimentava os compadres, muito cerimoniosamente a comadre, D. Guiomar, e ia sentar-se ao lado do filho que estava a crescer cheio de saúde. Ali ficava a olhar para a criança, os olhos sempre molhados, mas o coração feliz, sabendo que melhor para o órfãozinho não havia.
Assim que o garoto começou a crescer e a brincar era a atração de todos. Uma criança saudável, risonha, tratada quase como irmão. Os filhos da casa, Amélia e Alexandre estimavam-no como um irmãozinho… pobre, mas quando foi para a escola ajudavam-no e estimulavam-no, fazendo com que ele sempre fosse um dos melhores alunos daquela escola.
À tarde, com o pai, desabafava: “Eles ajudam-me muito, é verdade, mas tratam-me com superioridade. Bem sei que são mais velhos e os donos da casa. Eu sinto que a amizade deles tem alguma coisa, que me reconhecem como um favor, ou um peso”.
O pai retrucava: “meu filho, o que fizeram e estão a fazer contigo, é milagre. Porta-te sempre muito bem e sente-te agradecido. Nunca lhes faltes ao respeito, nem percas a amizade que, melhor ou menos bem, têm para contigo”.
Alcebíades, no entanto, sentia que tudo isso era verdade, mas bem lá no fundo algo o incomodava. Sabia que não era igual a eles...
Quando entrou para o liceu os “irmãos maiores” estavam já na universidade, Amélia em veterinária e Alexandre em medicina.
Não tardou a haver mais dois doutores naquela família e Alcibíades com esses exemplos já tinha decidido que iria ser engenheiro agrónomo.
Estava um belo rapaz, forte, simples, sempre muito bem classificado nos seus estudos foi para Lisboa e não tardou a terminar o seu curso o curso superior.
Aplaudido, festa na herdade que o padrinho não dispensava, desta vez ao “senhor engenheiro!”
Já com uns anos de guerra em África, o curso terminado, Alcebíades é logo convocado e mandado para Angola, onde no fim da sua comissão decidiu ficar. Queria afastar-se um pouco daquela “pressão” dos “irmãos, mais velhos e mais importantes”, e em Angola, sentia-se senhor e dono absoluto de si mesmo. Admitido pelos serviços oficiais para trabalhar na região do Huambo, no Instituto de Investigação Agronómica, onde o conheci.
Lembro dele, jovem, vivo, estimado pelos colegas e agricultores da região, com quem eu conversava sobre o “seu” Alentejo, onde tinha vivido cinco anos.
Ia a Portugal com alguma frequência, ver os padrinhos e o pai, a ficaram velhotes, sem nunca esquecer de estar com “os irmãos”, nem de lhes mostrar algum complexo ou descontentamento.
Um dia, a filha de um colono italiano há anos radicado em Angola, Mirela, cativou o simpático engenheiro, com quem acaba por casar. Passaram a lua-de-mel em Portugal para apresentar a noiva a todos os “familiares”, cerimónia que Alcibíades não podia fazer longe de quem o criara.
Estoura a vergonhosa revolução dos cravos vermelhos, esquerdistas, que vai desestabilizar o país, forçar o abandono das colónias e nacionalizar as propriedades agrícolas, sobretudo as mais extensas, no Alentejo.
Alcebíades volta a Portugal, e vê a oportunidade de se tornar, pelo menos por algum tempo, o dono daquela herdade, junto com o já bem velho pai, igualando-se aos antigos donos.
Filho de pobre, mistura-se à política e decide assumir a herdade onde nascera, com a argumentação “vermelha” que o seu pai dera toda a sua vida trabalhando ali.
O governo esquerdopata, de mau grado aceitou a argumentação e permitiu que a herdade passasse para o seu nome. Certidões que mais tarde foram simplesmente anuladas.
Cinicamente informa os “irmãos” que fazia aquilo para o proteger, mas no fundo sentia uma estranha satisfação em se ter tornado igual aos que sempre foram seus superiores. Estava até mais bem economicamente do que eles, o que lhe dava satisfação ao seu ego.
Na herdade, morando na casa senhorial, nascem dois filhos de Alcebíades, que retomara o seu trabalho de agrónomo a serviço do Estado.
