terça-feira, 18 de outubro de 2016



África
Vida Vivida

Quando dizíamos à nossa primeira neta para ela “puxar pela cabeça”, ela tentava, com as mãos, puxar a cabeça para cima!
Agora sou eu que puxo pela cabeça para ver o que ainda lá dentro encontro de historinhas “daquele tempo”, quando o mundo girava à nossa volta, visto que agora somos nós que giramos à volta da canalhice institucionalizada!
Eram bons tempos? Eram, sim, sem dúvida.
Sem computadores, internet, desenfreada especulação financeira, os povos primitivos, alguns, ainda felizes e sem fome, ignorados pelos “simpáticos” exploradores/cooperantes, havia alguns resquícios de escravidão, como hoje continuam, enfim, mas quer parecer que havia mais respeito, mais ética, mais hombridade nas relações, individuais e mundiais.
Mas vamos às historinhas.

A primeira galinha “à cafreal”!
Chegado a Angola, Luanda, começo de agosto de 1954, quinze dias depois fui levado pelo meu colega, e chefe (!), a uma volta pelo interior para conhecer e me acostumar àquela terra.
Primeira visita na Quibala.

Uns irmãos, transmontanos, cujo nome já estão fora do meu arquivo cerebral, estavam a montar, ou organizar, uma fazenda. O mais novo assumiu essa tarefa enquanto os dois mais velhos continuavam a trabalhar para arranjarem o necessário dinheiro. A visita baseava-se numa consulta para a compra de um trator, e implicava uma demonstração.

1954 – Com o Soba da Quibala

De manhã, trator a postos, um pouco de terreno arado, discussão sobre os mais indicados implementos, condições de pagamento e outros assuntos chatos, chegou entretanto o meio dia e todos com os estômagos a reclamar.
O preposto cliente tinha um único ajudante angolano para as todas tarefas necessárias, inclusive cozinhar. Era o Lisboa.
Enquanto o fazendeiro foi à “cidade” buscar uns garrafões de vinho, o meu chefe e eu ficámos a colaborar com o “mestre” Lisboa para apanhar uma das muitas galinhas que já ali criavam, à solta. Foi uma festa! O Lisboa fazia de goleiro enquanto nós corríamos atrás delas e as encaminhávamos para que ele as apanhasse. Lisboa voava, mas as ladinas aves sempre “metiam” gol. Eu já chorava de tanto rir, quando finalmente ele cai em cima de uma penosa, mete-lhe a indispensável faca na goela, depena-a e começa a assar, sempre com um punhado de penas na mão, que mergulhava num copo cheio de gindungo (piripiri) e pincelava a dita.
Entretanto o fazendeiro chegara com o vinho, fomo-nos sentar dentro da cubata improvisada, mas que, à boa moda transmontana, tinha pendurado do teto um magnífico presunto! Talvez até de Chaves.
Lisboa junto ao lume virando e pincelando a galinha, e nós, confortavelmente sentados em caixotes ou pedaços de árvores, cortando pequenas lascas do presunto, uns pedaços de pão (bom) e bebendo uns tragos.
Chegou a galinha! Linda. Gorda. Bem assada. Rapidamente destroçada e dividida, parte entregue ao artista da cozinha, e vá de saborear aquela maravilha.
O gindungo fora generosamente aplicado. As beiças ardiam desde perto do nariz até quase ao queixo, como se fossem elas que tivessem estado no fogo. O vinho, tinto de garrafão de capacete, num instante secou.
Já não lembro se o meu chefe fechou negócio. O Norte de Angola era área dele. A minha ficou o Sul.
Mas o que até hoje lembro com uma saudade imensa é do Lisboa e da galinha. A melhor galinha que comi em toda a minha vida!
*          *          *
O meu “ajudante”.
Na Lusolanda, o meu primeiro trabalho em Angola, em Benguela (terra de tanta saudade), eu era o responsável pelo departamento de máquinas agrícola na metade sul de Angola.
Na loja, que incluía, no stand de vendas, o meu lugar de trabalho (mesa e um pequeno armário com catálogos e arquivos), depósito de peças lá atrás e mais um pátio para outras máquinas e caixotes ainda por abrir, além de mim, agora “chefe”, trabalhava o encarregado do depósito, o Mário Brás, um pseudo comunista, que me divertia em filosofias e discussões políticas, e o ajudante, António, super humilde, atencioso, sempre pronto a atender qualquer pedido que lhe fizesse.

O António (ao fundo, a minha mesa e a estante)

Volta e meia precisava duma ferramenta, chamava o António, e dizia:
- Vai lá dentro e traz-me...
Não tinha tempo de dizer o resto. António, prestimoso, corria lá dentro para ir buscar... o que?
Apanhava a primeira coisa que lhe viesse à mão, e voltava então, ar envergonhado, mãos atrás das costas, segurando qualquer objeto! Eu tentava ver o que ele trazia e quando descobria, dizia-lhe
- António: você nem ouviu o que disse “Eu queria um martelo!”
António, sorrindo, feliz, mostrava então que tinha trazido “o” martelo! Mas não era o que eu precisava.
- Muito bem. Agora escuta e não vai embora. Traz-me um alicate (ou qualquer outra coisa).
Vapt, vupt, António em poucos segundos estava de volta com o requerido alicate!
Esta cena repetiu-se inúmeras vezes, mas o António nunca deixou de querer resolver tudo a correr.

António, secretário particular
Os primeiros quase três meses em África, vivi-os “solteiro”. Já casado, tive que para lá seguir sozinho porque nos planos da empresa havia, além de uma estadia de duas semanas na África do Sul, num estágio na fábrica da Massey-Harris em Vereeniging, cerca de 50 kms a sul de Johannesburg, e percorrer parte do interior de me estava atribuído, para começar a conhecer o país, e, óbvio, alguns agricultores.
De Portugal levara uns quantos móveis, tinha alugado casa, que fui montando com a ajuda do “secretário particular” que nas minhas ausências dormia lá para “tomar conta”.
Estando em Benguela o programa era simples. No fim do dia de trabalho, montava na minha bicicleta, António sentado no quadro e lá íamos até casa.
À noite saíamos, na mesma condição veicular, levava o António até perto da casa dele e eu ia jantar.
O “chefe”, sua viatura (de dois lugares e um “cavalo” de força)
 e a casa alugada (o andar de cima – ótimo!)

Uma noite, cortando caminho por ruas pouco frequentadas (eram todas assim, mas...) o farol da bicicleta aceso, surge no meio da rua uma cobra! Imensa! Aí com um metro e pouco? Talvez. António saltou logo fora e afastou-se como se tivesse visto o demo! Eu aproximei-me com a bicicleta. Consegui pôr-lhe a roda da frente em cima, atrás da cabeça, e... e depois? Ah! E depois disse ao António para arranjar alguma coisa, um pau, por exemplo, para matar a dita e aterrorizante serpente, que ninguém sabia se era venenosa ou não!
António lá encontrou a conveniente arma, mas não era capaz de se aproximar!
Naquele tempo o traje para andar em África era simples: calção e bota grossa, daquelas que se ensebavam com sebo de carneiro... e eram magníficas. Como a cabeça da bichinha estava imobilizada não foi difícil resolver o “perigo” com uma forte pisadela.
Só então, e depois de atirarmos o cadáver para um canto, António se aproximou, entrou no seu lugar na “viatura” e seguiu até casa!

Ainda tem outra história com o António, já contada no meu livro Se as minhas Imbambas falassem, escrito entre 1999 e 2000, mas vou deixar para a próxima!


17/10/2016 

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