O DNA
Desde
muito jovem Gil se interessava por “brincar” de químico. O seu pai, engenheiro químico
conceituado, que falecera quando ele tinha só oito anos, um dia deu-lhe de
presente uma caixa, cheia de tubos de ensaio, placas e alguns pós e reagentes
inofensivos para que uma criança pudesse começar a brincar de “analista”!
Dois anos
depois, a família, agora só a mãe, Gil com dez e uma irmã de oito anos,
Manuela, tinha suficientes recursos, mas com a falta do dono da casa, mudou-se
para um andar mais simples, em Lisboa, onde nunca faltou, pelo menos, uma
empregada, que pudesse fazer quase tudo.
Fizeram
saber pelas terras das suas origens, na Beira Alta, que precisavam de empregada
e não tardou a que se apresentasse uma jovem, simpática, filha de gente
humilde, a Conceição, nos seus saudáveis e rijos vinte anos.
Gil
entrara no liceu, aluno responsável, sempre interessado em seguir as pisadas do
pai, crescia em “físico e sabedoria”, pesquisava cada vez mais o mundo quase
ilimitado das químicas, fazia experiências na cozinha de casa, sem descuidar de
exercícios físicos que lhe davam saúde, como futebol e outros jogos em que
tinha sempre lugar garantido, até porque tudo levava a sério..
Ao fim de
alguns anos, poucos, a mãe da família, vendo o bom comportamento, simplicidade
e bons modos da empregada, decidiu, de acordo com os filhos, que não estava
cero que ela não compartilhasse com eles as refeições, à mesa. De entrada
Conceição sentiu-se constrangida, mas também não tardou a sentir-se integrada
naquela família.
Gil foi
crescendo. Aos dezesseis, um rapagão, boa pinta, pleno inverno, frio, acabou
cansado e suado de um jogo duro e, como sempre voltou a pé para casa. Apanha
uma grande chuvada, entrou em casa tiritando de frio e com o nariz a mostrar
que, no mínimo se teria constipado.
Jantou
bem, agasalhou-se e foi direto para a cama. De manhã estava com um pouco de
febre, o tempo não melhorara e deixou-se ficar em casa. Tomou um qualquer
analgésico que lhe deu para disfarçar a febre, mas quando chegou ao fim do dia
parecia que a constipação se transformara numa gripe e forte. A febre subiu bem
e dispôs-se a no dia seguinte ir ao hospital.
A
Conceição atenta ao estado do “menino”, levava-lhe ao quarto um chá quente, com
mel, obrigava-o a tirar a temperatura, e via-se que estava preocupada, assim
com todos naquela casa.
A meio da
noite, já todos a dormir, levantou-se para ver como estava o doentinho. Muito
quente.
Conceição
tinha visto um filme em que um cowboy chega a uma propriedade lá nos cafundós do
Far-Oeste americano, cheio de febre, quase a cair do cavalo, e deram-lhe
guarida. Durante a noite, a filha dos fazendeiros “apiedou-se” do doente e para
o “ajudar” meteu-se na cama com ele para o aquecer. De manhã o cowboy estava quase
novo! E o namoro com a bonitona (creio que era a famosa CC) começou aí.
Conceição
assegurou-se que a Manuela e mãe estavam bem nos braços de Morfeu, despiu o
roupão e só de camisola (a camisa de noite) de tecido fino meteu-se na cama do gripado
para o aquecer.
Gil
acordou, sentiu aquele corpo quente a abraçá-lo e começou logo a perceber que
algo de novo estava acontecendo com ele! Ambos foram se ajeitando até que o, há
meia hora, impensável, acontecesse, sem que algum dissesse uma única palavra! E
assim estiveram até de madrugada, quando Conceição se retirou, meio
envergonhada, antes que a “patroa’ e a filha acordassem. Antes de se afastar um
longo beijo selou aquele encontro.
Gil ficou
na cama, adormeceu sorrindo e só acordou por volta do meio-dia... sem febre.
Passou a noite a sonhar com algo que lhe parecia o paraíso de Alá e esqueceu
até a química dos tubos de ensaio. A química com que agora se estreava era muito
mais interessante do que reagentes, ácidos ou alcalinos, e ficou a pensar que
aquele “laboratório” era mais do que desejável. Tudo o que se passara e mais
aquele beijo deixou-os ligados, mas ultrapassar essa situação era difícil para
ambos.
Nesse dia,
à cautela, Gil ainda não saiu, deixou-se andar pela casa sempre com um olho
revirado para o lado mais interessante. Conceição um pouco cabisbaixa não
queria encará-lo. Tinha sido loucura. Mas loucura que desejava também repetir.
