África
Histórias e contos
Angola, como todos os países
africanos, usa muito provérbios. Faz parte inseparável da sua cultura, e têm
sempre uma profundidade grande. Vamos começar por um, angolano:
Muezu ua muadiakimi, a-u-sung ni ndunge
(*)
Barbas de homem idoso, com jeito se
puxam
(Com brandura, tudo se consegue)
Antes
de continuar com contos tradicionais, duas histórias de portugueses em Angola,
muito conhecidas da velha gente daqueles tempos, mas ainda hoje recordá-las é
um prazer grande.
Henrique
Galvão, que chegou a ser um homem da confiança do Salazar, depois o seu mais
terrível adversário, foi preso em Lisboa, evadiu-se da cadeia, fez o primeiro
sequestro mundial de um avião, da TAP, obrigando-o a ir para Casablanca, depois
repetiu a iniciativa ao sequestrar o navio “Santa Maria” que deu um tremendo
brado internacional, mas ninguém lhe pode negar que não tenha sido uma
personalidade de valor. Meio louco como o seu compadre Umberto Delgado. Aliás
não simpatizavam um com o outro!
Quando
Inspetor Superior Ultramarino, numa das suas inspeções a Angola, quis visitar
alguns Postos da Administração que jamais tinham sido inspecionados por alguém.
Chega
um dia a um desses postos, lá bem “perdido” no interior da savana africana; o
Chefe do Posto, espantado, vê ao longe a poeira levantada por um carro, caso
inédito, imaginando que seriam caçadores perdidos, espera que os viajantes
desembarquem. Sai um deles que se lhe dirige e se apresenta:
- Henrique Galvão, Inspetor Superior
Ultramarino.
O
Chefe de Posto sabia que nunca ali tinha ido qualquer superior a ele,
desconfiado, pensa que é piada e responde:
- Não precisa vir com essa conversa de
inspetor, que aqui jamais veio gente dessa. Mas nem por isso deixarei de o receber o
melhor que posso, neste fim do mundo onde tudo falta. Mas “papo” de inspetor é
que não tem graça!
Henrique
Galvão gostou da atitude do jovem chefe de posto, que acabou por saber que era
mesmo o “chefe máximo” da Administração Ultramarina, elogiou-o e parece que
depois o promoveu!
Lá
no canto sudeste de Angola havia um outro Posto, junto à fronteira com o
Sudoeste Africano, hoje Namíbia, igualmente isolado do mundo dos brancos, e
cuja função, além da política de ocupação, era mandar relatórios mensais sobre
as atividades da sua área: chuvas ou secas, quantos nascimentos, quantas
mortes, do povo e do gado, eventuais doenças que não havia nem brigas entre
etnias, enfim um sossêgo, para que se fosse tendo noção do que ali se passava
e, talvez, talvez, se fizesse no fim uma estatística geral de Angola! De mentirinha.
Como
é de calcular esses relatórios não tinham qualquer valor porque os nativos não
iam ao Posto declarar nascimentos e mortes, nem informavam quantas vacas ou
cabras tinham nascido. Era tudo “conversa fiada”, mas o Chefe do Posto tinha
que enviar, mensalmente, um relatório com esses dados, para o Administrador da
Circunscrição, que ficava, talvez a uns 200 ou 300 quilômetros de distância.
Essa entrega era confiada a um cipaio, uma espécie de polícia rural, a maioria
analfabeta. Chamava- a esse relatório, uma carta, mukanda!
Todos
os meses o cipaio tinha que percorrer centenas de quilômetros e levar as mikanda, que, possivelmente o
Administrador nem lia.
O
Chefe do Posto de tantas mandar acabou por considerar aquilo um trabalho idiota
e talvez inútil e decidiu agir de outra “melhor” forma: escreveu meia dúzia de pré monitorados relatórios, envelopou-os
todos, com as datas exteriores programadas e bem destacadas, entregou-os ao
cipaio e disse-lhe:
- Como você sempre fez, continuará a ir
todo o mês levar uma mukanda à Administração. Eu vou deixar todas as mikanda
aqui, e você, uma vez por mês tira a de cima e leva.
- Tá bem, patrão.
O
Chefe deixou o Posto onde nada havia para fazer, passou a fronteira e foi
passar uns meses de férias em
Portugal, certo de que ninguém daria por isso.
Mas
o cipaio no começo do terceiro mês olhou para as mikanda, ainda havia três para
entregar, e pensou:
- Para que ir lá todo o mês. Vou só mais
uma e levou logo tudo.
Se
bem pensou assim o fez e a manobra foi descoberta! O Chefe já não retornou ao
Posto!
Os
contos tradicionais africanos, quer sejam de Angola ou de outro país são quase
sempre de animais, por onde se tiram lições para os humanos e revelam um
profundo conhecimento da vida animal, e as transpõem, com humor, para a dos
homens.
Um tigre voltava para casa depois de um
dia a caçar, quando de repente se encontra num curral de carneiros. O tigre que
nunca havia visto um carneiro, aproximou-se com ar humilde e perguntou: “Como
te chamas, amigo?”
O carneiro, com a sua voz rouca e
colocando uma pata no peito do tigre respondeu: “Sou um carneiro. E tu quem
és?” “Um tigre”, respondeu cheio de medo. Mais morto do que vivo, despediu-se
do carneiro e correu para casa.
Um chacal vivia perto da casa do tigre e
este disse-lhe: “Amigo chacal, estou sem alento e meio morto do susto, pois
acabo de me encontrar com um animal de aspecto horrível, com uma grande cabeça,
que me disse com uma voz rouca: “Sou um carneiro.”
“Mas tigre que tonto és!” gritou, rindo
o chacal. “Deixar escapar um pedaço de carne tão tenra e assustar-se por um
carneiro! Porque? Amanhã de manhã iremos lá os dois e o comeremos juntos.”
No dia seguinte caminharam os dois para
o curral do carneiro, e quando este, que havia saído para ver onde encontrava
comida fresca, viu que no alto do morro apareciam o tigre e o chacal, temeu que
aquilo acabasse mal, correu para avisar a sua esposa, e disse-lhe: “Temo que
hoje seja o nosso último dia porque o tigre e o chacal vêm contra nós. O que
vamos fazer?” – Não te assustes – disse a esposa – toma um dos filhos nos teus
braços, sai com ele e belisca-o para que chore como se tivesse fome.” Assim fez
o carneiro, enquanto os dois companheiros se acercavam. Quando o tigre voltou a
ver o carneiro encheu-se de medo outra vez, queria voltar-se e ir embora, mas o
chacal, prevendo isso, amarrou-se ao tigre com uma tira de couro, e dizia-lhe -
“Anda. Segue-me ” - quando o carneiro gritou alto e forte enquanto beliscava o
filho:
- “Fizeste bem, amigo chacal, de
trazer-me este tigre para comer, pois ouves como chora o meu filho pela fome
que tem.”
Ao ouvir estas terríveis palavras o
tigre, apesar dos rogos do chacal, arrancou a correr cheio de pânico, o mais
rápido que podia e arrastou o chacal por montes e vales, através de arbustos
espinhosos e rochas chegando a casa com o chacal quase morto.
E assim se escapou o carneiro!
Ikumbakumba yoñhosi ihai imbi engolo
okunwa (**)
Os urros do leão não impedem a zebra de
beber água.
*
Provérbio quimbundo – Missosso – Vol
1 – Óscar Ribas
** Provérbio cuanhama – A sabedoria do povo Cuanhama – Padre
Charles Mittelberger
06/06/2016
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