De Angola, com muita saudade
No
meu livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco” faço um pequeno e extremamente
incompleto “retrato”, entre outros, de um grande amigo que há tempos descansa
das agruras da vida.
Sempre
o recordo com imensa saudade e, apesar de ter perdido a sua companhia, é
impossível não sorrir, ou rir, lembrando a sua contagiante alegria e muita
amizade.
Houve uma época da minha vida em que fui, durante alguns anos o responsável comercial das famosas, e muito saudosas cervejas
.
Uma
ou outra vez reunia-se todo o pessoal comercial para lhes falar sobre técnicas
de venda, psicologia do vendedor
e do comprador, etc., essas coisas um bocado “chatas” sobretudo para quem tinha
o “carrego” de botar faladura.
Duravam esses “cursos” talvez uma hora de
manhã e outra à tarde, de que já não recordo bem porque se passaram há... mais de meio século!
Não
havia computadores, nem modernices, e então munia-me de folhas de papel almaço
com frases chaves, sobre isso tentava
transmitir alguma coisa e, sobretudo, segurar o máximo de tempo possível a
atenção dos pacientes ouvintes, sem os cansar muito!
Técnica
de vendas é como qualquer técnica: tem que se estudar e aprender, apesar de
haver “vendedores natos”, como
natos há engenheiros, curandeiros, escritores, etc.
O mais velho dos que tinha que me ouvir, nas
sessões da parte da tarde, dava-lhe um peso nas pálpebras, a que se costuma
chamar sono, a que não conseguia resistir; um dos mais antigos empregados nessa
Companhia, sempre como
Encarregado das Relações Públicas, o Renato Lima.
O
Renato, além de ser um ótimo companheiro e um grande amigo, era um bom garfo, e
apreciava, como ninguém, um bom petisco.
Uma
das frases chaves, que deveriam ser repetidas até hoje, todos os dias, em todo
o lugar, é:
“SE
QUERES COMANDAR A NATUREZA TENS QUE OBEDECER ÀS SUAS LEIS”.
A
seguir era indicado o autor da frase: Francis Bacon!
O
Renato só ouviu o bacon! Nada tinha ouvido até ali. Abre os olhos e diz:
- Ah! Bacon eu adoro.
Foi
uma gargalhada geral!
Em
nossa casa, Luanda, criou-se a certa altura aquilo que se chamou o “almoço dos solteiros”. Como era
comum os portugueses a cada três ou quatro anos terem direito a férias na
“Metrópole”, muitos casais mandavam a mulher e filhos à frente, muitas vezes
para aproveitarem algum período de aulas em Portugal, ficando os maridos um
tempinho “solteiros”.
O tal almoço não obrigava a convidar ninguém
porque a regra era simples:
quem estiver solteiro às quartas feiras podia aparecer.
Nunca
sabíamos quantos convivas viriam, mas nunca isso criou problema.
O
Renato era solteiro... mesmo. Divorciado, só bem mais tarde arranjou uma
companheira, excelente pessoa, baixinha, com quem ficou até fechar os olhos, a
quem ele chamava, carinhosamente, “o pincelinho”!
Quando
podia aparecer para o almoço, de manhã telefonava a minha mulher fazendo sempre
a mesma pergunta:
- O almoço é do livrinho?
Livrinho
era, e ainda é até hoje, o livro de receitas, escrito à mão com tudo quanto de
boa mesa se havia recolhido até à altura, de ambas as mães, algumas tias e até
avó, que Dona Bela lia, ar de magister, ao cozinheiro,
para que este seguisse as convenientes e muito boas instruções culinárias.
Depois deixava a cozinha, e o cozinheiro que, à medida que tinha ouvido as
instruções culinárias e os vários passos e tempos para a feitura do petisco, a
tudo assentira com a cabeça como se tivesse decorado o “andamento” do concerto.
