domingo, 3 de julho de 2022

 

Voltas e Reviravoltas


O caso que vou narrar passou-se no século XX, portanto há pouco tempo, e algumas personagens estão já no eterno e merecido descanso.

Caso conhecido através de alguém que foi muito amigo dessa gente.

No começo dos anos 20 do século XX, dois jovens portugueses decidiram deixar as suas terras e procurarem vida nova em África. Manuel Costa e João Pacheco, hm da região de Torres Vedras, o outro de Cantanhede, ofereceram-se como marinheiros e embarcaram para Angola na viagem inaugural do navio Guiné I.

Únicos “marinheiros amadores”, ganharam amizade durante a viagem, enquanto faziam projetos para o que deveria ser a nova vida que iam enfrentar. Nada de ficar na cidade, com empregos miseráveis. O futuro estaria no interior.

Assim que chegados souberam que um dos sócios da Companhia de Navegação, Celestino Correia, que ficou conhecido em Angola como grande empreendedor, estava a começar a construir o caminho de ferro do Amboim. Para isso precisava de pessoal responsável. Os dois amigos não exitaram. Era ali que iam começar a nova vida.

Bons trabalhadores, com algum estudo, não tardou a ocuparem cargos de responsabilidade, assim ganhando o suficiente para irem amealhando tudo quanto podiam. Levavam vida séria e de trabalho..

Foram ganhando respeito e o conhecimento de vários chefes – sobas – africanos, e decidiram que a melhor aplicação do dinheiro seria a compra de terras para o cultivo do café, e assim, independentes, mas sempre procurando terras vizinhas, quando o caminho de ferro chega ao seu término em 1941, ambos tinham já boas porções de terra, que paralelamente foram plantando e encontravam-se já reconhecidos fazendeiros, com boa situação económica, tendo ainda recebido um prémio pelo trabalho desenvolvido nas obras.

Já instalados nas suas propriedades, casados começam a chegar os filhos.

O casal Pacheco foi o primeiro a ser contemplado com um rapaz, o Carlos. Os Costa, só quase três anos depois porque a esposa teve problemas de saúde de adaptação, mas acabou pondo neste mundo uma linda menina, a Lúcia. Ao mesmo tempo desta nascia também a Sofia na casa Pacheco.

Nascidos em Angola, filhos de fazendeiros de café, onde não havia problemas de finanças apesar de não serem ricos, o mais importante, eram serem vizinhos, e assim terem criado profunda amizade entre os três.

Conheceram-se desde que a menina vizinha nasceu, que cedo veio a ser a sua grande companhia de brincadeira, e mais tarde uma espécie de namorico até que chegaram a noivar. Sofia sempre a par de todas estas evoluções.

Todos se gostavam como irmãos, mas à medida que iam crescendo esse amor fraterno mostrou que havia outro amor que podiam e deviam vir a partilhar.

Lúcia fazia-se uma linda jovem, viva, alegre, alta e Carlos rapagão forte, bonito, mais calmo.

Enquanto estudavam na Escola Industrial em Nova Lisboa), todo o dia saíam juntos, ele a deixava em casa, e volta e meia, mãe condescendente, arranjava maneira de os levar a verem um filme num dos cinemas da terra. Bons alunos, logo ele ocurso de engenheiro auxiliar é mandado para Portugal o curso superior de engenharia, coisa que o atraía desde muito novo, e já com boa prática, não só pelo curso feito em Nova Lisboa, porque não se livrava de dar manutenção às máquinas da sua fazenda e até de alguns vizinhos. Daí, também ser muito estimado por todos.

Na despedida para Portugal, promessas de amor eterno, mas a perspectiva era de uma separação longa… sempre perigosa para dois jovens namorados que se amavam desde crianças.

Cartas voavam de um para outro lado, com muita frequência, frases de amor e saudade a preencherem o papel.

Coimbra terra de doutores e amores, não perturbaram o estudante que sonhava só com a sua amada e com o final dos estudos para se tornar independente e até poder casar.

Os estudos corriam bem, em quatro anos estava formado, e foi logo chamado para cumprir o serviço militar. A guerra já tinha começado nas colónias portuguesas.

Lúcia, que da mesma Escola Industrial passara ao recém Liceu em Nova Lisboa, ingressa nos Estudos Gerais, em Luanda, que virou Universidade, e estudava Biologia.

Rodeada de jovens, de vida com liberdade, praia e passeios, coisa a que não estava habituada, curiosa e inteligente, não podia deixar de prestar atenção em alguns que lhe pareciam mais… mais atraentes. Não esquecia o seu amor, mas o panorama circundante davam-lhe que pensar.

