A Vida
do Zé
(o pai
do Alcebíades)
Nasceu
mal começara o século XX, na Beira Baixa, Portugal, num lugar hoje abandonado,
Monte do Marmelitos, na Serra do Carregal, onde grassava a fome, o desemprego
total, as chuvas raras, o chão não produzia sequer para comer e o povo mal
sobrevivia.
O
pai do Zé ouviu falar na Índia. Chegavam tarde as notícias àquelas bandas, e
ainda havia uma réstea de sonho, não de riqueza, mas de vida sem fome.
Um
dia, Zé tinha menos de um ano, o pai saiu de casa e nunca mais alguém soube
dele.
A
mãe abandonou o casebre, pôs o filho no colo e meteu-se a caminho da vila mais
próxima, Idanha-a-Nova, sede do maior munícipio de Portugal, que vivia nesse
tempo pouco mais que dos rebanhos de ovelhas, pertencentes a poucos senhores.
Pelo
caminho foi comendo o pouco que outros pobres lhe davam, mão estendida, à
procura de um afastado parente que se lembrava vivia na vila e teria um pequeno
comércio.
O
parente, com uma pequena loja, deu-lhe albergue em cima de um monte de palha,
mas garantiu-lhe alguma coisa que comer, para dois, já que o filhote só se
alimentava com o pouco leite da mãe.
Ao
fim de algum tempo conseguiu trabalho na casa de um dos grandes senhores,
ajudante na cozinha, sempre levando ao lado o Zé que ia crescendo.
Com
6 anos o parente da loja, que se afeiçoara ao garoto ia-lhe dando umas pequenas
missões, como levar uma ou outra pequena encomenda que algum freguês tivesse
feito, onde lhe davam uns centavos, reis naquele tempo, que deixavam o pequeno
feliz.
Esperto,
muito vivo, logo que chegou o tempo foi para a escola, onde aprendeu a ler e
escrever, e mesmo sem ter terminado o primário, ficou a “trabalhar” com o parente.
Entretanto aqueles míseros reis que lhe davam já conseguia ajudar, mesmo com
pouco, a vida difícil dele e da mãe.
Aos
10 anos começou a trabalhar em tempo integral com o “tio”, como chamava ao
parente, mesmo recebendo pouco mais que esmola, mas ia aprendendo tudo quanto
lhe passava pelas mãos, e não só.
Ia
deitando corpo, forte, e aos 14 anos despediu-se da mãe e do “tio” e foi
procurar vida em outro lugar mais promissor.
Aquela
região da Beira é pobre. O Zé sabia que para sul havia um grande rio, e onde há
água, sempre se pode fazer alguma coisa, e lá vai ele.
Sempre
que no caminho avistava uma casa mais ajeitada, batia na porta e oferecia-se
para trabalhar. Nada. Ao menos que lhe dessem um pouco de pão, o que raro era
negado, e se estivesse no fim do dia que o deixassem dormir em qualquer canto.
Assim, sem desanimar, continuou a andar, e só parou, ao fim de mais de dois
meses, e para cima de duzentos quilómetros andados, na vila do Redondo, Alentejo,
onde chega com 15 anos.
Na
sua herdade o Dr. Romão, que tinha um filho da mesma idade, ouviu a saga do
jovem e o contratou, do que jamais se arrependeu.
(Nota: o texto anterior refere
Alexandre e Guiomar como dois filhos do dr. Romão, mas são netos)
A
herdade, com várias centenas de hectares, vivia da cortiça, azeitona, fazendo
em casa o azeite para consumo próprio e do seu pessoal, e ainda vendia bastante
que lhe sobrava, de uma pequena vinha, que igualmente lhe fornecia vinho para a
casa e para os trabalhadores, e vários animais, como ovelhas, gado vacum e
muitos porcos. E algum trigo.
Era
uma casa rica.
O
Dr. Romão, médico, estava nessa altura com 40 anos, tinha começado a vida
profissional em Coimbra, onde se formara, mas quando o pai adoeceu, regressou a
casa, assumiu a gestão da propriedade e abriu um consultório na vila, além de
prestar assistência no Hospital da Misericórdia local.
O
Zé foi um trabalhador a juntar a mais uma dezena, e não tardou a se destacar
pelo seu zelo, a sua educação e respeito pelos colegas mais velhos, e até pela
sua cultura, porque era o único letrado, o que permitiu que o patrão lhe fosse
confiando cada vez mais tarefas e mais controle, em mapas que ele fazia, de
toda a exploração agrícola. Atento aos filhos do patrão, um deles da sua idade
a progredirem na escola, depois, liceu e faculdade, vendo o mais velho a formar-se
em medicina, como o pai, e ficava a pensar o quanto ele daria para poder seguir
os mesmos passos. Gostava de conversar com este, bom estudante, e aplaudia o
seu progresso, bem como o da irmã, em veterinária, que tinha nascido dois anos
depois.
Com
regularidade escrevia para a mãe, mas raro recebia notícias, limitando-se a saber
que continuava viva, mas por pouco mais tempo, o que o fez desligar-se
completamente dos seus primeiros anos, bem sofridos.
Ao
fim de pouco tempo, Zé já funcionava como uma espécie de primeiro auxiliar na
herdade, tinha já uma casinha, só para ele, onde podia escrever, fazer mapas,
etc. deixando o dormitório da maioria dos outros trabalhadores.