Por fim dava o seu toque, quase
sempre tocando um tanto ou quanto no garrafão de vinho tinto, à disposição da
cozinha (e do cozinheiro, que num tempo foi o “magnífico” Miguel!) e do patrão
que nunca deixou de, às refeições, mesmo tendo cerveja de graça, devido
à função, beber esse incomparável remédio vinífero.
Esse telefonema era a forma simpática com que
o Renato marcava presença nesses almoços!
Quando, como tantos de nós, foi obrigado a
sair de Angola, passou pelo Brasil onde não se deu bem e “retornou” a Portugal.
Já estava entrado em idade e as oportunidades de trabalho não apareciam, até
porque naquela altura os amigos também sofriam a era pós- 25 de Abril e não o
conseguiam ajudar. Não tardou que a saúde se deteriorasse.
Um belo dia, em Lisboa, numa rua, cruza-se
com uma senhora da idade dele, aí pelos setenta anos, que lhe cai nos braços!
De entrada o Renato não a reconheceu, mas logo viu a sua primeira namorada dos
tempos de adolescente e que nunca mais tinha visto desde...! Foi uma festa a o
que “Pincelinho” assistia sem saber o que dizer.
A antiga namorada então diz-lhe que tinha
casado, o marido fizera uma boa fortuna, já tinha morrido fazia tempo, e vivia sozinha,
felizmente com bastante dinheiro.
Fez uma proposta, no mínimo inusitada: Venham os dois viver comigo (“Honnit doit...”).
Tenho uma casa grande, dinheiro e vocês não têm com que se preocupar com
finanças.
Proposta aceite. Lá vai o Renato e seu
Pincelinho para novo e aconchegante Lar.
A Saúde agravou-se e não tardou a ter que ser
internado. A ex, sempre carinhosa, fez com que fosse para uma das melhores
clínicas de Lisboa. Cara. Mas para ela isso não significava nada.
Ainda o fui lá visitar. Reconheceu-me, mas
pensava que estava em Luanda. Fechou os olhos pouco tempo depois e as “duas viúvas”
do Renato continuaram a viver juntas, amparando-se assim na terceira idade.
Bonita história de Amor.
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Nessa
longínqua e simpática época, precisamente em 1963, chegou a Luanda o Movimento
dos Cursos de Cristandade.
Com
algum esforço e argumentação pouco convincente me apanharam, e me meteram três
dias numa espécie de clausura com mais uns trinta leigos e meia dúzia de padres.
Lá
dentro fomos divididos em grupos de dez, tendo cada grupo um padre que fora
convidado, não para ouvir a palavra do Evangelho, mas para apreender o
Movimento e poder expandi-lo.
No
meu grupo ficou um padre, escuro como um tição, idade indefinida, baixinho,
cara redonda, batina sempre impecavelmente branca, mas que não parecia ter
quaisquer intenções de mostrar os dentes, não só para os leigos como até para
alguns dos outros padres.
Enquanto
lá estávamos chegou-nos, à boca fechada, que aquele padre, já cónego, teria
ligações com o MPLA, considerado na altura mais ou menos como o principal grupo terrorista!
E
o “Curso” chegou ao fim. Reunião final, domingo já noite, todos reunidos, onde foi pedido a cada um que desse o seu testemunho da vivência que acabara de
ter.
Eu,
que me entusiasmo com relativa facilidade – pelo menos quando andava pelos trinta anos! – saí com o coração cheio.
Mas
todos estávamos preocupados com a cara fechada
do cónego, receando até que viesse a dizer que aquilo tinha sido uma perda de
tempo. Quando chegou a vez de se manifestar, levantou-se, tranquilo, e disse:
-
Pela primeira vez na minha vida vi uma marreta que pode derrubar o muro que separa
os brancos dos pretos.
Nada mais precisou dizer para entusiasmar
aquele grupo, todo.
Eu logo quis aproximar-me dele, e passei a
assistir às missas que ele dizia. As suas homilias eram algo que ninguém queria
que acabassem. Misturava cultura africana com a europeia, as fábulas e contos
tradicionais, acabando sempre por lhes dar o sentido da Boa Nova.