Carlos, mesmo batalhando muito, ao ser incorporado não foi mandado para Angola, mas para Moçambique.

Requerimentos, queixas, etc., nada lhe valeu e teve que cumprir o serviço militar no Norte de Moçambique. Ao passar em Luanda encontraram-se os dois jovens, choraram com a continuidade da separação, mas não deixaram de marcar a data de casamento para o dia seguinte em que ele terminasse as suas obrigações.

O homem põe e Deus dispõe! O tempo e o afastamento… é que dispõem, e Lúcia começou a sentir que o calor e o entusiasmo que sempre sentia ao estar junto de quem amava, ia arrefecendo. Longe da vista… quantas vezes longe do coração, como o mostrou Gil Vicente dos Auto da Índia!

À sua volta outros Adonis iam ocupando o campo que o nosso engenheiro, militar, fora obrigado a deixar livre. As cartas começaram a aparecer mais secas. Via-se que o entusiasmo esmorecia. Do lado dela. Ele, no meio de uma guerra, dura e feroz, sonhava com o dia em que aquilo terminasse para correr para os braços daquela que amava e considerava noiva. Mas alguma lhe dizia que nem tudo estava a correr bem.

Chegava ao fim a comissão militar e uma carta trazia-lhe a notícia que o vinha roendo: ela dizia-lhe muito sumariamente que gostava de um colega, ótimo companheiro, não tinham namoro, mas ele era muito atencioso e, no mesmo curso, passavam várias horas a estudarem juntos!

Carlos não queria acreditar naquelas palavras; leu a carta várias vezes, se bem que nas entrelinhas, e nas linhas, percebia que o amor de toda a sua vida tinha voado para longe.

Esperou uns dias para lhe responder e, numa carta bastante seca, perguntava-lhe se o casamento, acordado entre eles, ainda era válido. Ia passar, já desmobilizado, em Luanda, dentro de duas semanas, e queria saber como proceder.

A resposta não demorou. Lúcia, habilmente disse que precisava de mais tempo para pensar, além de ainda lhe faltarem dois anos para terminar a faculdade.

Carlos caiu em si, e viu que o assunto estava arrumado.

Ao passar em Luanda, procurou-a e, direto, sem cerimónias disse-lhe

- Lúcia, tudo o que eu quero é que sejas feliz. Gostei de ti como de ninguém, e seria incapaz de te desejar outra coisa. Se algum dia precisares de mim, é só me dizeres. Mas não nos voltaremos a ver, a não ser, como te digo, que precisares de mim. Adeus.

Saiu, visitou pais, pediu à irmã que, em segredo, lhe fosse dando notícias da Lúcia, despediu-se também dos antigos prepostos sogros, e seguiu viagem para Portugal.

Engenheiro, experiente, com louvores obtidos no serviço militar, decidiu ir embora de Portugal sem sequer equacionar em voltar para a sua terra, Angola, que tanto amava.

Procurou trabalho nos lugares mais longínquos e não tardou a ir para a Austrália, já com promessas positivas.

Jovem, “boa pinta”, alto, inteligente, não lhe faltaram pretendentes. Mas Carlos perdera a confiança nas mulheres. No grupo de amizades que entretanto foi tendo, algumas descaradamente o queriam atrair. Homem bonito, com segura posição financeira… Era-lhe fácil aproveitar uns momentos de prazer, mas jamais voltou a equacionar uma união definitiva.

Todos os anos, no dia do aniversário da Lúcia, através de empresas que entregam flores em todo o mundo, ela recebia em casa um bonito ramo de flores, com um cartão simples; “De um amigo”, sem nome nem data.

Alguns anos passaram, chegou a independência de Angola, o êxodo dos portugueses foi quase total, os agricultores de café, os que não foram mortos, tiveram que abandonar tudo.

Tanto os pais de Carlos, como os da Lúcia, tinham já, havia alguns anos, à cautela, comprado casa com pequena quinta em Portugal. Estavam ainda de boa saúde, sexagenários, foram cuidar em Portugal de alguma coisa que lá tinham.

Carlos, há dez anos na Austrália estava muito bem economicamente, não ocasião da “fuga” ofereceu-se para financeiramente ajudar as duas famílias, o que não foi necessário, e com alguns intervalos de tempo ia até Portugal, mas só procurava estar com os pais que envelheciam.

Nessas viagens, a irmã saía com ele para passearem e contar-lhe o que sabia da Lúcia, de quem continuava amiga, apesar de se verem poucas vezes.

