África
Vida Vivida - 2
Mais
algumas memórias, rebuscadas com saudade e tristeza. O trazê-las de novo à vida
faz que não desapareçam.
Num
dos últimos textos falei de um grande amigo, o Renato Lima, e só me faz bem relembrar
mais uma pequena passagem da sua vida. Como já disse o Renato era um bom garfo
e um razoável copo. Nada demais, e sobretudo um grande e alegre companheiro.
No
tempo em que ainda se caçava, com disciplina e sem destruir o meio ambiente, lá
fomos, num fim de semana, um grupo normalmente “capitaneado por outro Grande
Amigo, o Zé Neto – José Ferreira Neto – grande caçador e também um magnífico
companheiro.
Tanto
o Renato como o Zé Neto teriam uns 15 a 17 anos mais do que eu, mas considerávamo-nos
como irmãos.
Renato Lima aí por 1960 e... tal
Nesse
dia, depois de muito penar, caçou-se um antílope, talvez um Sembo ou Nunce (Redunca arundinum), macho solitário, bem
grandinho, que devia pesar uns 65 a 70 kilos. E sempre a carne destes antílopes
era coisa de reis. Melhor, de imperadores!
De
Portugal, por navio, um amigo tinha mandado ao Zé Neto dois garrafões dum vinho,
safra “especial” da sua propriedade! Então, face a essa gulosa perspectiva
assentou-se que seria em sua casa que se faria a almoçarada acompanhada da
viajada preciosidade.
Como
eu era parte do espólio cinegético, propus levar mais um convidado, o Renato,
que não conhecia os donos da casa.
A
dona da casa, Arlete era uma excelente pessoa. Nunca a vi reclamar de nada, e
sempre recebia os amigos com uma especial lhaneza. Uma senhora e mãe de família
que sempre admirei e muito estimei. E tinha um ótimo cozinheiro.
Zé Neto, grande amigo e grande
caçador
Antes
do almoço chegar à mesa, abre-se o primeiro garrafão... estragado! E o segundo.
As rolhas não aguentaram a viagem e o tal “magnífico”... azedou. (Por isso o
bom vinho de garrafão seguia de Portugal para África com um grande capacete de
gesso). A garrafeira da casa supria esse lamentável prejuízo, além das Cucas que
eu podia providenciar. Entretanto avança, sala dentro o magnífico Sembo, assado,
lindas batatas bem coradas à ilharga, que se foi sempre regando, indiretamente,
com uns quantos copos de vinho ou de cerveja.
No
fim do pantagruélico repasto, o Renato, com os seus 90 ou mais kilos estava com
um tremendo peso nas pálpebras e só conseguiu dizer que precisava dormir um
pouco. Ninguém causou problema.
-
Nesta casa está à vontade.
Foi-se
deitar na cama de um dos quatro filhos e roncou umas boas duas horas! Quando
acordou estava envergonhadíssimo. Mas fazer cerimónia, em Angola, entre amigos,
era coisa inexistente, apesar de ir dormir a sesta quando se vai pela primeira
vez a casa de alguém...
Voltemos
ao meu secretário, o famoso António
Como
disse em texto anterior, o António era o guardião da minha casa quando eu me
ausentava de Benguela, antes da minha mulher lá ter ido.
E
também contei que tinha ido fazer um estágio numa fábrica na África do Sul. No
final do estágio, e do jantar de despedida, a fábrica entregou a cada um seu
diploma, constando que tinha feito o estágio, de tal a tal dia, assinado por
dois diretores, e autenticado, como
era de praxe, com um selo de lacre e
duas fitinhas de gorgorão (também sei
coisas femininas!) nas cores vermelha e amarela, as cores das máquinas. Muito
bonitinho.
Um
mês ou dois depois do regresso, da sede da Lusolanda, em Luanda, o patrão
mandou dizer-me que devia emoldurar o diploma e colocá-lo na loja para valorizar
a nossa organização perante os clientes. Tudo bem.
Como
a casa era espaçosa para um jovem casal, um dos quartos serviu durante muito
tempo para guardar as tralhas que aos poucos se iam arrumando. Em casa dei
volta a tudo, sobretudo nesse quarto da arrumação, que era uma desarrumação,
com o pouco que tínhamos no princípio da nossa vida, mas o tal de diploma,
aparecer é que nada. A minha mulher já estava lá em casa, e nada sabia do
bendito diploma. Mistério!
