Antes de ler este texto, sugiro que leiam um comentário
ao texto anterior – Amigos -3
Hoje vou apresentar-lhes
uma série de “guerreiros”! Todos de Cavalaria. Gente que optou pela vida
militar e alguns estiveram envolvidos nas infelizes, indesejáveis e forçadas
guerras coloniais, que a falta de diálogo e ignorância fizerem eclodir. E matar
muita gente, de ambos os lados, que poderiam ainda hoje estar gozando a vida
com a família em serenidade. Mas as guerras são a manifestação primeira,
primária, da índole dos homens. Não se entendem pela simples razão porque não
querem, pelos interesses pessoais em jogo, pela ganância e vaidade.
Estamos no século XXI e
continuam guerras e matanças por todo o mundo, desde a “civilizada” Europa,
onde ainda dominam os europeus (até quando?), África, Américas, Ásia, etc.
Os “guerreiros” de hoje,
meus amigos de há muitos anos, todos militares, todos gente sensível e de Paz. Alguns
já alcançam o Grande Descanso.
Vou começar pelo mais humilde.
Fizemos juntos o serviço
militar como sargentos milicianos. Acabou em Agosto de 1952, e se para mim a
sensação foi do “dever” cumprido e acabado, para ele, jovem humilde, de família
modesta, com poucos recursos, continuar militar foi a solução para não voltar
para a terra, lá para as bandas de Ansião e Lousã, onde não conseguiria
trabalho decente.
No meio do nosso curso, um
dia o oficial de serviço chamou-o. Tinha nas mãos um telegrama para ele, que
dizia “Josefa morreu”.
O oficial perguntou se
conhecia alguma Josefa. “A minha mãe.” Foi um drama, mas para não lhe dar um
choque, diz-lhe que a mãe estava muito mal, e que ele fosse a casa. Deram-lhe
uma semana, e lá vai ele, pesaroso, pensando ir encontrar a mãe às portas da
morte. Demorou a chegar. Comboio para Pombal, depois autocarro para Figueiró
dos Vinhos. O oficial respondeu ao telegrama dizendo que o filho estava a
caminho de casa. As irmãs e a mãe ficaram assustadas porque quem tinha morrido
fora uma prima velha com o mesmo nome da mãe, e foram esperá-lo à estação com
as roupas mais alegres de que dispunham.
O nosso militar, ainda
dentro do comboio vê a família toda alegre a acenar-lhe e ficou perturbado.
Quando saiu foi recebido com alegria, abraçou a mãe a chorar, e depois gozou
uma semana de férias!
No quartel, ele, como eu,
vivíamos com uns míseros escudos, e tínhamos uns quantos colegas mais afortunados
de quem ficámos também amigos.
Chegou o Natal e houve
férias no quartel, Cavalaria 7, em Lisboa, mesmo encostado à residência do
Presidente da República, e o nosso amigo estava triste: não tinha dinheiro para
ir a casa e ficaria duas semanas “de castigo” no quartel. Quando me contou
isso, falei aos colegas, e todos abriram a carteira. Foi para ele uma
felicidade, e passou o Natal com a família.
Durante muitos anos deixei
de o ver, foi sendo promovido, andou por Angola quatro anos, na guerra, em
Moçambique, sempre em zonas de guerra dura, esteve por duas vezes às portas da
morte por doença, e durante todo esse tempo, podemos nos termos cruzado, sem
que eu tivesse sabido. Tínhamos perdido o rasto um do outro. Bem mais tarde, 45
anos depois, recebi uma carta dele. Tinha passado à reserva, e foi aí que
contou essa história de termos arranjado o dinheiro para que ele fosse a casa,
gesto que jamais esqueceu. E trocámos alguma correspondência.
Quando fui a Lisboa,
telefonei-lhe e encontrámo-nos. Foi um momento grande. Já de cabelo quase todo
branco, a mesma pessoa sensível e humilde, contou-me que se tinha aposentado
como major. Estando em número um para ser promovido a tenente coronel, e
sabendo que em pouco tempo passaria à reserva, um colega mais novo pediu-lhe
para o deixar na frente, na promoção, porque ainda tinha alguns anos de serviço
pela frente.
O meu querido amigo, homem
simples, a vida organizada, as duas filhas já formadas em curso superior, não
hesitou e deixou o colega ser promovido. Só um homem grande teria semelhante
atitude.