Gil
deitou-se cedo. Pediu à Conceição que, quando pudesse lhe levasse um chá bem
quente.
O chá só
chegou quase à meia noite. Ninguém o bebeu. Havia outros ensaios daquela
“química” da véspera que tinham que se aprimorar. E foram.
Não podia
ser todos os dias, mas a festa foi-se prolongando, com intervalos mais ou menos
regulares, durante uns quatro anos. Sem o dizerem, sabiam que se amavam.
Conceição,
apesar de mandar algum dinheiro aos pais, a verdade é que tantos anos sem
gastar, tinha conseguido juntar um razoável pecúlio. Foi visitar os pais lá à terra
onde encontrou um antigo colega da escola primária, Sebastião, agora
responsável pela manutenção do equipamento duma grande adega. Quando do
encontrou, viu-se que o seu coração havia disparado! Ela percebeu, e sentiu ali
um futuro sossegado. Sebastião partiu à procura e encontrou trabalho, com boa
remuneração, em Lisboa. Não tardou o namoro e logo casaram.
Gil já na
Universidade, engenharia, ofereceu-se para padrinho do casamento. Ele e a irmã bancaram
o custo da modesta festa. Dez anos de uma pessoa dedicada (e como!), quase da
família, merecia.
Conceição,
vestida de noiva, ia bonita, elegante. Uma bela noiva.
Pouco
antes de cerimónia, um ou dois dias... a comovente e enérgica despedida do
“padrinho e afilhada”, com a certeza que novos encontros nunca mais iam
acontecer. Gil jurou que jamais a perturbaria.
Cerca de
um ano passado Conceição foi visitar a família amiga, e mostrar o filhote acabado
de nascer! Mais uma vez o quase senhor engenheiro se ofereceu para apadrinhar a
criança. E prometeu que o havia de amparar até ele entrar numa universidade, o
que foi grande alegria para todos.
Pretendentes
a ocupar o lado vago da cama do engenheiro, surgiam com frequência, mas só
algumas experimentavam aquele colchão, porque a maioria delas não passava dos
primeiros testes de conversa.
Gil
mantinha-se solteiro, estava bem assim, apesar de não esquecer a “sua”
Conceição, foi sendo promovido até alcançar o lugar de engenheiro chefe.
Não
esquecia o afilhado. Ia muitas vezes buscá-lo a casa dos pais, passeava com ele,
mostrava-lhe a fábrica, o que encantava o pequeno, e incutindo naquela jovem
cabecinha que a engenharia química era um bom projeto de vida.
Tal como
seu pai lhe tinha feito, logo que viu que podiam ter interesse, ia dando uns
brinquedos temáticos, e brincavam os dois juntos.
Era
grande a afeição; o pequeno João, foi crescendo, o padrinho, como afirmara,
subsidiava todas as despesas de estudos, até que viu o garoto entrar também na
universidade.
Tão
juntos andaram sempre desde que ele era bem pequenino que as pessoas pensavam
que seria seu sobrinho ou até filho. Havia até quem os achasse parecidos!
João,
engenheiro, foi trabalhar na mesma empresa que o padrinho. Um dia Gil
convenceu-o de que era bom fazer um check-up de saúde. Melhor prevenir do que remediar.
Quando foram fazer as análises, sem que o afilhado notasse, mandou também fazer
o exame de DNA dos dois.
Poucos
dias depois vem o resultado. De saúde o jovem engenheiro estava em perfeitas
condições. Jovem, forte, boa presença, perfeito.
E o DNA?
Gil desconfiava do resultado! E ali estava. João era seu filho! Agora, o que
fazer? NADA.
Ficou
chocado. Não queria que tivesse sido assim. Não podia dizer a ninguém, nem aos
seus, nem aos pais do João. Ia estragar a felicidade em que vivia o casal.
Muito menos ao seu “filho”.
Gil, com
cinquenta anos, principal sócio da empresa onde começara a sua vida
profissional, já tinha como coadjutor o novo engenheiro, e carregava na
consciência o peso de que não sabia como livrar-se.
Um dia
uma notícia triste: Sebastião, nas suas deslocações pelo interior, dando
assistência técnica a diversas empresas, sofreu um terrível acidente. Um
caminhão descontrolado, numa curva, embateu violentamente de frente no seu
carro. Sebastião teve morte quase imediata.