O casamento com o colega não fora feliz. O desmonte das vidas em Angola, abalou muitas vidas de famílias. O único filho que lhes nascera morreu muito cedo o que a deixou derrotada, e o marido era, além de pouco carinhoso, um “salta-salta” com outras mulheres. Lúcia tinha até confessado que ia se separar.

Tudo isso Carlos ouvia e sofria pelo antigo amor que jamais lhe saíra da cabeça.

Já de volta a casa, na Austrália, pouco tempo depois recebe da irmã uma notícia que muito lhe agradou. Sofia tinha arranjado férias e iria visitá-lo. Ela, marido e os dois filhos, um deles afilhado de Carlos, que logo lhe mandou uma boa soma para a compra das passagem e ficou ansioso pela sua chegada.

Dia da chegada, sábado, Carlos nervoso aguarda no aeroporto a chegada.

Mas leva um tremendo choque ao ver que a irmã não aparecia, e vê, com ar estupefacto chegar Lúcia, ar abatido depois de quase quarenta horas de voo e até envergonhado, continuando a ser uma bela mulher, vestindo com elegância, 1,65 m de elegância, simples e beleza.

A primeira reação de Carlos foi virar as costas e ignorá-la, o que seria uma tremenda falta de educação.

Lúcia, depois de um seco “Olá, Carlos” entrega-lhe uma carta da irmã, que simplesmente lhe dizia que, por razões de força maior – um problema de saúde de um dos filhos, pequenos, o afilhado de Carlos – teve que adiar a ida. Mas que esperava poder lá estar dentro de oito a dez dias.

Carlos fingiu que acreditava, e disse a Lúcia que a ia levar para um hotel na cidade. Não se preocupasse com o custo, seria de sua responsabilidade.

No caminho, pouca conversa trocaram. Só notícias dos pais de ambos, de Sofia e o problema da saúde do sobrinho, que Lúcia explicou o que tinha sido, e estava já bem.

Ao deixá-la no hotel, diz-lhe que descanse da viagem que “amanhã’ a ia buscar por volta do meio dia para almoçarem juntos.

Foi para casa, telefona à irmã, e diz-lhe que o que ela fez não foi decente. Sentiu como quem leva um tapa na cara! Ela desculpou-se com o filho, que estava já bem e que dentro de dias estaria lá em Melbourne e lhe explicaria tudo. E que a razão da Lúcia ter ido, não fora nenhuma brincadeira. Eram amigas de toda a vida, e agora que ela estava só e triste. Mais ainda porque a mãe lhe tinha falecido há pouco. Tudo isso deu a Sílvia a ideia de fazerem esta viagem juntas, o que infelizmente não foi possível.

Carlos não sabia como reagir. Tinha, no fundo, uma imensa mágoa, com a atitude que ela tomara. Ao mesmo tempo não esquecia o tanto que se amaram e compreendia que ela agora precisava dele mais do que nunca.

Passou uma noite difícil, a pensar como se comportar no dia seguinte. A verdade é que não podia simplesmente ignorá-la!

A sua cabeça não conseguia dizer-lhe o que fazer. Confuso, com a ferida aberta, vontade de sumir por algum tempo, foi buscar Lúcia.

Lá estava ela, elegante, atraente, com ar mais descontraído, à espera. Tudo isso Carlos ia anotando e tentando encontrar um caminho a percorrer.

- Teve coragem para lhe dizer: continuas muito elegante e bonita!

Ao que ela respondeu:

- Tu Carlos também continuas jovem. Não parece que passaram já tantos anos!

O bom-dia foi mais intimamente começado com um rápido beijo na face. Afinal eram amigos desde a mais tenra infância.

Já no carro Carlos disse-lhe que iam almoçar num parque para que ela pudesse começar por ver a fauna australiana, sempre agradável. Lá havia um pequeno restaurante, mesa reservada num discreto canto.

Lúcia, como todos os visitantes, encantou-se com os coala, wombat, cangurus e outros o que a deixaram bem descontraída.

Ao sentarem-se à mesa, Carlos diz-lhe:

- Lúcia, não vamos falar no que se passou com a tua vida. Podes contar-me sobre a tua vida profissional, mas nada de assuntos familiares. Desculpa, a minha ferida nunca fechou. Pelo meu lado pouco há para contar. Estou aqui há uns quinze anos, solteiro, a vida profissional corre bem, tenho alguns amigos, poucos, gosto de passear pelo interior deste imenso país e é tudo.

E a conversa começou a correr, cerimoniosa.

Nos olhos de ambos viam-se aflorar algumas gotas com o difícil momento que estavam a viver e recordar, e o coração do Carlos ia amolecendo. Chegaram até a momentos de riso quando algum detalhe das suas vidas o permitia.

