segunda-feira, 22 de agosto de 2022

 

A Vida do Zé

(o pai do Alcebíades)

 Lembram do Zé? O pai do Alcebíades do último texto do blog? Pois é. Ele também tem uma história que merece ser contada.

Nasceu mal começara o século XX, na Beira Baixa, Portugal, num lugar hoje abandonado, Monte do Marmelitos, na Serra do Carregal, onde grassava a fome, o desemprego total, as chuvas raras, o chão não produzia sequer para comer e o povo mal sobrevivia.

O pai do Zé ouviu falar na Índia. Chegavam tarde as notícias àquelas bandas, e ainda havia uma réstea de sonho, não de riqueza, mas de vida sem fome.

Um dia, Zé tinha menos de um ano, o pai saiu de casa e nunca mais alguém soube dele.

A mãe abandonou o casebre, pôs o filho no colo e meteu-se a caminho da vila mais próxima, Idanha-a-Nova, sede do maior munícipio de Portugal, que vivia nesse tempo pouco mais que dos rebanhos de ovelhas, pertencentes a poucos senhores.

Pelo caminho foi comendo o pouco que outros pobres lhe davam, mão estendida, à procura de um afastado parente que se lembrava vivia na vila e teria um pequeno comércio.

O parente, com uma pequena loja, deu-lhe albergue em cima de um monte de palha, mas garantiu-lhe alguma coisa que comer, para dois, já que o filhote só se alimentava com o pouco leite da mãe.

Ao fim de algum tempo conseguiu trabalho na casa de um dos grandes senhores, ajudante na cozinha, sempre levando ao lado o Zé que ia crescendo.

Com 6 anos o parente da loja, que se afeiçoara ao garoto ia-lhe dando umas pequenas missões, como levar uma ou outra pequena encomenda que algum freguês tivesse feito, onde lhe davam uns centavos, reis naquele tempo, que deixavam o pequeno feliz.

Esperto, muito vivo, logo que chegou o tempo foi para a escola, onde aprendeu a ler e escrever, e mesmo sem ter terminado o primário, ficou a “trabalhar” com o parente. Entretanto aqueles míseros reis que lhe davam já conseguia ajudar, mesmo com pouco, a vida difícil dele e da mãe.

Aos 10 anos começou a trabalhar em tempo integral com o “tio”, como chamava ao parente, mesmo recebendo pouco mais que esmola, mas ia aprendendo tudo quanto lhe passava pelas mãos, e não só.

Ia deitando corpo, forte, e aos 14 anos despediu-se da mãe e do “tio” e foi procurar vida em outro lugar mais promissor.

Aquela região da Beira é pobre. O Zé sabia que para sul havia um grande rio, e onde há água, sempre se pode fazer alguma coisa, e lá vai ele.

Sempre que no caminho avistava uma casa mais ajeitada, batia na porta e oferecia-se para trabalhar. Nada. Ao menos que lhe dessem um pouco de pão, o que raro era negado, e se estivesse no fim do dia que o deixassem dormir em qualquer canto. Assim, sem desanimar, continuou a andar, e só parou, ao fim de mais de dois meses, e para cima de duzentos quilómetros andados, na vila do Redondo, Alentejo, onde chega com 15 anos.

Na sua herdade o Dr. Romão, que tinha um filho da mesma idade, ouviu a saga do jovem e o contratou, do que jamais se arrependeu.

(Nota: o texto anterior refere Alexandre e Guiomar como dois filhos do dr. Romão, mas são netos)

A herdade, com várias centenas de hectares, vivia da cortiça, azeitona, fazendo em casa o azeite para consumo próprio e do seu pessoal, e ainda vendia bastante que lhe sobrava, de uma pequena vinha, que igualmente lhe fornecia vinho para a casa e para os trabalhadores, e vários animais, como ovelhas, gado vacum e muitos porcos. E algum trigo.

Era uma casa rica.

O Dr. Romão, médico, estava nessa altura com 40 anos, tinha começado a vida profissional em Coimbra, onde se formara, mas quando o pai adoeceu, regressou a casa, assumiu a gestão da propriedade e abriu um consultório na vila, além de prestar assistência no Hospital da Misericórdia local.

O Zé foi um trabalhador a juntar a mais uma dezena, e não tardou a se destacar pelo seu zelo, a sua educação e respeito pelos colegas mais velhos, e até pela sua cultura, porque era o único letrado, o que permitiu que o patrão lhe fosse confiando cada vez mais tarefas e mais controle, em mapas que ele fazia, de toda a exploração agrícola. Atento aos filhos do patrão, um deles da sua idade a progredirem na escola, depois, liceu e faculdade, vendo o mais velho a formar-se em medicina, como o pai, e ficava a pensar o quanto ele daria para poder seguir os mesmos passos. Gostava de conversar com este, bom estudante, e aplaudia o seu progresso, bem como o da irmã, em veterinária, que tinha nascido dois anos depois.

Com regularidade escrevia para a mãe, mas raro recebia notícias, limitando-se a saber que continuava viva, mas por pouco mais tempo, o que o fez desligar-se completamente dos seus primeiros anos, bem sofridos.

