quinta-feira, 2 de julho de 2020





CONGOS, ex francês e ex belga, o ZAIRE 

Deixemos o Covid a fazer os seus estragos, fechemos um pouco os ouvidos
 à canalha jornalística luso e brasileira e ao vergonhoso STJ,
totalmente empenhados em destruir o Brasil no seu Presidente,
e vamos, sem máscara, dar um giro por África.


Em 1962 ou 3, por sugestão do distribuidor da cerveja Cuca em Cabinda, foi decidido fazer um rápido estudo de mercado para a eventual exportação de cerveja para o Congo, ex-francês, e da decisão de gabinete à ação foi um instante.
A viagem revestiu-se de algumas situações hoje caricatas, mas cansativas. Começa com a saída de Luanda, num vôo da Air Congo, uma subsidiária da Air France, num avião DC-4 quadrimotor. Dois passageiros para embarcarem para Brazzaville. O avião, quase o único ali estacionado em frente ao edifício do aeroporto, horário de saída de acordo com o previsto, tudo aparentemente em ordem, vou aguardar na esplanada, onde havia um pequeno bar. Só outra mesa ocupada, com o outro passageiro. Chegada a hora vêm avisar que o vôo ia sair um pouco atrasado. Uns trinta minutos. Depois destes trinta, mais trinta, e outros trinta, e...
Da esplanada via-se algum movimento em volta do avião. Um ou dois mecânicos e mais uns tripulantes, o que pressupunha problema técnico.
- Afinal o que se passa? Já estamos com três horas de atraso e nada?
- É o motor de arranque que não funciona, mas já estão a terminar.
Mais uma hora.
- Então?
- Quebrou-se a corda.
- Essa agora! Quebrou-se a corda? Qual corda? Não me diga que aquilo é como os motores “outboard” que pegam com uma corda?
- Não sei. Mas foi o que me informaram.
Nessa altura os dois únicos passageiros para aquele vôo, e também únicos clientes no bar naquela esplanada, já conversavam e dividiam cervejas que iam bebendo em conjunto, e quando olham para o avião, vêem, com espanto q.b. um pequeno trator a ser engatado a uma corda, por sua vez enrolada à volta do motor do avião!
- Querem ver que é verdade! Que aquilo pega mesmo como os motores dos barcos!
Azar o nosso, porque o tratorista não era marinheiro, e arrancando de repente, voltou a quebrar a dita corda. Matámos a charada, continuámos esperando, já se fazia quase noite e no aeroporto não havia mais cordas! Foram comprar mais cordas! Decidi intervir.
- Se vocês continuarem a usar o trator de esticão, não há corda que aguente!
Expliquei a complexa tecnologia da corda! Passado um bocado chegou outra corda, e eu gritava do alto da esplanada:
- Cuidado. Devagar. Devagar.
Duvido que tenham ouvido alguma coisa, corri para lá, assumi o controle marítimo e o motor pegou. Repassámos o controle (só havia dois a controlar e já tínhamos sido convenientemente controlados), e levando um monte de vento e poeira no nariz, porque o motor ficou ligado, logo o que ficava do lado da porta do avião, e nos acomodámos.
O vôo fazia escala em Pointe Noire, na costa, um pouco ao norte de Cabinda, onde aí sim, entrou um bom número de passageiros, sem que o motor fosse desligado. Chegámos, só com seis horas de atraso a Brazzaville!
O hotel, reminiscência do savoir vivre francês nos trópicos, era uma delícia. Fora da cidade, no topo de um morro, uma maravilhosa vista sobre o rio Zaire, enorme, larguíssimo, caudaloso, vendo-se em baixo a cidade e na outra margem a capital do ex Congo Belga, Leopoldville, hoje Kinshasa. Quartos amplos, confortáveis, muito bom gosto, bela sala de jantar, larga varanda em toda a frente sobre o rio... Muito bom.
Sair dali só de taxi. A pé até à cidade não era nenhuma viagem, atravessava-se uma parte de estrada sem casas, só mata, depois a área suburbana e finalmente o centro onde habitualmente se encontram, ou encontravam, os lugares de decisão económica, e além disso, África é quente! A nossa pele, segundo os especialistas e nós mesmo constatamos, aguenta mal o calor, pior ainda quando se tem que aparecer vestido minimamente decente para tratar de negócios. Não necessariamente de casaco e gravata, mas pelo menos que não se esteja coberto de poeira e suor!