O Ramiro, homem humilde,
grande de alma e caráter, ficou como major. Mas feliz por ter ajudado um
colega.
Infelizmente não consegui
encontrar nenhuma foto dele. Ramiro da Conceição Antunes.
***
Neto de general, seguiu a
vida militar, e a sua ambição seria atingir a mesma posição do avô. Cedo foi para
Moçambique, ali chegando jovem tenente, ajudante do governador. Dinâmico,
oficial de cavalaria, como todos os do mesmo ramo apaixonado por cavalos, logo obtém
do governador autorização e apoio para criar o Centro Hípico de Lourenço
Marques que
durante anos iria ser lugar de socialização e mundanismo para a alta sociedade
colonial. O centro era reputado e às suas competições vinham competidores de
países vizinhos."
O belo Centro Hípico
Ainda em Moçambique tenta a
vida fora do exército, trabalha na SONAREP, a primeira refinaria de petróleo em
Moçambique, mas ao fim de um ano, fartou-se e saiu dizendo: “no exército se eu mandar um general à mer...
apanho dez dias de cadeia e tudo volta à mesma, se fizer o mesmo com o
administrador de uma empresa sou posto na rua e fico desempregado.”
Voltou à vida militar,
esteve dois anos numa zona de guerra na Guiné, deixando a família em Lourenço
Marques, regressa a Moçambique e é enviado para novas zonas de guerra, até 74
quando avisado pelo comando do exército, que tudo estava acabado, vai para
Portugal.
Não era da cor dos “heróis
de Abril”, fica na prateleira. Vai então para o Brasil onde um jovem milionário
lhe pede para montar um haras, o que lhe deu vida nova. O milionário casa, a
esposa não gosta de animais e o haras... acabou!
O nosso coronel tem então
que se virar na vida civil. Os primeiros passos são difíceis, entra depois como
auditor numa empresa grande, corre o Brasil, não pára, e fica até que a idade
lhe recomenda que descanse. Fizera já muito. Vai para Portugal, saudoso de toda
a sua longa luta e história, aos 90 anos descansou.
O jovem e dinâmico tenente
Foi um homem que não parou
um momento e sempre enfrentou com galhardia, como um bom oficial de cavalaria,
e bom português, todos os desafios que teve que enfrentar.
Nossos pais eram primos
direitos. Saravá, meu amigo e primo Carlos Vasconcellos Porto.
Vamos agora aos concursos
hípicos, tão na moda em Lisboa sobretudo por volta dos anos 40 e 50. Quase
todos os cavaleiros eram militares, raros endinheirados que se davam ao luxo de
ter cavalos de alta competição, oficiais houve que se tornaram famosos.
Para as famigeradas
olimpíadas de Berlim, em 1936, no tempo do todo poderoso Adolf, Portugal envia
vários atletas e um grupo de cavaleiros. Vieram de lá com medalha de bronze,
tendo um dos oficiais da equipe recebido uma carta pessoal do tal Adolf a
felicitar os portugueses. Carta rara. (Há poucos anos a RTP quis fazer uma
reportagem sobre essas olimpíadas, pediu ao atual detentor desse espólio, a
medalha para fotografar, mas, por razões
políticas, os cretinos não quiseram exibir a carta! Um documento
histórico...). Os chamados covardes do politicamente correto!
A equipe portuguesa em Berlim. O nosso “homem” à
direita (como sempre foi!)
Casado, mais de uma dúzia
de filhos lindos e ótimos, o nosso oficial parou em coronel, mas até ao fim da
vida continuou a ser delegado de Portugal aos Jogos Olímpicos. Era uma pessoa
de exceção!
Algumas cenas da sua vida.
Enviuvou e houve uma
senhora que decidiu “tomar” conta dele, e não o largava.
Teria já 80 anos, com um
filho no Paraguay, vai visitá-lo, senhora á ilharga. À despedida diz ao filho: “Estou farto de a ter sempre atrás de mim.
Não queres ficar com ela?” Resposta do filho: “Não pai, muito obrigado!”
Uns anos antes, aí por 1970
foi a Luanda, onde viviam pelo menos quatro filhos. Chega de manhã e vai direto
ao banco onde eu trabalhava; fiquei muito espantado de o ver às 10 da manhã,
nem sabendo que ele estava em Luanda. Tinha acabado de chegar de Lisboa!