Ao fim de pouco tempo, Zé já funcionava como uma espécie de primeiro auxiliar na herdade, tinha já uma casinha, só para ele, onde podia escrever, fazer mapas, etc. deixando o dormitório da maioria dos outros trabalhadores.

Numa das feiras anuais, onde concorre muita gente, e todos os vizinhos, conheceu uma jovem, o seu coração bateu, ainda forte, já com mais de 30 anos, e conquistou o coração daquela que, após ter pedido ao patrão autorização para casar, virou a sua companheira.

No ano seguinte nasce Alcebíades, e a mãe em pouco tempo falece.

Vimos que o Dr. Romão, passados os 60 anos, assume a criação do recém nascido, que foi mimado pelos filhos do já Dr. Augusto (o filho mais velho do Dr. Romão), um rapaz com 11 e uma filha com 9 anos.

Zé era já o capataz geral da herdade, e desde que enviuvara, tinha autorização de, no fim do dia compartilhar da refeição dos empregados domésticos, depois de ter estado a conversar com o filho que crescia “em graça e sabedoria”.

A cozinheira, mulher de idade igual à dele, a Rita, também enviuvara havia alguns anos, e o entendimento entre eles ia crescendo.

Assim que Alcebíades foi estudar agronomia para Lisboa, deixando o pai mais isolado, mais uma vez o Zé pediu ao novo patrão, o Dr. Augusto, visto que o pai estava muito velhote e afastado da gestão da herdade e até de serviços clínicos, para se juntar com a Rita. Tinha a casa na herdade, estava relativamente folgado de finanças, e com o ordenado dele e dela, poderiam viver felizes os anos que ainda lhe estavam sobrando.

Foi uma festa na Herdade, em que participaram patrões, empregados e até vizinhos, além do padre da Santa Casa da Misericórdia que veio abençoar a união.

Alcibíades, curso terminado segue para Angola, e entretanto a gestão da herdade estava cada vez mais nas mãos do Zé. Os filhos do Dr. Romão, Alexandre e Guiomar, ocupados com as suas atividades profissionais, confiavam inteiramente na gestão do Zé, que lhes dava, quase diariamente notícias do andamento dos negócios.

Chega a triste revolução, de porca memória, e vimos Alcibíades, regressar de Angola imiscuir-se na política e conseguir que os capitãezecos da revolução, que estavam a nacionalizar as propriedades agrícolas, entregassem a Herdade do Romão a ele e seu pai, nessa altura com 70 anos, garantindo melhoria de salários aos restantes trabalhadores e a reordenação da exploração agrícola,

Foi difícil Alcibíades convencer o pai do que estava fazendo. Zé considerava aquilo um roubo, ele que ali trabalhava há mais de meio século e sempre fora muito bem tratado, faria tudo que estivesse ao seu alcance para defender o património dos seus patrões. Mas o risco de serem também invadidos por hordas de comunistas, que a primeira coisa que fariam era venderem tudo quanto lá encontrassem e até largar fogo a plantações, era real.

Alcibíades só lhe disse que se não “ocupassem” eles, iriam perder tudo, como o pai estava a ver o que se passava com tantos outros à sua volta.

As invasões de trabalhadores comandados pelo governo comunista eram uma loucura. Tudo e todos estavam com medo que uma guerra civil estourasse.

O corte de relações entre Alcebíades e os proprietários foi um choque tremendo para estes. A verdade é que eles sabiam o que se estava a passar em todo o país, e que a herdade seria ocupada pelos sindicatos comunistas, se Alcibíades não a conseguisse segurar.

Zé ficou triste, abalado, doente. Estava com mais de 70 e o choque foi grande. Não podia cortar relações com o filho, nem compreendia bem o que ele estava a fazer.

Mas com a dinâmica que Alcibíades foi dando na administração da casa, mantendo e estimulando os trabalhadores que ficaram (alguns juntaram-se à “revolução”), Zé que era quem conhecia tudo aquilo como as suas mãos, foi sossegando e a saúde recompôs-se.

Dois anos de aflição sem que os trabalhos agrícolas fossem interrompidos e até uma grande extensão da vinha iniciada.

A mudança de governo, com a saída de ministros comunas e entrada de um social-democrata (António Barreto) pôs imediato travão à caótica chamada “reforma agrária”, e na herdade os trabalhos prosseguiram. Mas mais tranquilos.

Zé agora com quase 80, estava novamente viúvo. A Rita fechara os olhos, e ele nada mais fazia do que ficar sentado à porta de casa e olhar à sua volta. Gostava de ver os progressos que o filho fizera na herdade.

Os netos já lhe tinham dado três bisnetos que o visitavam com frequência, era o pouco que ainda o agarrava à vida, e já não conseguiu entender quando Alcibíades lhe disse que, finalmente, pudera conversar abertamente com os verdadeiros proprietários, filhos e netos do Dr. Romão, o que não tinha sido possível cinco anos antes, garantindo-lhes que tudo o que fizera foi para salvar a propriedade das mãos dos assaltantes.

A paz voltou àquelas terras, e Zé pôde finalmente descansar, rodeado de filhos e netos seus, e toda a família do seu velho patrão que lhe foram dizer adeus.

Sim, houve muita lágrima, mesmo que disfarçada.

 

18/08/2022

 

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