sexta-feira, 25 de março de 2022

 

Andanças pela Europa - 1

 

Já escrevi que foi uma viagem difícil e extremamente cansativa para os dois velhinhos. Mas ainda deu para guardar alguns momentos, mais ou menos prolongados, que nos encheram de alegria e de gratidão.

Não vou fazer um relato cronográfico – não é um relatório – mas só lembrar e registar (registrar!) alguns casos e/ou encontros especiais. Começo com este, mas tem mais.

Há alguns anos, pelo menos dúzia e meia deles, por razões que devo ao meu amigo Luis Carlos Santos, comecei a interessar-me pelo Prof. Agostinho da Silva, de quem até hoje sou profundo admirador, que me endossou para a Associação Agostinho da Silva, ao cuidado da sua secretária.

Gentilíssima, desde aquele instante foi-me esclarecendo e enviando publicações do tão grande e famoso Professor, e mesmo que só através de e-mails, criámos uma ligação de entendimento que se firmou em amizade.

Essa Senhora veio há uns anos ao Rio de Janeiro, para um colóquio sobre autores portugueses, e tivemos ocasião de nos conhecermos pessoalmente, mesmo num muito curto espaço de tempo, nos intervalos das sessões do colóquio

Mantivemos todos estes anos muita troca de ideias, sempre me tratando com o maior carinho, e só voltamos a ter contato pessoal, este ano de 2022! Era importante não faltar ao convite. E foi.

Entretanto vim a tomar conhecimento que estava casada com um jornalista, grande escritor, que fui conhecendo com a modernidade do whatsapp, e que (há uns três anos) muito amavelmente me enviou uns quantos dos livros que escreveu, de que muito, muito gostei (pelo menos três comentados neste blog em 2019), e que já considerava fundamental ser também um dos amigos a ter que abraçar.

Na ida a Portugal um dos primeiros objetivos era estar com este casal que ainda por cima nos havia já convidado para passar uns dias em sua casa.

É difícil referir o quanto nos soube bem aquele tempo, infelizmente pouco, que passámos (minha mulher e eu, e até o nosso secretário-geral, o filho Luis) naquela casa.

Abraçámo-nos como amigos de sempre, sabendoque a amizade não é obrigada a datas de nascença, mas a postura e pensamento que se alinham e respeitam.

Receberam-nos com uma cordialidade, lhaneza e à vontade, que se a amizade já existia (quase toda via internet!) a verdade é que nos deixou uma saudade imensa e o coração cheio de carinho. Lembro uma frase do grande Solnado quando esteve no Grande Hotel da Huíla, há... muitos anos: “Levo as minhas malas cheias de saudade”!

E não foi só a amizade que se evidenciou: recebi mais uns livros do jornalista, que num deles escreveu uma dedicatória que só consegui entender depois que li o livro “Azimute de Marcha”, escrito ainda em Moçambique em 1973 (2ª edição em 1988). Diz a dedicatória; “Para ... ler devagar   e recordar   a terra onde aprendemos a filtrar o sol    quando o negro negro brilha    e o futuro já foi.”

Assim que cheguei a casa comecei a lê-lo. Não consegui. Cheguei muito cansado, a cabeça esgotada e nem devagar estava em condições de captar o que o livro nos queria transmitir, quase sem alcançar também a própria profundidade da dedicatória. Tive que esperar alguns dias.

E deparei-me então com um livro de poemas. Não poemas tipo Fernando Pessoa ou Carlos Drummond de Andrade, os dois grandes poetas da nossa língua, mas gritos de alma de quem estava a viver o terror de uma guerra de horrores sem nada poder fazer. Só assistir.

Tinha que ler devagar. Muito devagar. Reler. Procurar sentir em cada palavra uma alma em gritos de desespero quando se vê rodeada por uma loucura insensata, despropositada, bruta, e até por vezes covarde.

Um dos livros de maior profundidade que li em toda a minha vida.

Um livro que fere pela profundidade e frieza daqueles gritos.

 

Não conhecia este poeta. Só o escritor.

Se entre nós já existia uma amizade e um respeito mútuo, passei a conhecer um poeta ainda hoje ferido pelo que viveu, e que teve a gentileza de ser, aliás ser o casal, duma amabilidade e carinho para conosco que jamais poderei esquecer.

Moram numa área que dantes era considerada terra de saloios, hoje cheia de belas moradias e até prédios – como aliás por toda a parte – área que eu conheci bem porque ali ao lado o meu avô materno teve um casal. (Tinha gasto o muito dinheiro que ganhara na vida, comprara um pouco de terra junto a uma parte de uma jovem “saloia”, mais nova do que ele uns trinta e tantos anos, e ali viveu os últimos anos da sua vida.)
Região bonita, plana, saudável, tranquila, uma dúzia de kms a norte da Ericeira. Barril. A 1.000 metros dali está a Assenta onde o meu avô morou, e quis lá ir ver. Já lá não ia há mais de 60 anos!!! Era uma povoação rural, hoje cheia de belas casas, ruas comerciais, prédios, etc.

