O Melhor: dormir bem! - 2 –
Em “Dormir bem! -
1 -“ não arranquei da memória, muitas, muitas, outras “dormidas”, algumas com
quase 70 anos passados que continuam bem “acordadas” na minha cabeça, e que
acho graça compartilhar. Vou tentar lembrá-las por ordem cronológica. Comecemos
por
1950. Numa
excursão para rapazes organizada pela Acção Católica em Portugal, navio
Mouzinho (já um “velhinho” com mais de 30 anos) fretado, aí vão a caminho de
Roma umas largas centenas de jovens, para celebrar o Anno Santo! Já escrevi
sobre isto mas vão mais uns detalhes.
Os mais
afortunados nas cabines de 1ª ou 2ª classe, e os “proletários” nos porões
transformados em casernas, com dezenas ou centenas de camas – beliches – onde,
como é se supor a farra era constante. Mas com o embalar do Mediterrâneo, e com
a juventude, todo o mundo dormia como os anjos... e com eles.
Em Roma algo de
“separação de classe” também se passou e nós, os “proletários, ficámos alojados
em colégios de freiras (atenção: as alunas estavam nas férias de verão) onde,
além de maravilhosa comida que as santas freirinhas nos preparavam -
normalmente a deliciosa pasta romana com qualquer coisa, que comíamos como
esfaimados, também tinham as camaratas primorosamente arrumadas. Coisa que, se
tivéssemos ficado em colégios de padres.... Enfim, foi uma delícia.
Misturando um
pouco a intenção cronológica, aproveito para falar de outras navegações. Em
1954 a caminho de Angola, no “Moçambique”, os dois primeiros dias foram
passados com um semi-enjoo miserável. Depois, de repente, estava em forma e o
resto da viagem foi magnífica, até pousar os pés em Angola em 1o de Agosto de
1954.
Pior foi, em
1961, a travessia da Inglaterra para a Dinamarca! Apanhámos um daqueles infames
temporais do mar do Norte, e o navio levou bordoada da boa. A nossa cabine – ia
com a minha mulher – era um cubículo mínimo, com um beliche. Ela, apavorada com
os imensos balanços do navio, de proa à ré e de bombordo a estibordo (em pindorama é boreste), nem se deitou; ficou sentada na
borda da cama a noite toda, o que me valeu não ter caído várias vezes porque
rolava na cama e chocava com ela! Felizmente a viagem demorou só 18 horas.
Em 1952 era eu um
valeroso defensor da pátria, cumprindo o meu dever militarmente em Belém,
Regimento de Cavalaria 7, hoje extinto. Por somente duas ou três vezes fiquei
de serviço ao Regimento, uma espécie de big-chefe sem quase ninguém a quem
comandar!
À noite
levavam-me o jantar, que dava para comer e manter o físico em ordem, o calor de
verão a apertar, o único lugar agradável era por cima da sala de refeições...
no telhado. Vista magnífica para o Tejo, uma aragem feita de propósito para
amenizar a dura vida daquela “guerra”, os soldados de serviço recolhidos sempre
fingiam que nada havia de anormal... e ali dormi algumas horas!
Em 1955, por
Angola, e por muito lugar. Fui um dia visitar um fazendeiro que queria comprar
um trator. Nova Sintra, sempre Catabola, e hoje com este nome oficial, o
agricultor tinha comprado barato em leilão, uma fazenda abandonada há muitos
anos por uns ingleses. Casa espaçosa, antiga, paredes de adobe de 70 ou 80 cm.
de espessura, necessitada de boa restauração, inclusive janelas que não tinha.
Num quarto grande duas camas com mosquiteiros, uns bons cobertores, mais de
1.500 metros de altitude. Adormecer foi fácil, mas a partir de certa altura o
zunido dos mosquitos era tanto que não consegui mais dormir. Quando o dia
clareou e entrou luz no quarto, o teto não se via! O maldito mosquiteiro era um
pouco curto ou estava mal colocado e por aí entraram uns trilhões de mosquitos!
E como dormir com
a cabeça por baixo dos cobertores não é muito confortável, foi um sufoco
danado.
De Benguela para
lá tinha ido no combóio, e nele regressei. Mas falar nos combóios da Companhia
de Benguela... pode parecer mentira, mas eram uma delícia!