Aparece à porta do meu
departamento, vejo lá no fundo um senhor com uma mala ao lado, mandei ver quem
era. Quando me disseram, corri para o receber, e perguntei-lhe se já tinha
estado com algum dos filhos.
“Não. Primeiro quero ir almoçar contigo e com o Renato Lima (uma figura
inolvidável da Cuca)! Depois então vou ter tempo para me chatear com eles.”
Grande figura, Grande
Senhor. Boa parte dos seus filhos são, há muitos anos, como meus irmãos.
Aqui está, um muito querido
amigo, Dom Domingos de Sousa Coutinho, Marquês de Funchal, com o neto,
homónimo, já avô e futuro Marquês.
***
Quando o conheci, em 1963
já ele com 48 anos era coronel de cavalaria, e estava em Luanda a comandar o
famoso e imenso Campo do Grafanil, um acampamento onde estacionavam todos os
militares que chegavam a Angola e todos os que, finda a missão, aguardavam o
regresso à Metrópole.
Era um militar aprumado,
muito disciplinado, características que guardou até ao fim, quando, já sofrendo
muito com vários problemas de saúde, descansou.
Foi através dos Cursos de
Cristandade que uma forte amizade nos uniu por mais de trinta anos.
Um dia decidimos ir visitar
as famosas e impressionantes Pedras Negras, N’pungo-a-Ndongo, terra do meu
compadre e colega de trabalho, Luis Neto, e que no meu livro “Contos Peregrinos
a Preto e Branco” já descrevi:
No meio
de uma extensa área planáltica, a dezenas de quilômetros de distância começam a
recortar-se no horizonte uns imensos blocos de pedra, que não fosse a
distância, podiam confundir-se com uma grande manada de elefantes! À medida que
nos vamos aproximando, essas rochas crescem de forma desmesurada, até que
chegados à sua base se tem então noção do seu tamanho. Algumas passam os
duzentos e cinqüenta metros acima do chão! São escuras, como os elefantes.
Negras.
A
sensação, de longe, é que a manada de elefantes está unida, e então, já mais de
perto a imaginação leva-nos a pensar em algum gigante, imenso, que carregou,
ninguém sabe de onde, essas pedras monstruosas, como almas penadas, para as
deixar ali esquecidas, entregues a si próprias, amontoadas!
E a
nossa sensação de pequenez cresce, perante a grandiosidade daquele espetáculo.
Em alguns desses imensos blocos graníticos estão marcadas pegadas que parecem
de gente e de cães. Ninguém sabe o que é, de quem, de quando. Chamam a algumas
pegadas, que pelo enorme tamanho só poderia ter sido deixada por algum “patagon”,
o pé da Rainha Jinga! Contam-se lendas. Tudo ali é mistério, mas um mistério
que encanta, pela sua imensidão e beleza. Não sei se há, e onde, algo parecido,
mas as Pedras Negras são inesquecíveis.
Duas vistas impressionantes (a 2ª - vista do satélite)
Dormimos em dois “burros” militares que armámos na
entrada de uma escola (era tempo de férias, não tinha ninguém) e ao nascer do
sol acordámos com três mulheres paradas em frente à escola, muito admiradas com
o espetáculo! Depois procurámos na aldeia ali perto o tio do meu compadre, e
fomos recebidos que nem dois príncipes, o que muito impressionou o coronel, até
porque a guerra estava acesa, e nós, únicos brancos naquela imensidão fomos recebidos
com tanta lhaneza e carinho.
Os “burros”, as camas de campanha assim chamadas, no
regresso duma rápida caçada, encontrámo-las com lençóis brancos impecáveis. Ao
lado uma mesa posta com dois lugares, onde nos recusámos sentar sem que o nosso
anfitrião se sentasse conosco.
Foi uma vivência inesquecível.
Anos mais tarde o “nosso coronel” escrevia-me, quase
sempre em verso, que ele tanto gostava de fazer:
“Eu cá
por mim,
Julgo
que aprendi contigo
A arte
de ser amigo
E de
gostar de arriscar
E viajar
pelo mundo além”
Com 80 e
alguns e sempre a barretina dos “Meninos da Luz” na lapela
Meu querido e saudoso amigo António. Saravá, António
de Miranda Dias.
20/04/2018