terça-feira, 3 de novembro de 2020

 

CAMÕES

Muita História e Poucos Ossos

 
Há uns tantos anos, nem sei já a que propósito, um grande amigo, professor de jornalismo, disse-me: “Francisco escreva; sem medo. Depois de escrito vira verdade e serve como referência!” Este texto é disto um exemplo perfeito.
Todos sabemos que a língua portuguesa é talvez a mais rica de todo o mundo, com mais de 250 milhões de falantes. Também sabemos que os portugueses “levaram novos mundos ao mundo”, enriqueceram a alimentação de milhões, levando novas plantas de um continente para outro. Levaram ainda uma base que serviu a muitos povos, a cultura ocidental judaico-cristã.
Têm uma das melhores culinárias do planeta, um pão de chorar por mais e, finalmente, já não têm vinho feito com tudo menos uvas.
E que mais?
Um imenso desprezo pela história, que se pode confirmar em inúmeras situações, desde o abandono de obras magníficas, como o Convento de Cristo em Tomar, o Convento de Mafra, o Mosteiro da Batalha, o Mosteiro dos Jerónimos, a Sé Patriarcal de Lisboa e até a Torre de Belém. O Convento dos Jerónimos na Serra de Sintra. E a Igreja/Convento de Sant’Ana, em Lisboa. Estiveram séculos abandonados, muito danificados com o Terremoto de 1755, e foi preciso chegar um príncipe de alta estirpe, educado, culto, para, muitas vezes com dinheiro do seu bolso se iniciar a recuperação dessas obras. Dom Fernando, príncipe de Saxe-Coburgo, rei entre 1837 e 1853, enquanto marido de D. Maria II (rei depois que nasceu o primeiro filho), sempre fez questão de visitar e conhecer Portugal, país que adotou, e foi-se interessando pelo restauro e salvaguarda de muitos monumentos, especialmente os atrás mencionados.
Na serra de Sintra, sobre as ruinas de um Convento dos Jerónimos, totalmente destruído pelo terremoto, fez construir o magnífico Palácio da Pena, interrompeu o desmonte do Mosteiro da Batalha que o governo tinha vendido a um construtor que lhe estava a retirar pedras vender a particulares, derrubou uma série de construções que escondiam o Convento de Cristo, incentivou o restauro dos Jerónimos e da Sé, e não parou aí a sua vontade de, se possível, re-engrandecer Portugal.
Ainda hoje se vê o quanto Portugal escarnece a sua história. Até o túmulo do GRANDE Afonso de Albuquerque um dos maiores da história de Portugal, sepultado em 1566 na Igreja da Graça em Lisboa desapareceu com o terremoto que destruiu a Igreja, mas não parece ter havido preocupação em encontrá-lo! Reconstruiu-se a igreja em estilo barroco e... quem estava enterrado lá ficou. Mas alguém, ao menos, se lembrou de lá colocar uma placa? Não. Para quê?
Ao viajar pelos EUA, estamos sempre, sempre a ver belas bandeiras, Stars and Stripes, orgulhosamente flamejando em todo o lugar, desde postos de combustíveis, supermercados, etc. Em todo o canto desse país qualquer detalhe da sua história é preservado, enaltecido. Erigem-se estátuas a presidentes, a nativos e pistoleiros, industriais, bandidos e colonizadores do faroeste, descobridores e navegadores, ingleses que lutaram contra a Independência, a animais que por qualquer razão fizeram parte da vida daquele povo que assim, e apesar de toda a crítica que se lhe pode fazer, tem em qualquer lugar uma “chamada” ao esforço e luta que fez para se ter tornado o país mais avançado do mundo... até hoje!
Quantas bandeiras se vêm quanto se atravessa Portugal de Norte a Sul? Onde estão estátuas ou monumentos, por exemplo a Mouzinho de Albuquerque? Há uma, sim, no museu em Maputo! E a de Salazar? Não foi no tempo dele que Portugal cresceu em estabilidade e economia? Não faz parte da história do país? Por que o governo até proíbe que se lhe abra um museu na sua terra natal? Inveja? Medo que ele ressuscite e meta todos na PIDE? Covardes.
Em 1910, os carbonários, leia-se comunas, que implantaram a república, já cuspiram na História ao criarem uma bandeira nova, que simbolizava a esquerda. Aliás em Portugal a história da bandeira é estranha porque mudou tanta vez! Rei novo, nova bandeira, mais coroa, menos coroa, até que chegou a esfera armilar, retirada em pouco tempo ainda na monarquia e reintroduzida pela república que hoje tanto lamenta e critica o tempo colonial!
Eusébio, grande futebolista tem uma estátua no estádio do Benfica e duas nos EUA, Cristiano Ronaldo tem na Ilha da Madeira e o grande Peyroteo, por que não tem também uma estátua? É evidente que hoje o futebol manda mais do que a política e a história. Onde está o descobridor da Terra Nova, Gaspar Côrte Real? Amável, Portugal ofereceu uma estátua dele que está... lá em Newfoundland. Mais um português esquecido. E o famoso, Europa fora, Magriço? Até Camões a ele se refere.