Nas andanças pela cidade cruzei-me com um angolano, de Benguela, que eu conhecera no meu primeiro ano de Angola. Espanto mútuo, o que faz você aqui, quando chegou, etc. Ele estava ali refugiado. Perseguido pela famigerada PIDE, trabalhava como locutor da Rádio Brazzaville nas suas emissões em língua portuguesa dirigidas aos povos de Angola, mentalizando-os, incitando-os à luta contra o colonialismo. Já não me lembro, nem um pouco, do seu nome. Só tenho idéia que era bem mais velho do que eu, (uns dez ou quinze anos?) baixinho, entristecido por viver longe da terra de que tanto gostava, apesar de não ter, que me lembre, quase cor alguma nas veias. Tinha, sim, amor à terra. Mas...
Ficou entusiasmado com a minha presença e com a idéia de Angola, a sua terra, ter já uma indústria capaz de exportar. Bebemos umas cervejas e pediu-me para me entrevistar lá na Rádio.
- Com uma condição. Nada de políticas.
- Só quero falar da nossa terra, e mostrar aos angolanos que até temos uma companhia que pode exportar cerveja para aqui. Se eu sinto orgulho disso, penso que todos os angolanos gostarão de saber.
Combinámos os tópicos da conversa e no outro dia lá fui. Meia hora de conversa radiodifundida, sobre Angola. Verdade, verdadinha, fiquei com receio de após o meu regresso a Luanda ser chamado à PIDE. Não fui, mas os gajos não devem ter deixado de vasculhar a minha vida!
Perguntei-lhe se correria algum perigo em atravessar o rio e visitar Leopoldville. Eu era português, vivia em Angola, e do Zaire saíam muitos guerrilheiros para ali combaterem. Podia ir descansado.
Dia seguinte, sábado, cauteloso, desconfiado, e, por que não?, receoso, lá fui. Atravessei aquele imenso e caudaloso rio e, uma vez na outra banda achei que a melhor maneira de visitar a cidade seria de taxi. Foi. O motorista era um sujeito novo, simpático pra caramba, muito prestável.
- Onde o senhor quer ir?
- Eu não conheço nada, nada, de Kinshasa. É a primeira vez que aqui venho, estou de passagem em Brazzaville, e vim fazer um pouco de turismo. Você vai ser o meu cicerone. Leva-me onde quiser, demora o tempo que quiser, e vai-me explicando o que achar que vale a pena.
Olhou para mim com ar de espanto e lá vamos nós beirando o rio, acompanhando a corrente. Via-se na outra margem, altaneiro, o hotel onde eu estava hospedado e, agora do nosso lado, numa imensa fortaleza em posição igualmente altaneira, fortemente guardada por soldados, a residência de sua majestade o dono do Zaire, Joseph Kasavubu.
Muito mal dele falou o motorista! Como todos, tinha esperado que a independência trouxesse uma melhoria generalizada para o povo! Coitado.
Seguimos um pouco por fora da cidade, que como qualquer cidade, em qualquer parte do mundo, pouco tem para mostrar! No regresso, numa praceta no meio dum cruzamento de duas ruas, ou avenidas, dois carros chocados e uma meia dúzia de homens discutindo.
Fomo-nos aproximando e já em cima diz-me o eficiente cicerone:
- Isto é normal. Esta gente conduz de qualquer modo e depois de chocarem saem dos carros e esmurram-se. Mas este acidente é melhor! Um dos carros é de um ministro que está apanhando porrada do outro que não quer saber se ele é ministro!
Deixámos a caricata refrega acesa! No meio dum cruzamento um ministro sai do carro, depois de chocar com um cidadão comum, para reclamar sem razão, só porque se investia na dignidade de ministro, e apanha uns chapadões no focinho! Quem dera que essa moda chegue ao Brasil! Ou a Portugal. Vamos em frente. Voltámos ao ponto de partida. Paguei a corrida, e dei uma boa gratificação ao simpático motorista, africano puro, mas gente muito boa. Gente simples.
Faltava ainda meia hora para o ferry sair de volta a Brazza. Numa praceta perto do cais um vigarista sacava dinheiro aos simplórios que se atreviam a apostar adivinhando onde estava estaria uma moeda escondida debaixo de um de três copos invertidos. Conhecem aquele jogo, não é? O famoso jogo da Laranjinha. O sujeito coloca a moeda debaixo de um dos copos, troca a sua posição com bastante velocidade de um lado para o outro, a gente segue com a vista o copo debaixo do qual ele colocou a moeda, aposta que está lá, mas não está. Não está nunca em lugar nenhum porque aquilo é um truque de mãos e a moeda fica sempre escondida na mão do habilidoso vigarista, que assim, ganha sempre. Rouba sempre. Uns dez ou quinze de volta do vigaristazito, largando algumas notas sempre acompanhadas dum Ooh! de espanto, porque de fato a moeda nunca fica onde todos tinham a certeza que devia estar!