Homem duma cultura e inteligência raras.
Um dia procurei-o e perguntei-lhe se ele
queria fazer o favor de almoçar um dia em nossa casa. Disse logo que sim.
E apareceu, batina quase brilhando de tão
branca, um sorriso que enquanto não apareceu a todos preocupou, e logo
acarinhou os nossos filhos, na altura ainda só (!) cinco.
A nossa casa viveu um momento grande. Os
nossos filhos não largavam o senhor a quem chamavam de tio.
E assim o cónego Eduardo André Muaca, entrou
para a nossa família, como o tio Muaca,
e quando nos encontrávamos perguntava: Como
estão os meus sobrinhos?
Em 1967, no batizado do "sobrinho" Tiago
Um
dia, 1966, desapareceu de Luanda, de Angola. Sabíamos dos seus contatos com
dirigentes do MPLA e imaginei que tivesse sido trama da famigerada PIDE. Fiquei
furioso e triste. Consegui o endereço dele, estava em Roma, e escrevi-lhe,
querendo saber o que se passava.
Respondeu-me
que tinha sido chamado por Sua Santidade, o Papa Paulo VI para estudar,
licenciou-se em Filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana em 1968. Em
seguida foi para Madrid diplomar-se em Pastoral Catequética e frequentou o
curso de Sociologia Religiosa em Lovaina na Bélgica. Regressado a Angola,
eleito Bispo Titular de Isola e Auxiliar de Luanda e ordenado a 31 de Maio de
1970 na igreja de S. Paulo.
Foi
recebido com imensa alegria.
Na
véspera da sua ordenação, em Luanda, ainda conseguiu um tempinho para passar em
nossa casa e deixar-nos um convite para assistirmos à cerimónia, nos lugares
reservados à “família”!
Foi
o primeiro padre natural de Angola, de Cabinda, a ser ordenado bispo.
Em
1973 foi nomeado Bispo de Malanje. Viveu momentos dificílimos na fase da
transição para a independência de Angola com calúnias, ameaças e detenções, que
abalaram muito a sua saúde. A detenção na qual foi ameaçado de morte foi na
Missão de Lukembo na diocese de Malanje.
Em
Agosto de 1975 é nomeado Arcebispo-Coadjutor de Luanda e em janeiro do ano
seguinte passou a Arcebispo Metropolitana cargo que exerceu durante dez anos
(1975-1985) e que por motivos de saúde pediu a sua dispensa ao Papa João Paulo
II.
Muito
padeceu nesta situação. Com a proclamação da independência a situação mudou da noite para o dia. Devido a eclosão da guerra
houve uma grande fuga das aldeias para as cidades, um êxodo de milhares de
europeus para Portugal, uma fortíssima diminuição do pessoal missionário. Foram
confiscados e ocupados os internatos masculinos e femininos. Também foram
tomados e saqueados os edifícios, residências missionárias e missões. As
estruturas pastorais, sociais, económicas ficaram danificadas, é neste quadro
que D. Eduardo Muaca se encontrou quando
ascendeu a Arcebispo Metropolitana.
Não
admira que a sua saúde não tivesse aguentado.
Guardo
como preciosos momentos algumas cartas que nos escreveu.
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Porque
escrever duas pequenas memórias, de duas pessoas tão diferentes, e juntá-las?
Em
primeiro lugar porque ambos já partiram faz tempo, e continuam a fazer-me muita
falta.
Depois
porque sempre lembro que o dia 9 de outubro é o aniversário do nascimento dos dois.
O
Renato deveria fazer talvez cem anos. Há cerca de trinta nos deixou.
Dom
Eduardo Muaca faria 92.
Vou
beber hoje, já não às suas saúdes mas às minhas saudades.
Não
tarda que os vá encontrar.
Que
bom ter tido estes amigos.
9 de outubro de 2016
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