Mesmo
com a dona de casa em casa, no início da sua estadia, quase todos os dias,
depois do trabalho o António ia até lá, para ajudar a arrumar caixas e
minudências, ganhando assim mais um trocado.
O
António era um tipo sensacional.
Foi
ele que me ajudou a desencaixotar os trastes, idos de Lisboa, que em Angola
viraram imbambas ou bicuatas.
Bom
a conversa está muito boa, mas e o diploma? Cadê o diploma?
É
verdade. Depois de me certificar que não o encontrava, conclui que só o António
poderia saber do seu paradeiro, visto ser a única pessoa, além do casal, que
tinha acesso a nossa casa, e àquele quarto, donde nunca, nunca, tirou uma
migalha. Já tínhamos contratado um cozinheiro, mas além mim e da minha mulher
só ele entrava no quarto que tinha espalhado no chão um monte de coisas, como
louças, livros, bibelôs, etc. Não só não tínhamos móveis
suficientes onde os guardar, precisavam de ser separados e arrumados, mesmo que
ficassem no chão.
Ali,
algures, por cima daquela tralha, daquela bagulhada,
tinha sido guardado o diploma.
O
António quando lhe falei nisso fez-se vermelho (é verdade, sim, os pretos
também coram, lá por terem a pele escura, vê-se muito bem) e quase jurou que
não tinha visto o tal papel bonitinho.
Cacei
o mistério!
-
António! Eu quero esse diploma aqui, amanhã! Sem falta.
No
amanhã o diploma estava lá! Um pouco
amarrotado com a viagem de ida e volta até casa do António, claro, mas... o
lacre e as fitinhas de gorgorão não regressaram!
Aquelas
fitinhas e o lacre foram mais fortes do que a resistência do António contra
tentações! Pratos, copos e outros quejandos ele conhecia bem, havia visto
muitos toda a sua vida, mas um papel com aquele enfeite bonito...
Resultado:
não se emoldurou o diploma, não voltei a falar nele ao pobre homem que caíra
naquela terrível tentação, guardei-o por
muito tempo, amarrotado e sujo, porque a história me enternecia, e por culpa
agora das nossas muitas outras viagens mundo fora, com a casa às costas, o
diploma... sumiu!
Ficou a saudade.
Grande António! Saravá António!
--- * ---
O cozinheiro e as
pescadinhas
Como
não é difícil de imaginar a dona da casa... não demorou a ficar à espera do
primeiro filho. E passou por aquela clássica fase do enjoo!
Um
dia chego a casa para almoçar, mamãe deitada, enjoada, nem sequer podia ouvir
falar em comida! Almocinho, que é bom, nada!
O
cozinheiro aguardava instruções, paciente, sentado na mureta exterior da
entrada da cozinha, em equilíbrio de fazer inveja ao Cirque du Soleil, e a uns
4 ou 5 metros de altura dormia que nem um justo, que era.
Passo-lhe
a mão por fora, para que ele não se assustasse quando o chamasse, não fosse
cair dali abaixo, dou um grito (meio grito!) perto do ouvido dele, que em vez
de se assustar, abriu tranquilamente os olhos.
-
Sebastião (faz de conta que ele se chamava assim), não tem almoço!
-
Não, patrão.
-
E agora?
-
Se o patrão quiser eu vou ali ao mercado e compro umas pescadinhas.
-
Quando custam?
-
Um e quinhenta, seis. Achei um disparate. Seis pescadinhas por um angolar e
meio! Dei-lhe meia cinco, isto é,
dois e cinquenta, e lá foi ele. E eu fiquei à espera que ele voltasse a dizer
que o dinheiro não tinha chegado.
O
mercado era perto da nossa casa. Não tardou muito o Sebastião voltou com as seis
pescadinhas, lindas, fresquinhas, enfiadas num junco e... um angolar de troco!
Fê-las
de “rabo na boca”, batatinhas cozinhas, eu almocei correndinho e voltei para o
trabalho.
Mamãe,
mesmo o cheiro, magnífico, das pescadinhas não quis testar!
Ah!
Como eram lindos aqueles tempos!
E
como era, e ainda é, maravilhoso o peixe daquelas águas!
23/10/2016
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