Deram mais um largo passeio de carro e, no regresso ao hotel:

- Lúcia, quando a Sílvia chegar vão todos para minha casa que é grande. Lá terás também o teu quarto, mas por ora acho melhor que fiques aqui. Não deixarei de te vir buscar para um passeio ou jantar, mas amanhã tenho muito trabalho. Só posso aparecer tarde. O hotel está bem no centro da cidade, podes passear por onde quiseres. Tens aqui um envelope com um pouco de dinheiro australiano para o que precisares.

Outro beijo de irmãos, um “boa noite e obrigado; até amanhã”, Carlos saiu.

Saiu, mas ia diferente, não entendia se mais descontraído ou ainda mais perdido, sentindo um pedacinho de felicidade a aflorar lá no fundo. Sabia que continuava a gostar de Lúcia e previa que tudo aquilo ainda ia acabar bem. Mas como? Devagar, com cautela, sobretudo depois da chegada da irmã, que teria, de certeza muito para lhe contar. Não podia dizer a Lúcia que ainda gostava dela, mesmo sabendo que isso era o que sentia, era muito difícil afirmá-lo. Com Lúcia passava-se o mesmo, só não sabia como dar um passo em frente, depois do erro, grande, que cometera.

Ele disse-lhe, da última vez que se viram, que se ela precisasse dele era só lhe dizer. Chegara o momento.

Ela, desde há muito que estava precisando dele. E ele… desde aquele fatídico dia.

A ambos faltava coragem para falarem abertamente. Também não podia ser de repente que se dizem coisas assim que deixaram marcas dolorosas. Tinham que deixar o tempo fazer a sua parte, e a presença da família ia ajudar muito.

No hotel, sozinha, à noite, Lúcia chorava.

Domingo à noite um telefonema de Sílvia, avisa que vão chegar na próxima quarta feira. Que alegria Carlos recebeu. Com a irmã e sobrinhos em casa as “coisas” iriam encaixar-se.

Passaram esses três dias de espera, um jantar e um pequeno encontro no entretanto, e lá está Carlos na saída do aeroporto.

Foi grande a manifestação, muitos abraços e beijos à irmã e sobrinhos e, com carro extra, vão ao hotel buscar Lúcia. Outra manifestação entre as amigas.

Começa uma vida nova em casa. Alegria, descontração e a pressão de Sofia para que os dois, que ainda se amavam o dissessem um ao outro, para acabar com aquela situação falsa. A coragem para dar esse passo faltava aos dois.

Então, uns dias depois, no fim de um jantar com a família, tudo na mais descontraída disposição, Sofia, manda calar todos, porque tinha uma declaração a fazer!!! E dirige-se direto ao assunto:

- Carlos e Lúcia! Porque vocês não marcaram ainda o casamento? Alguém tem dúvidas que esse é o vosso destino, que está previsto desde que nasceram?

Uma salva de palmas e muitos “vivas” da família e os “noivos” a corarem com o susto. Mas Carlos logo tomou conta da situação.

- Lúcia e eu temos conversado muito nestes poucos dias que estivemos sozinhos. Nunca tocámos nessa hipótese, mas ambos sabemos que isto ia acabar desse modo. Faltava-nos sermos mais simples para o declararmos um ao outro. Eu sabia que a Sofia acabaria por nos encostar à parede! E ela tem razão! Assim: Lúcia, ainda queres casar comigo?

Lúcia não sabia como limpar as lágrimas que lhe corriam pela cara, não conseguia falar, e só abanava a cabeça em sinal positivo!

- Lúcia eu não tenho ainda 40 anos. Estou quase, e tu menos três. Ainda temos tempo para criar a nossa família, tu podes ainda ter uns quantos filhos. Já perdemos muito tempo. Não vamos fazer festa, mas vamos aproveitar enquanto aqui está a nossa família, já que os nossos pais não estão mais em idade de enfrentar 40 horas de voo para aqui virem. Nós depois vamos lá vê-los.

Levantou-se, pediu a Lúcia para se levantar também, abraçaram-se muito, ambos com lágrimas nos olhos e um beijo, a sério, selou, o destino deles.


N.- Talvez ainda por lá estejam e, desejamos, felizes.


03/07/22


_


4 comentários:

  1. Caro Francisco. Que bela história, vá escrevendo que eu aqui no nosso Portugal as vou lendo, pois já estou reformado, e não há nada neste mundo como recordar histórias verdadeiras passadas na nossa querida Angola. Abc Jeronimo Carneiro

    ResponderExcluir
  2. E tiveram filhos?
    Adorei a historia

    ResponderExcluir