Numa
das feiras anuais, onde concorre muita gente, e todos os vizinhos, conheceu uma
jovem, o seu coração bateu, ainda forte, já com mais de 30 anos, e conquistou o
coração daquela que, após ter pedido ao patrão autorização para casar, virou a
sua companheira.
No
ano seguinte nasce Alcebíades, e a mãe em pouco tempo falece.
Vimos
que o Dr. Romão, passados os 60 anos, assume a criação do recém nascido, que
foi mimado pelos filhos do já Dr. Augusto (o filho mais velho do Dr. Romão), um
rapaz com 11 e uma filha com 9 anos.
Zé
era já o capataz geral da herdade, e desde que enviuvara, tinha autorização de,
no fim do dia compartilhar da refeição dos empregados domésticos, depois de ter
estado a conversar com o filho que crescia “em graça e sabedoria”.
A
cozinheira, mulher de idade igual à dele, a Rita, também enviuvara havia alguns
anos, e o entendimento entre eles ia crescendo.
Assim
que Alcebíades foi estudar agronomia para Lisboa, deixando o pai mais isolado, mais
uma vez o Zé pediu ao novo patrão, o Dr. Augusto, visto que o pai estava muito
velhote e afastado da gestão da herdade e até de serviços clínicos, para se juntar
com a Rita. Tinha a casa na herdade, estava relativamente folgado de finanças,
e com o ordenado dele e dela, poderiam viver felizes os anos que ainda lhe
estavam sobrando.
Foi
uma festa na Herdade, em que participaram patrões, empregados e até vizinhos,
além do padre da Santa Casa da Misericórdia que veio abençoar a união.
Alcibíades,
curso terminado segue para Angola, e entretanto a gestão da herdade estava cada
vez mais nas mãos do Zé. Os filhos do Dr. Romão, Alexandre e Guiomar, ocupados
com as suas atividades profissionais, confiavam inteiramente na gestão do Zé,
que lhes dava, quase diariamente notícias do andamento dos negócios.
Chega
a triste revolução, de porca memória, e vimos Alcibíades, regressar de Angola
imiscuir-se na política e conseguir que os capitãezecos da revolução, que
estavam a nacionalizar as propriedades agrícolas, entregassem a Herdade do
Romão a ele e seu pai, nessa altura com 70 anos, garantindo melhoria de salários
aos restantes trabalhadores e a reordenação da exploração agrícola,
Foi
difícil Alcibíades convencer o pai do que estava fazendo. Zé considerava aquilo
um roubo, ele que ali trabalhava há mais de meio século e sempre fora muito bem
tratado, faria tudo que estivesse ao seu alcance para defender o património dos
seus patrões. Mas o risco de serem também invadidos por hordas de comunistas,
que a primeira coisa que fariam era venderem tudo quanto lá encontrassem e até
largar fogo a plantações, era real.
Alcibíades
só lhe disse que se não “ocupassem” eles, iriam perder tudo, como o pai estava
a ver o que se passava com tantos outros à sua volta.
As
invasões de trabalhadores comandados pelo governo comunista eram uma loucura.
Tudo e todos estavam com medo que uma guerra civil estourasse.
O
corte de relações entre Alcebíades e os proprietários foi um choque tremendo
para estes. A verdade é que eles sabiam o que se estava a passar em todo o país,
e que a herdade seria ocupada pelos sindicatos comunistas, se Alcibíades não a
conseguisse segurar.
Zé
ficou triste, abalado, doente. Estava com mais de 70 e o choque foi grande. Não
podia cortar relações com o filho, nem compreendia bem o que ele estava a
fazer.
Mas
com a dinâmica que Alcibíades foi dando na administração da casa, mantendo e
estimulando os trabalhadores que ficaram (alguns juntaram-se à “revolução”), Zé
que era quem conhecia tudo aquilo como as suas mãos, foi sossegando e a saúde
recompôs-se.
Dois
anos de aflição sem que os trabalhos agrícolas fossem interrompidos e até uma
grande extensão da vinha iniciada.
A
mudança de governo, com a saída de ministros comunas e entrada de um
social-democrata (António Barreto) pôs imediato travão à caótica chamada
“reforma agrária”, e na herdade os trabalhos prosseguiram. Mas mais tranquilos.
Zé
agora com quase 80, estava novamente viúvo. A Rita fechara os olhos, e ele nada
mais fazia do que ficar sentado à porta de casa e olhar à sua volta. Gostava de
ver os progressos que o filho fizera na herdade.
Os
netos já lhe tinham dado três bisnetos que o visitavam com frequência, era o pouco
que ainda o agarrava à vida, e já não conseguiu entender quando Alcibíades lhe
disse que, finalmente, pudera conversar abertamente com os verdadeiros
proprietários, filhos e netos do Dr. Romão, o que não tinha sido possível cinco
anos antes, garantindo-lhes que tudo o que fizera foi para salvar a propriedade
das mãos dos assaltantes.
A
paz voltou àquelas terras, e Zé pôde finalmente descansar, rodeado de filhos e
netos seus, e toda a família do seu velho patrão que lhe foram dizer adeus.
Sim,
houve muita lágrima, mesmo que disfarçada.
18/08/2022
Nenhum comentário:
Postar um comentário