Chegamos agora, e uma vez mais, ao grande Camões. Sobre o grande ÉPICO, sobretudo sobre o seu túmulo no Mosteiro dos Jerónimos já escrevi o suficiente há 5 anos.
(https://fgamorim.blogspot.com/search?q=jer%C3%B3nimos)
Mas sobre talvez o maior nome de todos os portugueses, nome que correu, e corre o mundo, muito pouco se sabe. Quase nada. Terá nascido em Lisboa calcula-se que em 1524. Faleceu em 1579 ou 1580. Nem se sabe qual olho perdeu, numa batalha naval no Estreito de Gibraltar, se é que isso não é lenda e não tenha perdido nenhum, porque só há “supostos” retratos, que o mostram com o olho esquerdo fechado. Na segunda edição de Os Lusíadas” aparece um “retrato” com o olho direito cego. Na terceira, era o esquerdo... e assim lhe foram tapando ora um ora outro! Brigou com um servidor do Paço a quem feriu e foi preso, obrigado depois a ir servir “além-mar”. Dizem uns biógrafos que partiu em 1547, outros 1549 e existirá um documento que refere 1553.
Terá regressado a Lisboa em 1569 ou 1570, depois de passar um ano (ou mais?) na Ilha de Moçambique, na maior pobreza (https://fgamorim.blogspot.com/search?q=Cam%C3%B5es). Duvida-se que tenha estado em Macau, na celebrada Gruta de Camões.
Em 1572 (?) lê o seu poema ao rei D. Sebastião que concede uma pequena pensão a "Luís de Camões, cavaleiro fidalgo de minha Casa", e consegue publicar “Os Lusíadas” que fizeram logo enorme sucesso, não só em Portugal como através de toda a Europa. Os jesuítas que pretendiam protegê-lo alteram o seu famoso poema logo na segunda e terceira edições.
Mas vive os seus últimos anos num quarto, pobre, miserável, com o seu escravo Jau (?) que ninguém sabe como apareceu e desapareceu de Lisboa, está muito doente em 1579, talvez com a peste, e morre, dizem, no dia 10 Junho de 1579... ou 1580. Certamente também desgostoso com a morte de D. Sebastião.
Houve quem contribuísse para comprar um lençol em que o embrulharam para ser sepultado. Um dos biógrafos, Manuel de Faria e Sousa, talez o maior biógrafo do poeta, escreveu 40 anos após a morte do poeta,  que foi enterrado, numa campa rasa na Igreja de Santa Ana, ou no cemitério dos pobres do mesmo hospital, conforme Teófilo Braga (de quem Camilo C. Branco não gostava, pelas suas imprecisões).
A verdade parece resumir-se a pouco mais do que a saber-se da sua estadia em Goa, por ter sido preso pela famigerada Inquisição, data da saída de Portugal, estadia na Ilha de Moçambique e que foi ele mesmo quem escreveu a maior maravilha da língua portuguesa.
Em 1613, Pedro de Mariz afirma que, em 1595 deu muito trabalho a D. Gonçalo Coutinho atinar com o lugar da sua sepultura, para “honrar o seu amigo” mandando cobrir a sepultura com uma laje.  
Quinze (ou 16 ?) anos passados D. Gonçalo decidiu tomar essa atitude. Este que vivia longe de Lisboa foi à capital à procura da sepultura do amigo. Ninguém sabia onde estava. Procurou em várias igrejas e por fim ele mesmo decidiu que devia estar na Igreja de Santa Ana, porque Camões vivia ali muito perto. Mas as freirinhas de Santa Ana se tinham registo de quem ali fora sepultado... não existia já, nem elas jamais tinham ouvido falar em Camões ou nos Lusíadas. A peste lhes entregava a toda a hora cadáveres que iam colocando onde era possível.
D. Gonçalo acabou definindo, ou escolhendo, uma sepultura, mandando sobre ela colocar uma laje rasa ao nível do chão e comprando essa área para que sepultassem aí mais ninguém. Manuel de Faria e Sousa, em 1639 escreve que  Don Gonçalo le passo casi la mitad de la Iglesia, (à procura dos ossos do amigo) poniendole uma losa; Manuel Severim de Faria, em 1624, diz que mandou cobrir o lugar da sepultura com uma campa de mármore. Estevão Lopes que imprimiu várias Rimas inéditas e ainda foi autorizado a imprimir os Lusíadas, confirma que este fidalgo, D. Gonçalo, lhe deu sepultura honrada  sem que, aparentemente, a laje tivesse qualquer inscrição. Foi Miguel de Leitão de Andrade que mandou fabricar uma “tarja’, em azulejo, colocada acima da laje com o seguinte epitáfio:
                                    “O grão Camões aqui jaz
                                      Em pouca terra enterrado”
E nas ilhargas escreveu ainda
        Miguel Leitão de Andrade                               Ordinarii sub censura
        Gratititudinis ergo posuit                                Premissu et d. patronorum
Só isto que ficou acima escrito (e podem dar-se todas as referências onde se encontram estas informações) já mostra que nunca se soube onde efetivamente estavam os ossos do grande Camões.
