terça-feira, 22 de agosto de 2017


O Melhor: dormir bem! -1 -

Como imaginam, ao longo desta já longa vida, tenho dormido nos mais inusitados lugares. Quando não era rico dormi algumas vezes num dos mais caros hotéis da Europa, como o fabuloso Hostal de los Reyes Catolicos em Santiago de Compostela, dormida que hoje não conseguiria repetir – pai, mãe e duas crianças pequenas, 1957 – porque as finanças... se esgotaram com o tempo, e o maravilhoso e tão saudoso Grande Hotel da Huila, Sá da Bandeira, de que já falei algumas vezes e que sempre considerei o melhor hotel do mundo. Nem as torres majestosas e de insolência financeira, das “noites das arábias”, lá nos reinos do pitróil lhes chegam perto.

O Grande Hotel da Huila, restaurado

Estes dois são os que guardo de tempos em que a vida parecia que era mais simples. Parecia... e era!
Lá por Angola lembro outra noite de “grande luxo”! Regressava a casa, em Benguela e era já noite. Tarde da noite. Cansado, estrada velha, estreita, esburacada, o inconfortável Renault de molas (?) de concreto, ainda uns 150 quilômetros a percorrer, decidi parar, creio que no Chongoroi, na altura uma povoação com uns... 20 habitantes e uma casa comercial que, amavelmente dispunha de um quarto para quem necessitasse pernoitar. Eu quis.
O “luxo” do quarto era uma modesta cama, com um daqueles colchões de palha de milho, onde sobram, talvez para recordação, alguns simpáticos e petrificados carolos (!), uma cadeira, uma bacia e um jarro de água, e a roupa da cama que não devia ser mudada desde há alguns anos! Mas eu estava estafado. Não me atrevi a despir-me, possivelmente como todos os anteriores “hóspedes” terão feito, cobri a fronha da almofada, onde o branco original já estava a aproximar-se do negro do luto, envolvi-a com o meu casaco, cobri-me com o cobertor, porque ali, à noite faz frio – são quase 800 metros de altitude – e adormeci.
Quando acordei, já dia, uma dor nas costas como se tivesse sido mordido. Não era mordida. Um dos anteriores dorminhocos “esqueceu” um lápis dentro da cama que acabou espetado nas minhas costas!

Mas quando se era obrigado a ficar nesses cinquenta estrelas, a razão era ditada pelo cansaço que não permitia andar mais sem risco de adormecer ao volante. Era o que havia!
Mais estrelas ainda tinha outro hotel. Dessa vez, talvez final de 1954, minha mulher fazendo “turismo” a acompanhar o marido trabalhador (!). Saída de Kuito, Antigo Silva Porto, a caminho de Serpa Pinto, hoje Menongue. Uns trezentos e tantos quilômetros naquelas auto-estradas... Fez-se noite, tomámos contato com um animal que nunca havíamos visto, um Cuio ou Lebre Saltadora (Pedestes capensis). Não chega ao dobro do tamanho de uma lebre e lembra um canguru pequeno com membros anteriores muito desenvolvidos, sobre os quais se desloca saltando, e os posteriores muito pequenos de tamanho suficiente só para ajudar a levar a comida à boca. Herbívoro inofensivo, vive durante o dia em tocas, só à noite sai para se alimentar. Seus olhos refletem a luz com imenso brilho, vendo-se, quando se lhes apontam os faróis, uns pontos luminosos moverem-se aos saltos!

Chegámos a Menongue perto da meia noite. Na povoação não se via viv’alma! Embrulhado num cambriquite um homem fazia “guarda” ao Posto da Administração do Concelho, e foi a ele que perguntámos onde havia um lugar para dormir. Estremunhado e espantado de ver aparecer àquelas horas tardias um jovem casal, lá nos disse que na casa comercial ali quase ao lado tinham uns quartos que alugavam. Obrigado.
Lá fomos bater à porta, sente-se barulho dentro de casa e percebe-se que estão a acender um Petromax, perguntam quem era e o que queríamos, abrem a porta e aparece o chefe da casa, a mulher e duas filhas pequenas, tudo em pijamas e agasalhos (Menongue está a uns 1.400 metros de altitude, região de savana aberta, de noite... gelada). Queríamos dormir!
Foram-nos mostrar um quarto que só tinha porta para a rua, entregaram-nos um castiçal com uma vela e... pronto. Vá lá que ali os lençóis estavam limpos. A pressa para cair na cama era muita, os ossos doíam com o frio e os quilômetros andados.
Depois de deitados e a vela apagada, assim que me habituei à escuridão do quarto, começo a ver uma imensa porção de estrelas no teto! Não, não era a classificação turística hoteleira! Faltavam alguns pedaços das telhas, o que permitia ver aquele céu, lindo, quando se quer apreciar, mas pouco convidativo quando o buraco do telhado é bem por cima da cama! Por acaso nessa noite não choveu!