Amélia trabalhava na Direção Geral de Veterinária desde que se formara e Alexandre além de dar plantão em hospitais tinha consultório em Lisboa e outro em Redondo, no Alentejo, perto da herdade, onde tratava os trabalhadores da região, que lastimaram e comentaram a ingratidão de Alcibíades.
Nem um nem outro foram atingidos pela revolução e conseguiram fingir à revolta pelo “roubo” que haviam sofrido, a perda da sua herdade, para um “ingrato” que consideravam irmão.
Tudo comprometido, quando se cruzavam na rua desviavam-se um do outro. Já nem se cumprimentavam.
Alexandre não conseguia conceber que o seu “irmão” tivesse tomado tal atitude, mas também sabia que se não fosse qualquer ele, qualquer outro se ir aproveitar do comunismo exacerbado que se tinha instalado no país e lhe nacionalizado a propriedade.
Logo chegou o tempo de apanhar a cortiça, uma mina para quem se apropriou das herdades. Alcebíades vendeu com rapidez toda a cortiça retirada e, contra o olhar de espanto de todos, a maioria dos quais preferiu ir gozar o dinheiro roubado, começou uma extensa plantação de vinha, planificação de melhor captura de águas, etc. Ele era agrónomo e sabia o que estava a fazer.
Mirela tinha discutido muito com o marido. Sabia o quanto ele devia aos antigos proprietários que melhor ou menos bem o tinham elevado na vida e tratado como um filho, mas Alcibíades, só respondia que se não fosse ele um qualquer selvagem teria feito o mesmo e destruído tudo, e que sabia muito bem o que estava a fazer. Ele não era nem bandido nem ladrão, e se não se tivesse antecipado outro teria feito o mesmo e destruído o que ali havia. Mirela, sem saber o porquê de tal atitude sempre a achou uma vergonha.
A discussão entre os dois quase os levou à separação. Ele ia dizendo: “deixa o tempo passar e vais ver como tudo se arranja”.
Naquela herdade, não se matou um único animal para festas, nem se destruiu o que de produtivo lá existia. Parecia, e era verdade, que estava a ser um exemplo para todos.
Não durou muito tempo esse bolchevismo rural, e quando a política em Portugal começou a desfazer os erros cometidos Alcebíades procurou Amélia e Alexandre que, de muito má cara o quiseram receber, e contou-lhes o que tinha feito na propriedade de onde não tirara um centavo. Vivia do seu salário de engenheiro dos Serviços de Agricultura, e tudo quanto saiu da herdade, cortiça e gado foi revertido em investimento, em vinha e hidráulica.
Vivia na casa principal sim, porque isso seria evidente. Mas agora queria reverter a situação “oficial” e entregar-lhes o que era deles.
O espanto foi grande. Ninguém fizera isso. Praticamente todos que se apoderaram do que não era deles, dizimaram o que foi parar às suas mãos e deixaram as propriedades arrasadas!
Amélia e Alexandre, perplexos, mudos, como primeiro gesto abraçaram Alcebíades, dizendo-lhe que nunca tinham conseguido compreender porque ele tinha feito aquilo. Consideraram um ato de tristíssima ingratidão, e agora viam como estavam enganados.
Alcebíades até representou perfeitamente o papel de vingança, para que ninguém entendesse o que se estava a passar, e tinha o prazer de lhes devolver tudo, e com consideráveis melhorias! Os irmãos, unânimes, logo propuseram então transformar a propriedade familiar em sociedade, ficando Alcebíades com 1/3 das quotas!
Alcebíades continuou a viver na casa grande, uma vez que os irmãos viviam na cidade, mas sempre com os seus quartos prontos para quando visitassem a herdade, o que faziam agora com frequência. Eles e os filhos.
Hoje a “Herdade do Romão” é produtora de um dos melhores vinho daquela ubérrima região.
Os padrinhos e o pai, já anos falecidos, estariam orgulhosos e felizes com a trajetória daquele afilhado/filho, mais ainda se pudessem ter assistido ao alegre e festejado casamento de uma filha de Amélia com o mais velho de Alcebíades, competente enólogo.
Belo fecho para uma história de vidas.
Se eu tivesse conhecimento disto há mais tempo, tinha lá ido ver se o vinho era mesmo bom!
14/08/22
E eu iria com o Francisco. Abraço.
ResponderExcluirUma bela hisiória!
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