Sem um registo da Igreja, sem que alguma freirinha tivesse alguma vez ouvido falar no poeta e o chão da igreja cheio de corpos... como era possível saber de quem eram esses ossos. A menos que D. Gonçalo tenha achado um crâneo com um furo por onde terá entrado a flecha que o  cegou! Se isto tivesse acontecido, D. Gonçalo não se limitaria a mandar colocar uma laje, simples, sem qualquer inscrição, mas teria afirmado ter visto as ossadas..
Quer dizer que em 1595 descansava Camões há já 15 anos em lugar ignoto sem ser perturbado nem achado.
Frei Fernando da Soledade, um século mais tarde, talvez em 1705, Confessor das Religiosas do Real Convento de Santa Anna de Lisboa, afirma o que já se tinha “inventado” antes: “À entrada da porta principal de Sant’Ana, à mão esquerda, está a sepultura do famoso poeta Luiz de Camões, a qual mandou fazer D. Gonçalo Coutinho”.
Em 1755 parte da Igreja e Convento de Santa Ana ruíram. Ninguém quis saber disso. O Marquês de Pombal estava ocupado em continuar a dominar o rei D. José, a enterrar milhares de mortos, e nem pensou em Camões, nem em Afonso de Albuquerque que ficaram por baixo das ruinas das igrejas.
Só fizeram alguma reconstrução em 1778, em 1887 informa-se o público que iam começar as obras no convento para ser entregue à 3ª Companhia de Infantaria da Guarda Municipal, que para lá não foi. Um ano depois o mesmo jornal diz que parte do convento cai ser entregue aos jesuítas! Em 1897 é tudo demolido e aí se construiu o Real Instituto Bacteriológico, inaugurado em 1899..
Aqui começa, aliás continua a vergonha: em 1880 mandam-se buscar as ossadas de Camões à Igreja de Santana para darem solenidade ao “novo” Mosteiro dos Jerónimos. Só se sabia que estariam à entrada da porta principal, à mão esquerda... Esqueceram-se de ler o que, um pouco mais tarde o próprio Frei Fernando da Soledade escreveu: “Hoje existem memórias dentro da clausura, em o coro inferior, o qual há poucos anos se fez, tapando-se para este fim a porta principal, e da banda da igreja a parte d’elle, que ficava debaixo do coro superior!”  E com estas obras aumentou-se  o nível do piso, mais de meio metro acima do original!
A porta entretanto fora tapada e mudada para outro local! Quem lá foi, à esquerda da entrada catou uma boa “quantidade de ossos”, talvez para que alguém escolhesse os melhores para compor um esqueleto, foram três ou quatro tíbias, vários fémures, pélvis de mulheres e de homens; embrulhou-se tudo, fez-se uma procissão que foi acompanhada pelo rei D. Luis e sua esposa (ciumenta e arrogante que criou um péssimo ambiente com o sogro, o grande Senhor Dom Fernando) e uma imensidão de gente. Cobriram o caixote com flores (não era um caixão, porque os ossos todos que mandaram não cabia num caixão comum) e plantou-se aquela farsa com o nome de Camões.
Houve grandes reclamações sobre a autenticidade desses ossos. Foi nomeada uma comissão para ir procurar os “autênticos” ossos de Camões, composta de pessoas de muito crédito sócios da Academia Real de Ciências, além do capelão das freiras do mesmo convento, frei Sebastião Philippes d’Almeida Viegas, que por fim escreveu um livro (a que infelizmente ainda não tive acesso) mas que representou ao ministro do reino, dizendo que aqueles NÃO são os ossos de Camões.
Dois anos depois, Filipe I/II, odiado pelo povo português porque tinha usurpado a coroa de Portugal, decide fazer um “bonito” na esperança de acabar com o sebastianismo: nesse ano chega ao porto de Faro, no Algarve, um barco que trazia um corpo que se alegava ser do rei Dom Sebastião! O rei espanhol mandou logo que fosse trasladado para o Mosteiro dos Jerónimos, tendo ele mesmo se incorporado à procissão dessa nova farsa, copiando o que havia sido feito com Camões. Mais um estranho escondido em túmulo real.
Não esqueçamos também o túmulo de Vasco da Gama. Talvez nem qualquer osso dele lá repouse, apesar de se ter feito outra “farra” para os levarem para os Jerónimos, no mesmo ano de 1880. Mas quatro anos depois um jornal afirma que finalmente foram achados os verdadeiros ossos de Vasco da Gama. O dr. Augusto Carlos Teixeira de Aragão, nomeado Comissário Régio pela Academia de Ciências, de forma a proceder à preparação e realização do programa de trasladação dos restos mortais de Vasco da Gama, da Igreja do Convento da Nossa Senhora das Relíquias da Vidigueira, declarou que os ossos levados para os Jerónimos não eram os de Vasco da Gama! Mas ainda lá estão.
O visitante do magnífico Mosteiro dos Jerónimos pode extasiar-se frente à magnificência dos túmulos, belíssimas obras de arte, mas não esqueça de fazer uma pequena oração pelas almas daqueles que lá não estão!
Conclusão: Tudo quanto se sabe sobre a pseudo-sepultura de Camões, saiu da “descoberta” de D. Gonçalo! E virou referência quase indiscutível.
Para terminar, talvez hoje Camões escrevesse assim:
                                       