Aproximei-me, já conhecia o truque, e fiquei um pouco a ver e divertir-me a ver aquelas caras quando perdiam! O vigarista quando me viu achou que tinha ali pato mais rico, o único claro no meio de tantos escuros, e insistia para que eu apostasse também. Não. Só ver. Quase a hora da saída do barco, achei então que para despedida, e retribuir um pouco pelo espetáculo que me tinha ocupado os últimos momentos naquela cidade e país, decidi também pagar uma nota para ver. Ainda nem tinha perdido, como todos os outros, quando surge a polícia para prender o vigarista e mais os que estavam jogando! O meu coração bateu com força, tanto mais que não era fácil disfarçar-me sendo o único facilmente diferençável! Aquela gente foi sensacional. Rodearam-me, procurando interpor-se entre mim e os polícias que corriam na nossa direção, e diziam-me:
- Foge, foge depressa!
A uns vinte metros dali havia um café, bar. Eu não podia correr porque ainda mais nas vistas daria. Rabo entre as pernas virei costas e consegui entrar no café, de onde através das janelas podia acompanhar o que se passava. O vigarista apanhado, discutia com a polícia que acabou por levá-lo. Os apostadores e meus protetores mostravam-se satisfeitos por me verem a salvo, e faziam-se sinal para que me mantivesse ali escondido ainda um bocado. Pedi uma cerveja que bebi com a mão trémula e deixei-me ficar até que a vida naquela praça e os batimentos do meu coração voltassem ao normal. Logo que pôde fui para o cais e no primeiro barco voltei para Brazzaville, para o hotel! O susto foi forte!
Ficou-me de Kinshasa a saudade daquela atitude do povo que, parecendo impossível, protegeu o único branco que por ali se tinha arriscado a “jogar” com eles!
Já de volta a Brazzaville, onde reinava a tranqüilidade, a seguir ao jantar no hotel, noite escura, decidi ir dar uma volta a pé. Depois de atravessar aquele pedaço de estrada ou caminho deserto em que me cruzei somente com meia dúzia de pessoas que me ignoraram, cheguei a um cruzamento onde havia uma espécie de bar com boate. Povo. Aproximo-me, o que espanta aquela gente, talvez porque ali nunca tivesse entrado europeu algum, e pergunto se posso entrar e tomar uma cerveja.
- Bien sur! Porquois pas?
Lá dentro, muita conversa e muita dança. Dizer que a dança estava animada seria pleonasmo porque em África dança e música são a vida daquela gente. Em pé, no bar, sob o olhar curioso dos presentes, fui apreciando o ambiente e bebendo devagar a minha cerveja. Não tardou que me viessem perguntar o que eu fazia ali naquele lugar, parecendo perdido.
- Nada.
De fato tudo quanto fazia era passear um pouco. E ver. Ver o que se passava à minha volta. Acabei por dizer quem era, onde vivia, o que estava a fazer no Congo, como era a vida em Angola, e não tardou que tivesse razoável auditório à minha volta. Eu era, naquele meio, a avis rara. Conversámos, bebemos mais uma ou outra cerveja e quando achei que era hora de me ir deitar, a conta estava paga!
Esta era a África que eu conheci e amei.
Como a viagem ainda teve algumas peripécias mais, vamos seguir. Domingo, dez horas da manhã no aeroporto para apanhar o vôo para Pointe Noire.
- O vôo está atrasado, porque só sai depois que chegar o vôo de Paris.
- Quanto tempo de atraso?
Não sabiam. Comprei um livro qualquer e sentei-me ali, a ler e olhar para um pequeno avião de vôo à vela, que descia daqueles céus com uma calma impressionante. Sempre me atraiu o vôo à vela. E nunca fiz!
Encurtando a história, o vôo de Paris chegou com seis horas de atraso! Seis. Deu para ler o livro todo e ainda tive tempo de o oferecer à moça da companhia aérea a quem entretanto perguntei cem vezes se ainda faltava muito para sair!
