quinta-feira, 25 de agosto de 2016




África
Histórias e contos


Angola, como todos os países africanos, usa muito provérbios. Faz parte inseparável da sua cultura, e têm sempre uma profundidade grande. Vamos começar por um, angolano:
Muezu ua muadiakimi, a-u-sung ni ndunge (*)
Barbas de homem idoso, com jeito se puxam
(Com brandura, tudo se consegue)
Antes de continuar com contos tradicionais, duas histórias de portugueses em Angola, muito conhecidas da velha gente daqueles tempos, mas ainda hoje recordá-las é um prazer grande.
Henrique Galvão, que chegou a ser um homem da confiança do Salazar, depois o seu mais terrível adversário, foi preso em Lisboa, evadiu-se da cadeia, fez o primeiro sequestro mundial de um avião, da TAP, obrigando-o a ir para Casablanca, depois repetiu a iniciativa ao sequestrar o navio “Santa Maria” que deu um tremendo brado internacional, mas ninguém lhe pode negar que não tenha sido uma personalidade de valor. Meio louco como o seu compadre Umberto Delgado. Aliás não simpatizavam um com o outro!
Quando Inspetor Superior Ultramarino, numa das suas inspeções a Angola, quis visitar alguns Postos da Administração que jamais tinham sido inspecionados por alguém.
Chega um dia a um desses postos, lá bem “perdido” no interior da savana africana; o Chefe do Posto, espantado, vê ao longe a poeira levantada por um carro, caso inédito, imaginando que seriam caçadores perdidos, espera que os viajantes desembarquem. Sai um deles que se lhe dirige e se apresenta:
- Henrique Galvão, Inspetor Superior Ultramarino.
O Chefe de Posto sabia que nunca ali tinha ido qualquer superior a ele, desconfiado, pensa que é piada e responde:
- Não precisa vir com essa conversa de inspetor, que aqui jamais veio gente dessa. Mas nem por isso deixarei de o receber o melhor que posso, neste fim do mundo onde tudo falta. Mas “papo” de inspetor é que não tem graça!
Henrique Galvão gostou da atitude do jovem chefe de posto, que acabou por saber que era mesmo o “chefe máximo” da Administração Ultramarina, elogiou-o e parece que depois o promoveu!
Lá no canto sudeste de Angola havia um outro Posto, junto à fronteira com o Sudoeste Africano, hoje Namíbia, igualmente isolado do mundo dos brancos, e cuja função, além da política de ocupação, era mandar relatórios mensais sobre as atividades da sua área: chuvas ou secas, quantos nascimentos, quantas mortes, do povo e do gado, eventuais doenças que não havia nem brigas entre etnias, enfim um sossêgo, para que se fosse tendo noção do que ali se passava e, talvez, talvez, se fizesse no fim uma estatística geral de Angola!  De mentirinha.
Como é de calcular esses relatórios não tinham qualquer valor porque os nativos não iam ao Posto declarar nascimentos e mortes, nem informavam quantas vacas ou cabras tinham nascido. Era tudo “conversa fiada”, mas o Chefe do Posto tinha que enviar, mensalmente, um relatório com esses dados, para o Administrador da Circunscrição, que ficava, talvez a uns 200 ou 300 quilômetros de distância. Essa entrega era confiada a um cipaio, uma espécie de polícia rural, a maioria analfabeta. Chamava- a esse relatório, uma carta, mukanda!
Todos os meses o cipaio tinha que percorrer centenas de quilômetros e levar as mikanda, que, possivelmente o Administrador nem lia.
O Chefe do Posto de tantas mandar acabou por considerar aquilo um trabalho idiota e talvez inútil e decidiu agir de outra “melhor” forma: escreveu meia dúzia de pré monitorados relatórios, envelopou-os todos, com as datas exteriores programadas e bem destacadas, entregou-os ao cipaio e disse-lhe:
- Como você sempre fez, continuará a ir todo o mês levar uma mukanda à Administração. Eu vou deixar todas as mikanda aqui, e você, uma vez por mês tira a de cima e leva.
- Tá bem, patrão.
O Chefe deixou o Posto onde nada havia para fazer, passou a fronteira e foi passar uns meses de férias em Portugal, certo de que ninguém daria por isso.
Mas o cipaio no começo do terceiro mês olhou para as mikanda, ainda havia três para entregar, e pensou:
- Para que ir lá todo o mês. Vou só mais uma e levou logo tudo.
Se bem pensou assim o fez e a manobra foi descoberta! O Chefe já não retornou ao Posto!

Os contos tradicionais africanos, quer sejam de Angola ou de outro país são quase sempre de animais, por onde se tiram lições para os humanos e revelam um profundo conhecimento da vida animal, e as transpõem, com humor, para a dos homens.
Um tigre voltava para casa depois de um dia a caçar, quando de repente se encontra num curral de carneiros. O tigre que nunca havia visto um carneiro, aproximou-se com ar humilde e perguntou: “Como te chamas, amigo?”
O carneiro, com a sua voz rouca e colocando uma pata no peito do tigre respondeu: “Sou um carneiro. E tu quem és?” “Um tigre”, respondeu cheio de medo. Mais morto do que vivo, despediu-se do carneiro e correu para casa.
Um chacal vivia perto da casa do tigre e este disse-lhe: “Amigo chacal, estou sem alento e meio morto do susto, pois acabo de me encontrar com um animal de aspecto horrível, com uma grande cabeça, que me disse com uma voz rouca: “Sou um carneiro.”
“Mas tigre que tonto és!” gritou, rindo o chacal. “Deixar escapar um pedaço de carne tão tenra e assustar-se por um carneiro! Porque? Amanhã de manhã iremos lá os dois e o comeremos juntos.”
No dia seguinte caminharam os dois para o curral do carneiro, e quando este, que havia saído para ver onde encontrava comida fresca, viu que no alto do morro apareciam o tigre e o chacal, temeu que aquilo acabasse mal, correu para avisar a sua esposa, e disse-lhe: “Temo que hoje seja o nosso último dia porque o tigre e o chacal vêm contra nós. O que vamos fazer?” – Não te assustes – disse a esposa – toma um dos filhos nos teus braços, sai com ele e belisca-o para que chore como se tivesse fome.” Assim fez o carneiro, enquanto os dois companheiros se acercavam. Quando o tigre voltou a ver o carneiro encheu-se de medo outra vez, queria voltar-se e ir embora, mas o chacal, prevendo isso, amarrou-se ao tigre com uma tira de couro, e dizia-lhe - “Anda. Segue-me ” - quando o carneiro gritou alto e forte enquanto beliscava o filho:
- “Fizeste bem, amigo chacal, de trazer-me este tigre para comer, pois ouves como chora o meu filho pela fome que tem.”
Ao ouvir estas terríveis palavras o tigre, apesar dos rogos do chacal, arrancou a correr cheio de pânico, o mais rápido que podia e arrastou o chacal por montes e vales, através de arbustos espinhosos e rochas chegando a casa com o chacal quase morto.
E assim se escapou o carneiro!

Ikumbakumba yoñhosi ihai imbi engolo okunwa (**)
Os urros do leão não impedem a zebra de beber água.

* Provérbio quimbundo – Missosso – Vol 1 – Óscar Ribas
** Provérbio cuanhama – A sabedoria do povo Cuanhama – Padre Charles Mittelberger


06/06/2016

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