Cabine
individual, com cama, lençóis impecáveis, saía de Benguela, com muito calor e
logo que começa a subida para o planalto o tempo começa a refrescar e virava
uma delícia! Jantar no vagão restaurante e, a seguir, cama. Subia em altitude e
subiam os cobertores para cima. Chegada a Nova Lisboa ou a Catabola, depois dum
belo mata-bicho, e ali éramos recebidos pelo clima magnífico de altitude.
O regresso a casa
passava-se de modo inverso. Deitar bem acobertado e logo que se descia a serra,
começava a retirada dos agasalhos, para, por fim, chegar cheio de calor.
Não esqueço um
dia, a caminho do interior, antes do jantar li um jornal e também o idiota
horóscopo que me dizia “não esqueça o seu dentista”! Não esqueci. No meio do
jantar quebrei um dente! O jantar era ótimo, um bom tinto a acompanhar, mas o
dente é foi-se!
Por dentro,
sobretudo de Angola, andei por todo o lado, de carro, combóio e avião.
E lá vou mais uma
vez naquele horrível Renault, nas horríveis estradas. Fez-se noite, encontrei
um grupo de angolanos caminhando na estrada, dois casais com duas crianças
pequenas, e decidi dar-lhes carona. Como o carro era um furgão, entraram todos
para trás e lá se ajeitaram.
Tarde, o sono a
implicar comigo e eu a tentar vencê-lo. Dei uma cochilada, o carro saiu fora da
estrada, por sorte passou entre duas árvores, deu um pequeno salto na vala
lateral e parou. Aviso aos passageiros: “Vou dormir um pouco. Façam o mesmo”!
Meia hora depois, refeito, pronto para prosseguir, o carro, com uma roda metida
na vala, derrapava e de lá não saía. Saíram os passageiros, deram um puxãozinho
e em menos de um minuto estava o carro na estrada e todos a caminho de onde é
que já não lembro!
Mas nem sempre
foram dormidas assim tão incómodas.
Nas visitas de
trabalho que andei a fazer na Europa em 1961, começámos (minha mulher e eu) por
ficar numa pensãozeca em Versailles, porque ali perto estive dois meses a
estudar, e o Centre d’Etudes ficava a uns escassos centos de metros. Pension
Regina, parecia do século XVI, muito barata, o banheiro no andar de baixo, que
se acessava por uma escada externa (!!!), mas assim mesmo confortável e com
ótima comida. Uma pensão “de famille”, de velhinhos! Um dia, para ler já não
sei que problema que se passava em França comprei o jornal Le Monde. Quando a
dona da pensão me viu a ler um jornal comunista ficou aterrada! Tive que lhe
explicar que era profundamente anticomunista e que nem sabia que o jornal era
vermelão. Estava simplesmente a ler uma notícia. Creio que ficou mais tranquila
mas foi dizendo que não queria comunistas na sua pensão!
Estávamos perto
de Paris e muitas vezes ali íamos à noite ao teatro ou ópera, ou até para estar
com alguns amigos que lá conhecemos. Decidimos mudar para a capital, um hotel
ao lado da Gare de Saint Lazare, de onde saía o train que me levava em
poucos minutos para Versailles. Hotel ótimo, o nosso quarto tinha um banheiro
que dava para fazer uma academia, e na altura hospedava também uns quantos
pilotos da Força Aérea Portuguesa, em estágios, que, por diversas vezes os vi
“voando” baixinho com uma francesa para o quarto onde certamente treinavam
aterragens e decolagens!
Quando comecei a
correr por outras cidades de França, uma tarde decidimos ficar fora de Paris,
em Saint-German-en-Laye, e nada mais simpático nos apareceu do que o Pavillon
Henri IV, um “chiqué” sensacional. Não esqueço as almofadas! Gordas, fofinhas,
quando me deitei e a cabeça desceu por cima daquela delícia e se enterrou,
deixei de ver para os lados. Cheguei a perguntar se a minha mulher ainda estava
ali a meu lado! E de manhã um mata-bicho real!
Já não sei quanto
custou. Mas não lamentámos!
E sem lápis espetado nas costas!
Olhem o "chiqué" !
Na Cuca, avião
alugado, um monomotor, visita ao Chinguar na margem do rio Cuito, fronteira com
a Namíbia. Lá pró fim do mundo, no Sul! Quando aterrámos, meio da tarde, a
temperatura estaria em 42° C ! Só eu e o piloto, aguardámos na pista que alguém
da povoação nos viesse buscar, encolhidos debaixo da asa porque o calor e sol
nos queimavam. A ideia era ir ver como se negociava a cerveja
trans-fronteiriçamente (!) onde, apesar de haver um funcionário da fazenda, as
mercadorias passavam de um lado para o outro conforme as necessidades dos de cá
e dos de lá, sem taxas nem burocracias.