Novamente a caminho da Huila. O mesmo furgão, Renault, duro, incómodo, e dois passageiros. A minha mulher e o ajudante, o Sebastião.
Este, que um dia depois de eu ter ido embora de Benguela me escreveu uma longa carta que começava com Meu amado mestre, que quase me fez sentir o Messias! Rapaz novo, o Sebastião, humilde, alegre, pedia-me, para Portugal que lhe mandasse 20$00 escudos! Nada sabia de mecânica, mas foi sempre imensamente prestável, quando o carro avariava no caminho, em casa dos agricultores onde tantas vezes tive que prestar assistência a equipamentos agrícolas, e até nos escritórios da empresa, na montagem das máquinas novas que iam chegando. Ao fim de um ano de andar comigo já fazia muita coisa. Talvez daí o tratamento de Mestre!
Desta vez o Renault ia com o motor a falhar. Engasgava-se com facilidade, sobretudo nas subidas. A gasolina não chegava bem ao carburador, e nunca se chegou bem a saber se era a bomba, que foi trocada, mais tarde até colocada uma outra em paralelo, elétrica, que a original era mecânica, desmontou-se e lavou-se o depósito de combustível, limparam-se os canos, enfim fez-se tudo o que era possível, e o carro continuava a falhar.
O destino era Sá da Bandeira, cidade situada no alto da serra, mil e oitocentos metros de altitude, um clima maravilhoso, e a pensar que íamos dormir no melhor hotel do mundo: o Grande Hotel da Huíla. Chegar a qualquer hotel depois de uma viagem por estradas de terra, poeirentas e esburacadas era sempre uma maravilha. Mas chegar ao Grande Hotel da Huíla, e sobretudo lá ficar alguns dias, era o máximo que se podia almejar.
Depois de Cacula a estrada começa já a subir para o planalto, e o carro falha cada vez mais.
Engasga-se. Pára. Abre o capô. Olha-se para dentro e nada se faz porque não há nada que se possa fazer, apesar de carregar sempre no carro uma completa mala de ferramentas. Seria a tal bomba de gasolina? Talvez, mas mesmo que fosse não havia outra para trocar em pleno mato. Com isto vai-se perdendo tempo e, entretanto, a noite adensa-se. O local mais próximo onde ficar era no Toco, no entroncamento das estradas de Sá da Bandeira para Benguela e para a Matala.
Depois de Hoque a estrada entra no começo do alto da serra e sobe íngreme e ziguezagueante até chegar ao topo, a dois mil metros de altitude.
O carro, cada vez mais engasgado, não consegue subir. Fez-se tudo, e... nada. Só de marcha a trás, de ré! Faltando ainda uns doze a quinze quilômetros, a única solução para não ficar na estrada foi virar o carro e ir às arrecuas p´a trás!
Abriu-se a porta traseira do furgão, o Sebastião sentado com as pernas para fora, lanterna na mão tentando alumiar, mal, as bermas da estrada, e eu com o pescoço torcido quase 180º conduzindo aquela droga de carro montanha acima. O frio entrava pela porta aberta e ia congelando a todos. Velocidade lenta. Lenta, ainda é pouco, lentíssima. Por todas as razões, e até porque o motor podia não aguentar e fundir de vez!
Nem o motorista aguentava muito apesar da sua juventude! Anda um pouco, pára para descansar e mexer o pescoço. Anda um pouco mais, torna a parar, e assim, com uma canseira imensa, finalmente chegámos ao Toco às duas horas da manhã. Ainda hoje não sei como conseguimos tal proeza. Os vinte e poucos anos de idade...
Dizer-se que ia cansado é piada. Arrasado. Depois de ter saído de Benguela a pensar que ia dormir no melhor hotel do mundo, para onde tinha telefonado a reservar o quarto, e não poder lá chegar, qualquer lugar servia para descansar e tentar endireitar o pescoço, mais do que torto!