Finalmente em Pointe Noire a estadia prevista era de dois dias. O suficiente para contatar possíveis clientes, e a saída de regresso a Luanda prevista para quarta-feira seguinte às nove e meia da manhã. O aeroporto era a cinco minutos do hotel, e bastava lá estar com meia hora de antecedência porque normalmente não embarcava vivalma! No dia do regresso saí cedo do hotel para ir comprar alguma recordação para os filhos, já que em Pointe Noire os artigos de importação, sobretudo franceses quase não pagavam direitos alfandegários, e quando voltei bem antes das nove horas o gerente do hotel, aflito:
- Telefonaram do aeroporto a dizer que mudou o horário do vôo e vai sair uma hora mais cedo!
- Meu Deus! Está na hora.
Peguei nas malas e corri para um taxi. Quando este começa a andar, por cima de nós passou o avião! Perdido! Depois de ter esperado seis horas em Luanda e mais seis em Brazzaville, agora perdia o vôo, único semanal, porque adiantaram o horário sem me darem conhecimento! Fiquei com uma raiva...
Esperar uma semana em Pointe Noire, terra de mais ou menos nada... não era programa que me interessasse. Fui procurar saber como sair dali.
- Há sempre carros-tanques de gasoil (óleo diesel) a sair daqui para Cabinda. Procure informar-se ali na Mobil.(O ali era mais ou menos no fim da rua do hotel)
Por sorte ia sair um, que se prontificou a levar-me, avisando que parecendo ser perto, em linha reta talvez menos de cinquenta quilómetros, até à fronteira de Cabinda, a estrada daí para a frente seguia pelo interior, pela floresta, e naquela época, Abril, de muita chuva, o tempo de viagem seria o que fosse! Antes um dia de viagem de caminhão do que uma semana em Pointe Noire.
Lá fomos. Dia seguinte, de manhã, bem cedo, já muitas horas de viagem no lombo, estrada esburacada e conforto de caminhão, já em Cabinda a uns escassos trinta quilómetros de Lândana, a que houve pretensões de chamar Vila Guilherme Capelo em homenagem ao oficial da marinha portuguesa que assinou pelo rei de Portugal o Tratado de Simulambuco, e que já se chamou Cacongo, as chuvas tinham cortado a passagem no meio da floresta.
Carros querendo seguir para o interior, atravessar o lago que se formara, e nós na nossa “margem” sem podermos passar para a costa.
Mas valeu a pena atravessar, mais uma vez a floresta do Maiombe! É uma beleza, imponente.
Agradeci muito a boleia que me deram, arregacei as calças, mala e sapatos na mão, atravessei o lamacento lago e convenci um outro caminhão a regressar a Lândana, onde apanhei um taxi que, voando, me levou a Cabinda. No último minuto, já o avião a fechar as portas, consegui entrar no vôo da DTA para casa. Foi uma odisséia e tanto.
Mas África tinha destas coisas (e muitas outras) que são páginas inesquecíveis da nossa história, e muitas delas, apesar da idade, gostaria de repetir.
Mais ou menos na mesma época, quando proibiram a TAP de sobrevoar países africanos, a primeira solução encontrada foi voar pela Suissair que saía de Leopoldville, hoje Kinshasa, que dali ia direto a Lisboa. Primeiro pela DTA, de Angola, de Luanda a Leopoldville.
Tive que ir a Portugal falar com a administração da Cuca.
A guerra estava brava em Angola e muitas famílias de militares, em missão no interior foram aconselhadas a regressar a Portugal. O avião não ia muito cheio, mas umas quantas jovens mães, todas com filhos muito pequenos.
Uma delas ia com três, irrequietos como todos, e eu “assumi” o controle de um deles, talvez com uns 3 anos, que foi tranquilo, ou no meu colo ou a dormir ao meu lado! Coisa de papai treinado – naquela altura eu já tinha 5 filhos!
Em Leopoldville, fomos aguardar a transferência para o novo vôo no edifício (velho) do aeroporto, muita confusão, e aquelas mamães estavam aflitas. O Congo tinha sido um imenso desastre na sua independência.
Finalmente nos chamaram, eu feito guardião daquelas famílias, quando ao descermos as escadas para ir embarcar, um oficial congolês (zairense), baixinho, cheio de dragonas e condecorações, seguido de uns quantos “às ordens”, ao ver-me passar, perfila-se, em sentido faz-me uma aparatosa continência ao que eu correspondi com um “Olá meu rapaz”, que ele não entendeu, e a partir daí toda a gente abria passagem para o nosso grupo.
As senhoras loucas para saberem como eu conhecia um tão medalhado general zairense. Não sabia, nunca soube, nem consegui saber por que fui tão militarmente saudado!
Só dentro do avião pude confessar a minha ignorância!
E chegámos a Lisboa sãos e salvos!


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