As armas e os varões achincalhados
Que, na Ocidental praia Lusitana,
Por mares por outros navegados,
Nada sabem da Igreja de Sant’Ana,
A perigos e guerras estão fadados
Mais do que promete a força humana,
E com gente remota abandalharam
O Velho Reino, que tanto desprezaram;
 
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras maravilhosas
De África e da Ásia que acabaram devastando;
E àqueles que por obras vergonhosas
Não vão da lei da Morte se libertando:
Gritando espalharei por toda a parte,
Que com eles só no bacamarte !
 
Nota: Todo este trabalho sobre as ossadas de Camões e Vasco da Gama, foram primeiro tiradas do livro “Os Lusíadas” – Edição crítica... de Francisco Gomes de Amorim. 1889, um trabalho minucioso, rigoroso, deste meu bisavô. O pouco que acrescentei foi de inúmeras pesquisas em Enciclopédias, Dicionários de Literatura, etc.
Francisco Gomes de Amorim (1827-1891), que foi para o Brasil com 10 anos, mal sabendo ler, num instante dedicou-se à leitura e aprendeu com uma rapidez impressionante. Diz ele na Introdução deste livro:
“Eu nunca tinha lido se não dois livros (nessa altura teria 11 ou 12 anos), quando meu irmão me emprestou... os Lusíadas de Camões. A revolução produzida no meu espírito por essa leitura foi tal que, antes de a ter concluído passei à porta de um livreiro e pedi a quem ia comigo que me emprestasse dinheiro para comprar um exemplar... que o meu irmão teve que pagar! Em poucos dias eu sabia Os Lusíadas todos de cór, e com o meu irmão passávamos horas declamando o poema inteiro, porque o meu irmão o tinha já também decorado.
Mais tarde, cansado da vida de empregado de comércio interna-se, sozinho na Amazônia, com 13 anos, onde raros eram os que sabiam ler ou que tivessem livros. “Os Lusíadas” foram a sua leitura, diária, durante alguns anos, até ao dia em que encontrou dentro de uma oca, onde ninguém sabia ler, dentro de um cesto, o famoso poema “Camões” de Almeida Garrett, que o fez abandonar a floresta e regressar a Portugal.
Nunca largou Camões e reuniu uma importante biblioteca sobre o grande Épico, vindo a encontrar diferenças impensáveis entre as várias edições de “Os Lusíadas”. Resolveu, bem tarde, publicar as suas conclusões, que foram mal recebidas pelos “intelectuais” porque não aceitavam que um escritor, mesmo já consagrado, mas não académico, “se atrevesse” a comentar o obra mestra da língua portuguesas. Os sábios-burros.
Este seu trabalho, em dois volumes é muitíssimo interessante.
Seguem-se imagens da Igreja de Sant’Ana
 
03/11/2020
(440 anos após a morte de Camões, 496 de Vasco da Gama e 515 de Afonso de Albuquerque)  
 
Convento e a porta nova

Igreja e a porta que fecharam

 
Vê-se, por cima da palavra Convento, a porta nova. A que taparam dava para a Calçada de Sant’Ana.
Com o ponto negro quis o autor mostrar onde estiveram os ossos de Camões. Jamais ali!


Da Revista Ocidente, 1899 – Vê-se na primeira imagem a porta que foi fechada, a que ora se chama convento ora igreja, e jamais os restos de Camões estiveram onde aqui se mostra, e o disparate vai até na imagem da janela que daria para o coro, conforme indicado na planta.

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