Ali a nossa hospedeira quis apresentar-me uma pessoa que possivelmente teria algum conhecimento desse avô. Assim que me apresentou ele perguntou em que dia e ano eu tinha nascido e uns segundos após diz-me: numa segunda-feira!

E foi mostrar-me onde tinha sido a casa do avô, que entretanto demoliram e tem hoje uma bela “maison”.

No caminho, sem que alguém lhe pedisse, com voz baixa, pausada, sentida, foi recitando um poema que me deixou comovido.

Um homem de idade, aí meio século, modesto, modestíssimo, humilde, que me levou a África onde encontrei muitos homens, sobretudo de idade mais avançada, homens simples, humildes, que nos deixaram aquela terra penetrar fundo nas nossas almas.

Um homem de vida muito modesta e de alma muito grande, que teve depois o cuidado de passar a papel o poema que recitou e mo mandar.

Uma beleza.

Obrigado meu amigo José Ferreira. Jamais o esquecerei.

Toda esta extraordinária vivência ficámos devendo aos nossos anfitriões, Helena Briosa e Mota, especialista em Agostinho da Silva e ao muito carinho que demonstrou e ao GRANDE poeta Ricardo de Saavedra, nascido no Norte de Portugal, mas africano de alta vivência e muito sofrer, com quem teríamos podido conversar dias e dias sem fim, a quem seria ofensa dizer-lhes “Obrigado”. É pouco demais.

 

Importante:

Muito perto destes amigos vive um “jovem”, já perto da minha idade, com a saúde abalada, que foi meu colega de trabalho entre os anos 65 a 69.

Consegui encontrá-lo e passarmos uns curtos, curtíssimos, momentos juntos.

Um rápido recordar desse tempo, a forma como sempre nos entendemos tão bem, uma rápida ideia do que cada um passou pós Angola, e a certeza de que o respeito mútuo e a amizade que criámos nesse ido tempo, continuam a dar-nos a certeza de que tudo se transformou em amizade, mesmo tendo estado mais de meio século sem nos vermos.

Foi gratificante. No abraço de despedida ambos saímos com os olhos marejados.

Como é bom ter amigos e mantê-los, mesmo longe, sem nos vermos, por tantos anos.

Saúde, amigo Guilherme Valadão. Um outro dia nos encontraremos, com mais vagar, nem que seja para “jogar conversa fora”, mas continuarmos a ter a certeza que só na amizade existe a paz.

Obrigado pelos momentos que me ofereceu.

 

24/03/22

 

 

4 comentários:

  1. Queria agradecer muitop desenho que o tio fez da minha Mãe. Ficom muito reconhecido. Tenho pena de não nos termos encontrado na visita a Portugal. Um abraço muito amigo e até brevem, sDq Miguel

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  2. A ver se é desta que consigo... porque fazer qualquer comentário a um escrito deste teor, não é fácil. Nada fácil!
    O Francisco sabe, como ninguém, cultuar as amizades. E cada um de nós que lhe cai no coração é, para todo o sempre, AMIGO. E assim tem sido. Ora os Amigos -- e para mais aqueles com os quais temos «afinidades electivas» -- quando estão juntos, iluminam-se. Assim foi connosco. Ter o privilégio de vos ter em nossa companhia, mais que gosto, foi daqueles prazeres que se guardam para a vida e se acarinham como memória preciosa.
    Aguardo com impaciência o dia em que nos possamos rever. Quando e onde quer que seja. Entretando, por aqui, e graças aos luxos das tecnologias, vamos continuar a fazer-nos presentes.
    Obrigada, Francisco, grata, querida Gabriela, gratíssima, Luís, por serem pessoas TÃO bonitas! (E, claro, por terem abdicado da vossa tranquilidade e descanso em família para nos darem o prazer de estarmos juntos. ) Estamos convosco. No coração.

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  3. A ver se é desta que consigo. Porque responder a um escrito deste teor não é fácil...
    O Francisco sabe, como poucos, cultuar as amizades. E quando elege alguém como seu Amigo, fá-lo sentir-se verdadeiramente "nas alturas". Quanto a nós, sentimo-nos verdadeiramente privilegiados por o Francisco em nós ver o que de si em nós se reflecte... Coisa de gente «grande» . E quem sai aos seus...
    Queridos Amigos, a vossa visita foi daqueles prazeres que se guardam durante a vida! Gratos, infinitamente, estamos nós por nos terem concedido, na correria da viagem, tempo para podermos ir além das conversas "internéticas". Que, sendo um luxo de recurso que nos é oferecido, esperamos continuar a usufruir. Até... sempre. Nesta ou noutra vida, estaremos juntos.
    Porque as «afinidades electivas», essas encontram-se sempre!
    Grande, grato abraço.

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    1. Obrigado, sempre, Helena e Ricardo.
      Também gostei do abraço do "Poeta da Assenta". Que me pede o envie ao «neto do Senhor Frick».

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