No Toco, a que eufemisticamente se chamava povoação, onde como é evidente luz elétrica não existia, havia somente três casas, todas pertencentes à mesma família. A de comércio, a habitação e uma espécie de hotel ou albergue, construído num local um pouco mais elevado, em cima de uma rocha. Era um edifico térreo com cinco portas para a rua, aliás a estrada. Cada porta dava para um quarto com meia dúzia de camas, onde os viajantes, praticamente só camionistas, à medida que chegavam, qualquer que fosse a hora, se deitavam para dormir. Nenhuma porta tinha chave. Não fazia falta. Era assim a África, tranquila.
A organização ali era simplíssima. Quem fosse chegando procurava uma cama vazia, deitava-se, dormia, e no dia seguinte pela manhã, depois de matabichar pagava a sua conta e seguia viagem. O matabicho, para gente que além ter estômagos fartos, não sabia quando chegava ao próximo destino, compunha-se de café, leite, pão e manteiga, e ou bifes, grandes, com batata frita, ou então bacalhau cozido com batatas! O que no Brasil se chama café da manhã, ali era algo de substância. E matabichar às cinco, seis horas da manhã, uma bacalhauzada, era ótimo! Já se saía aviado para o que desse e viesse.
Dormiam os viajantes uns quantos no mesmo quarto e muitas das vezes nem se chegavam a ver pelo desencontro das horas de chegada e partida. Mas dormiam e roncavam.
Pescoço à banda, braços e costas doloridos, todos nós enregelados, tudo o que eu naquela ocasião pedia a Deus que me desse era uma cama com dois cobertores de papa bem quentinhos. Não aguentava mais.
Abri a primeira porta, entrei sem acender a luz, porque nem havia, adivinhei algumas camas vazias, e cansado como estava comecei logo a despir-me. Minha mulher atrás, lanterna na mão, cautelosamente percorrendo os cantos do quarto à procura de alguma barata! Eu queria lá saber de baratas. Só queria mesmo era deitar-me. De repente o foco da lanterna ilumina uma cadeira que tem pendurada um par de calças. De homem. Mais uma camisa e no chão umas botas.
Sussurrando, chama-me e mostra-me a descoberta. Aponta a lanterna para a cama, e lá estava outro hospede, dormindo o sono dos justos, profundamente.
Eu já tinha despido a camisa e as calças. Pegamos tudo novamente e vá de ir procurar outro quarto. O segundo estava vazio, bem confirmado pela lanterna que desta vez não procurou mais baratas mas percorreu todas as camas.
Para não dar hipótese a que outro retardatário viesse dormir conosco, improvável, devido ao adiantado da hora, empurrei uma cama para a porta, para teoricamente a trancar. Não trancava, mas pelo menos dificultava a entrada de alguém mais e talvez, talvez, se tentassem forçar devia fazer suficiente barulho para nos acordar e assim podermos avisar que o quarto estava ocupado! Cansado como estava, eu não acordaria de jeito nenhum, mas ficámos moralmente mais à vontade!
Num instante acabei de me despir e em menos de outro estava enfiado por cima daquele colchão de palha, mesmo duro, debaixo dos tais cobertores pesados. Não sei quanto tempo levei para adormecer, mas creio ter entrado na cama já com um olho fechado!
Depois daquela viagem incrível, com um frio miserável, de ré, todo torcido, aquela cama mesmo sendo bastante péssima era uma maravilha! E devo ter dormido bem porque me levantei só a meio da manhã! E não perdoei o meu matabicho de herói!
No dia seguinte, feriado, 8 de dezembro de 1954, conseguimos finalmente, e com muita engasgadela do motor chegar a Sá da Bandeira, porque já não havia mais subidas íngremes, a estrada desenvolvia-se pelo topo da serra, e aí, sim, descansar e gozar aquele clima e Aquele Hotel.
Que saudades!...


Tem mais dormidas, mas ficam para a próxima!

2 comentários:

  1. Amigo, eu teria ficado com o canastro num S. Gens.

    ResponderExcluir
  2. Gostei dos relatos... bem escritos despertando a curiosudade do wue ali vinha...

    ResponderExcluir