domingo, 9 de outubro de 2016



De Angola, com muita saudade

No meu livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco” faço um pequeno e extremamente incompleto “retrato”, entre outros, de um grande amigo que há tempos descansa das agruras da vida.
Sempre o recordo com imensa saudade e, apesar de ter perdido a sua companhia, é impossível não sorrir, ou rir, lembrando a sua contagiante alegria e muita amizade.
Houve uma época da minha vida em que fui, durante alguns anos o responsável comercial das famosas, e muito saudosas cervejas
 .
Uma ou outra vez reunia-se todo o pessoal comercial para lhes falar sobre técnicas de venda, psicologia do vendedor e do comprador, etc., essas coisas um bocado “chatas” sobretudo para quem tinha o “carrego” de botar faladura.
Duravam esses “cursos” talvez uma hora de manhã e outra à tarde, de que já não recordo bem porque se passaram há... mais de meio século!
Não havia computadores, nem modernices, e então munia-me de folhas de papel almaço com frases chaves, sobre isso tentava transmitir alguma coisa e, sobretudo, segurar o máximo de tempo possível a atenção dos pacientes ouvintes, sem os cansar muito!
Técnica de vendas é como qualquer técnica: tem que se estudar e aprender, apesar de haver “vendedores natos”, como natos há engenheiros, curandeiros, escritores, etc.
O mais velho dos que tinha que me ouvir, nas sessões da parte da tarde, dava-lhe um peso nas pálpebras, a que se costuma chamar sono, a que não conseguia resistir; um dos mais antigos empregados nessa Companhia, sempre como Encarregado das Relações Públicas, o Renato Lima.
O Renato, além de ser um ótimo companheiro e um grande amigo, era um bom garfo, e apreciava, como ninguém, um bom petisco.
Uma das frases chaves, que deveriam ser repetidas até hoje, todos os dias, em todo o lugar, é:
SE QUERES COMANDAR A NATUREZA TENS QUE OBEDECER ÀS SUAS LEIS”.
A seguir era indicado o autor da frase: Francis Bacon!
O Renato só ouviu o bacon! Nada tinha ouvido até ali. Abre os olhos e diz:
- Ah! Bacon eu adoro.
Foi uma gargalhada geral!
Em nossa casa, Luanda, criou-se a certa altura aquilo que se chamou o “almoço dos solteiros”. Como era comum os portugueses a cada três ou quatro anos terem direito a férias na “Metrópole”, muitos casais mandavam a mulher e filhos à frente, muitas vezes para aproveitarem algum período de aulas em Portugal, ficando os maridos um tempinho “solteiros”.
O tal almoço não obrigava a convidar ninguém porque a regra era simples: quem estiver solteiro às quartas feiras podia aparecer.
Nunca sabíamos quantos convivas viriam, mas nunca isso criou problema.
O Renato era solteiro... mesmo. Divorciado, só bem mais tarde arranjou uma companheira, excelente pessoa, baixinha, com quem ficou até fechar os olhos, a quem ele chamava, carinhosamente, “o pincelinho”!
Quando podia aparecer para o almoço, de manhã telefonava a minha mulher fazendo sempre a mesma pergunta:
- O almoço é do livrinho?
Livrinho era, e ainda é até hoje, o livro de receitas, escrito à mão com tudo quanto de boa mesa se havia recolhido até à altura, de ambas as mães, algumas tias e até avó, que Dona Bela lia, ar de magister, ao cozinheiro, para que este seguisse as convenientes e muito boas instruções culinárias. Depois deixava a cozinha, e o cozinheiro que, à medida que tinha ouvido as instruções culinárias e os vários passos e tempos para a feitura do petisco, a tudo assentira com a cabeça como se tivesse decorado o “andamento” do concerto. Por fim dava o seu toque, quase sempre tocando um tanto ou quanto no garrafão de vinho tinto, à disposição da cozinha (e do cozinheiro, que num tempo foi o “magnífico” Miguel!) e do patrão que nunca deixou de, às refeições, mesmo tendo cerveja de graça, devido à função, beber esse incomparável remédio vinífero.
Esse telefonema era a forma simpática com que o Renato marcava presença nesses almoços!
Quando, como tantos de nós, foi obrigado a sair de Angola, passou pelo Brasil onde não se deu bem e “retornou” a Portugal. Já estava entrado em idade e as oportunidades de trabalho não apareciam, até porque naquela altura os amigos também sofriam a era pós- 25 de Abril e não o conseguiam ajudar. Não tardou que a saúde se deteriorasse.
Um belo dia, em Lisboa, numa rua, cruza-se com uma senhora da idade dele, aí pelos setenta anos, que lhe cai nos braços! De entrada o Renato não a reconheceu, mas logo viu a sua primeira namorada dos tempos de adolescente e que nunca mais tinha visto desde...! Foi uma festa a o que “Pincelinho” assistia sem saber o que dizer.
A antiga namorada então diz-lhe que tinha casado, o marido fizera uma boa fortuna, já tinha morrido fazia tempo, e vivia sozinha, felizmente com bastante dinheiro.
Fez uma proposta, no mínimo inusitada: Venham os dois viver comigo (“Honnit doit...”). Tenho uma casa grande, dinheiro e vocês não têm com que se preocupar com finanças.
Proposta aceite. Lá vai o Renato e seu Pincelinho para novo e aconchegante Lar.
A Saúde agravou-se e não tardou a ter que ser internado. A ex, sempre carinhosa, fez com que fosse para uma das melhores clínicas de Lisboa. Cara. Mas para ela isso não significava nada.
Ainda o fui lá visitar. Reconheceu-me, mas pensava que estava em Luanda. Fechou os olhos pouco tempo depois e as “duas viúvas” do Renato continuaram a viver juntas, amparando-se assim na terceira idade.
Bonita história de Amor.