Gil e a
família fizeram o que foi possível para ampararem a Conceição e o filho. Mas na
cabeça de Gil um novo tormento ocupava. Visitava assiduamente a viúva! Deixou
passar algum tempo e quando viu que não era mal recebida, fez a proposta:
- Conceição. Nós nos amámos. Na altura eu não
tinha meios de criar uma família e creio que seria um choque social, tanto para
o meu quanto para o teu lado. Mas eu jamais te esqueci. Fiquei feliz quando
encontraste um homem bom que te deu uma família. Agora, que somos ambos livres
venho propor-te algo muito sério. Quero casar contigo. Não me preocupa que haja
uma diferença de idade entre nós. Estamos suficientemente maduros para podermos
tomar uma decisão sem nos precipitarmos. Nunca casei, apesar de não faltarem
pretendentes. Mas era em ti que eu pensava. E se com saúde teremos ainda muito
tempo pela frente.
Conceição ficou como que paralisada. A verdade é
que ela também não o esquecera apesar de ter sido sempre esposa e mãe exemplar.
Pediu um tempo para pensar. E teria que ouvir o filho.
Quando, por fim se decidiu, e disse o tão esperado
“sim”, Gil chamou o afilhado, para na sua frente “oficializar” o pedido de
casamento. João disse à mãe que o padrinho toda a vida se comportara como pai
dele, que achava bem, mas que era assunto que só a ela cabia decidir.
Reunidos, havia agora que abrir o jogo todo!
E contou
o conhecimento que tivera com o resultado do exame de sangue:
- João,
tenho pela tua mãe a maior consideração e saudade. Guardei, até hoje, por
muitos anos o que só agora vos posso dizer. Nunca o disse a ninguém. Nem a ela.
O exame de DNA, que sem tu saberes fizemos os dois, quando te disse que devias
fazer um check-up, mostrou que tu eras meu filho. Não penses, NUNCA, mal da tua
mãe. Ela, na sua modéstia, foi sempre uma senhora. Depois que casou nunca lhe
faltei ao respeito. Nem antes. Só que quando ela trabalhou em minha casa, ambos
jovens... aconteceu., e sei que nos amávamos. Por isso nunca casei. Apadrinhei,
por retribuição do tanto tempo que ela esteve conosco, o seu casamento e quando
nasceste, sem suspeitar de nada, também quis ser teu padrinho porque sabia que
teria condições de te dar toda a educação possível.
Tu
Conceição, talvez suspeitasses, mas sempre te portaste com grande dignidade.
Grande senhora.
Ela devia
saber, ou desconfiar, sem nunca o ter denunciado, quem era o pai daquele filho
querido.
- Peço-vos
que me perdoeis se vos magoo. Talvez tivesse sido preferível que este segredo
fosse comigo para a terra. Ao mesmo tempo também pensei que a verdade, mesmo
quando dói deve ser posta na mesa.
Mas agora
que a tua mãe aceitou em se unir a mim, a nossa família está completa. Recordo,
com saudade e amizade o Sebastião, que sempre muito considerei. Tenho a certeza
que ele teve uma vida de família tranquila. Mas a vida continua, e o pedido que
fiz não envolve a mínima hipótese desrespeito.
Sei que
com tudo o que se tem passado podemos ainda ser felizes, mais agora com a
vantagem dos netos, os teus novos filhos, João, de quem tanto gosto. Vou poder
sentar os netos no colo e acarinhá-los sem vergonha.
Andei tão
preocupado que cheguei um dia a pensar ir embora. Não sabia para onde. Desaparecer.
O peso que carreguei sozinho tantos anos foi difícil muito pesado.
João ouviu tudo com imenso espanto. Não sabia que
mais dizer, mas atreveu-se a fazer uma pergunta:
- Se eu não
sou filho do Sebastião, deveria trocar de nome!?
- Não João. Deixa o teu pai descansar em paz.
Não vejo vantagem nenhuma nisso. Podes, se assim o entenderes acrescentar o meu
sobrenome aos teus filhos. Um dia, talvez, te perguntem porquê. Talvez.
A seguir disse que, logo que casassem, ia fazer um
a dois meses de férias. Viajar, para lugares tranquilos, estarem juntos, muito
juntos, depois de mais trinta anos separados. No regresso iriam curtir e ajudar
a cuidar dos netos e, se Deus quiser, esperar bisnetos! João sabia como assumir
o trabalho e a administração da empresa.
E mais,
já tinha feito, há um bom tempo, em cartório, a transmissão das suas cotas para
o seu filho João. Agora só faltava reconhecê-lo igualmente como filho e
herdeiro.
No
casamento, que não demorou, pouca gente presente. A irmã Manuela, segredou ao
ouvido do irmão:
- Eu
sempre desconfiei que entre vós havia algo muito sério! Era difícil disfarçar!
Penso até que a nossa mãe também o deve ter percebido, mas como a Conceição
fazia parte da família, nunca disse uma só palavra.
Quem
espera sempre alcança!
22/06/21