Fez-se noite, e
ali não havia hotel ou pensão, mas um dos comerciantes tinha em construção uma
casa perto da pista, naquela altura ainda só paredes e telhado. Portas e
janelas, nada. Lá se arranjaram duas camas, cada uma num quarto, e bons
cobertores porque naquela região semidesértica de altitude – uns 1.200 metros -
a temperatura de noite cai muitas vezes abaixo de zero. Como seria de
esperar despi-me, tirei botas e meias, que coloquei aos pés da cama, e dormi
como um justo! Sem frio.
De manhã, cara
lavada, vá de me vestir, mas não conseguia encontrar uma das meias! Como a casa
não tinha portas vislumbro lá fora, a poucos metros, uma cabra se deliciando a
comer a minha meia!
Segui viagem só com uma!
Aí por 1958, o
meu grande amigo – grande em todos os sentidos por devia medir uns 2 metros – a
simpatia em pessoa, de visita a Angola, pensou em comprar uma pequena fazenda
de café! Conseguimos saber que lá para os Dembos havia um indivíduo que se
enquadrava nos seus projetos. E aí vamos nós, estrada de lama, ao encontro do
preposto vendedor. Um mestiço, fala barato, bem disposto, tinha alguma
coisinha, bem pequena, mal definida, julgo, hoje, que sem documentação
conveniente, e uma casinha de madeira a cair de podre! Pois foi nessa casinha,
com uma única cama que o «proprietário» nos cedeu para passarmos a noite! Cama
horrível, encostada à parede, estreita para dois homens, um com 2 metros, o
Xico Manolete (Francisco de Andrade e Sousa) preposto comprador mandou-me
entrar para o lado da parede, pudicamente colocou a almofada entre os dois,
deitou-se e ficou com os pés de fora. Como se pode imaginar foi uma noite ótima,
até porque estava frio, as paredes tinham frechas por todos os lados e até no
teto. Acordamos cedo, não houve negócio e o melhor foi chegar a casa e tomar um
belo banho!
Da direita para a esquerda : Xico
Manolete, o ‘’ dono’’ do terreno, o vendedor fala-barato e o guia que nos levou até lá
Só mais duas
historinhas para não enjoar os leitores.
Já imaginaram o
que é passar uma noite, chuva torrencial, quatro caçadores sentados dentro de
um jeep só com uma capota de lona e sem nada nas laterais? Molhados até ao
tutano, tiritando de frio, dor no lombo e de caimbras, o jeep atolado na lama
esperando uma ponta de luz para estudar a situação e sair dali. Não caçámos
nada, além duma imensa estafa! Mas recorda-se, sempre, com saudade.
Em 1975 aí
estamos nós já refugiados no Rio de Janeiro, sem trabalho, a pouca grana a
acabar, um sufoco para tentar arranjar trabalho, as famílias em Portugal, o Zé
Perestrello, meu querido Pestrelão, miraculosamente conseguiu de uma tia a cedência
dum pequeno apartamento, de um quarto com duas camas, mini sala e super mini
cozinha. ÓTIMO. E eu fui um dos que usufruiu, uma vez mais, dessa amizade,
porque dinheiro para hotel... já era.
Eu fazia o
jantar, o Zé não deixava ninguém lavar a louça – ele era impecável – depois
tomava o seu duche, vestia um lindo roupão de seda, sem nada mais por baixo e
estendia-se no sofá para ver a grande novela Gabriela. Adormecia em poucos minutos! Entretanto o roupão, de
seda, ia escorrregando para os lados abria-se todo e o Zézão roncava com os
pudendos todos ao léu ! Um espetáculo digno do Olimpo! Quando soavam os
dois trrim-trrim da Globo indicando o
intervalo, ele acordava, olhos semicerrados e dizia-me : ‘‘Vou dormir ; amanhã contas-me o resto
da novela’’. Nunca contei nada. Nem tempo houve para isso!
Vou ficar por
aqui com as ‘‘dormidas’’.
Contradizendo
Manuel Bandeira :
Não quero ir pra
Pasárgada,
Lá nem conheço o
rei.
Tenho a mulher que
escolhi
E uma cama que
comprei.
27/08/2017