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Nessa longínqua e simpática época, precisamente em 1963, chegou a Luanda o Movimento dos Cursos de Cristandade.
Com algum esforço e argumentação pouco convincente me apanharam, e me meteram três dias numa espécie de clausura com mais uns trinta leigos e meia dúzia de padres.
Lá dentro fomos divididos em grupos de dez, tendo cada grupo um padre que fora convidado, não para ouvir a palavra do Evangelho, mas para apreender o Movimento e poder expandi-lo.
No meu grupo ficou um padre, escuro como um tição, idade indefinida, baixinho, cara redonda, batina sempre impecavelmente branca, mas que não parecia ter quaisquer intenções de mostrar os dentes, não só para os leigos como até para alguns dos outros padres.
Enquanto lá estávamos chegou-nos, à boca fechada, que aquele padre, já cónego, teria ligações com o MPLA, considerado na altura mais ou menos como o principal grupo terrorista!
E o “Curso” chegou ao fim. Reunião final, domingo já noite, todos reunidos, onde foi pedido a cada um que desse o seu testemunho da vivência que acabara de ter.
Eu, que me entusiasmo com relativa facilidade – pelo menos quando andava pelos trinta anos! – saí com o coração cheio.
Mas todos estávamos preocupados com a cara fechada do cónego, receando até que viesse a dizer que aquilo tinha sido uma perda de tempo. Quando chegou a vez de se manifestar, levantou-se, tranquilo, e disse:
- Pela primeira vez na minha vida vi uma marreta que pode derrubar o muro que separa os brancos dos pretos.
Nada mais precisou dizer para entusiasmar aquele grupo, todo.
Eu logo quis aproximar-me dele, e passei a assistir às missas que ele dizia. As suas homilias eram algo que ninguém queria que acabassem. Misturava cultura africana com a europeia, as fábulas e contos tradicionais, acabando sempre por lhes dar o sentido da Boa Nova.
Homem duma cultura e inteligência raras.
Um dia procurei-o e perguntei-lhe se ele queria fazer o favor de almoçar um dia em nossa casa. Disse logo que sim.
E apareceu, batina quase brilhando de tão branca, um sorriso que enquanto não apareceu a todos preocupou, e logo acarinhou os nossos filhos, na altura ainda só (!) cinco.
A nossa casa viveu um momento grande. Os nossos filhos não largavam o senhor a quem chamavam de tio.
E assim o cónego Eduardo André Muaca, entrou para a nossa família, como o tio Muaca, e quando nos encontrávamos perguntava: Como estão os meus sobrinhos?

Em 1967, no batizado do "sobrinho" Tiago

Um dia, 1966, desapareceu de Luanda, de Angola. Sabíamos dos seus contatos com dirigentes do MPLA e imaginei que tivesse sido trama da famigerada PIDE. Fiquei furioso e triste. Consegui o endereço dele, estava em Roma, e escrevi-lhe, querendo saber o que se passava.
Respondeu-me que tinha sido chamado por Sua Santidade, o Papa Paulo VI para estudar, licenciou-se em Filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana em 1968. Em seguida foi para Madrid diplomar-se em Pastoral Catequética e frequentou o curso de Sociologia Religiosa em Lovaina na Bélgica. Regressado a Angola, eleito Bispo Titular de Isola e Auxiliar de Luanda e ordenado a 31 de Maio de 1970 na igreja de S. Paulo.
Foi recebido com imensa alegria.
Na véspera da sua ordenação, em Luanda, ainda conseguiu um tempinho para passar em nossa casa e deixar-nos um convite para assistirmos à cerimónia, nos lugares reservados à “família”!
Foi o primeiro padre natural de Angola, de Cabinda, a ser ordenado bispo.
Em 1973 foi nomeado Bispo de Malanje. Viveu momentos dificílimos na fase da transição para a independência de Angola com calúnias, ameaças e detenções, que abalaram muito a sua saúde. A detenção na qual foi ameaçado de morte foi na Missão de Lukembo na diocese de Malanje.
Em Agosto de 1975 é nomeado Arcebispo-Coadjutor de Luanda e em janeiro do ano seguinte passou a Arcebispo Metropolitana cargo que exerceu durante dez anos (1975-1985) e que por motivos de saúde pediu a sua dispensa ao Papa João Paulo II.  
Muito padeceu nesta situação. Com a proclamação da independência a situação mudou da noite para o dia. Devido a eclosão da guerra houve uma grande fuga das aldeias para as cidades, um êxodo de milhares de europeus para Portugal, uma fortíssima diminuição do pessoal missionário. Foram confiscados e ocupados os internatos masculinos e femininos. Também foram tomados e saqueados os edifícios, residências missionárias e missões. As estruturas pastorais, sociais, económicas ficaram danificadas, é neste quadro que D. Eduardo Muaca se encontrou quando ascendeu a Arcebispo Metropolitana.
Não admira que a sua saúde não tivesse aguentado.
Guardo como preciosos momentos algumas cartas que nos escreveu.

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Porque escrever duas pequenas memórias, de duas pessoas tão diferentes, e juntá-las?
Em primeiro lugar porque ambos já partiram faz tempo, e continuam a fazer-me muita falta.
Depois porque sempre lembro que o dia 9 de outubro é o aniversário do nascimento dos dois.
O Renato deveria fazer talvez cem anos. Há cerca de trinta nos deixou.
Dom Eduardo Muaca faria 92.
Vou beber hoje, já não às suas saúdes mas às minhas saudades.
Não tarda que os vá encontrar.
Que bom ter tido estes amigos.

9 de outubro de 2016


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