Sobre a austeridade
Já mais de uma vez expandi minha estupefação
perante um fenómeno “tsunamesco” que tem vindo sistematicamente a derrubar a
chamada economia ocidental
Todos os países devem bilhões, trilhões
ou quatrilhões, os bancos foram generosamente socorridos pelos governos
falidos, os dias vão passando e ninguém enxerga – ninguém quer enxergar - o
óbvio.
E o óbvio é que alguma coisa, ou a coisa
toda está errada. Os únicos que estão certos são os bancos que sobem o custo
dos empréstimos, e se estiverem em más condições os governos imprimem mais umas
toneladas de notas – à surrelpa – e entregam aos bancos para... para que mesmo?
A solução há muito que se apresenta
clara: devo não nego, pagar não pago.
Zera tudo, repõem-se os salários dos pequenos,
só dos pequenos, que foram cortados, reduzem-se os juros, estimula-se o investimento
particular, e encara-se de frente a concorrência da Coreia, China, Marrocos,
Etiópia e outros.
E os países, voltam a poder respirar,
porque hoje estão afogados na estúpida e brutal “austeridade”, que continua a
matar a classe produtiva em favor dos sanguessugas.
Felizmente que nem todo o mundo
compactua com esta ladroagem de austeridade. Graças ao Bom Deus ainda há gente
neste planeta que pensa, age e resolve.
Leiam o texto a seguir que, mesmo sem
autorização se transcreve, e que foi hoje publicado no jornal “O Globo”, com algumas
passagens que merecem especial destaque:
- sairam para as ruas batendo com
colheres em panelas vazias (e olha que há países com muitos paneleiros),
- demitiu-se o governo
- cadeia para os responsáveis
- fora com os partidos políticos
- escreveu-se nova Constituição.
A ilha
da utopia
Era uma vez uma ilha, perdida nos mares
do Grande Norte, situada além do que a imaginação possa conceber. Era tão fria
que a chamavam Iceland, terra do gelo. Em nossa língua, Islândia. Viviam nela
cerca de 300 mil habitantes: um lugar próspero, rico para os padrões da época,
uma gente bonita e saudável. Com um regime democrático estável, controlado
pela população, dispunha de excelentes sistemas de saúde e de educação, boa
alimentação, baixa criminalidade, alta esperança de vida, desenvolvimento
económico sustentável, regulado por diversas agências públicas.
Nada indicava que algo de mal poderia ocorrer
naquela Terra da Promissão. No entanto, trágicos fatos ali tiveram lugar e
sua recordação talvez possa ajudar a refletir sobre a crise que angustia o
mundo atual.
Quando e como exatamente esta história
aconteceu? Os arqueólogos mais reputados, com base em evidências e documentos,
atestam que as coisas começaram a degringolar na virada no século XX para o
século XXI, há centenas de anos...
Disseminaram-se, então, pela ilha, trazidas
por mercadores estrangeiros, fantásticas promessas. Baseavam-se em três palavras-chave:
desregulamentar, privatizar, internacionalizar. Se fossem capazes de enveredar
por êste caminho, os ilhéus se tomariam muito ricos, e em pouco tempo.
Persuasivos eram aqueles mercadores, e o povo
resolveu segui-los. Os bancos públicos foram privatizados, e as empresas
internacionais, autorizadas a explorar os recursos naturais. As agências
reguladoras, enfraquecidas, definharam. Os dinheiros agora circulavam em
abundância, a Bolsa de Vai rés galopava e a construção civil alçai cava níveis
frenéticos. Houve espantosos fenómenos, como o fato de os bancos privatizados contraírem empréstimos
equivalentes a dez vezes ao que então se chamava o PNB, ou seja, a soma de
todos os bens e serviços produzidos no país.
Vozes prudentes murmuravam: aquilo não podia
dar certo.
E não deu.
Num belo dia, no ano de 2008, estourou a
crise. Medonha. Os bancos faliram. A Bolsa despencou. Cessaram as atividades
económicas. O desemprego disparou. A ilha descobriu-se endividada até o último
fio de cabelo.
Vieram então homens probos e pediram calma.
Numa língua ininteligível, explicaram tudo: os antecedentes e os consequentes.
As coisas se resolveriam através de uma nova palavra mágica: austeridade.
Instituições e bancos internacionais ajudariam. Os problemas seriam
equacionados, embora fosse necessário apertar os cintos. Claro, muitos
perderiam casas, haveres, empregos, futuro e tudo o mais. As dívidas, porém,
seriam pagas, e a honra, salva. O pacote, embrulhado com laço de fita e
aprovado pelo Parlamento, virou lei. Em 2009, a fatura parecia liquidada.
Entretanto, as gentes não mais se deixaram
persuadir.
Queriam entender melhor como pudera uma
terra tão próspera tornar-se em menos de dez anos uma nação de mendigos. Não
haveria responsáveis! Foram às ruas, com apitos e bumbos, batendo talheres em
panelas vazias. Pulando e gritando, cercaram o Parlamento, atirando ovos e
tomates nos representantes. Não houve polícia capaz de segurar aquela ira. Corria
o ano de 2010 quando a pressão
das multidões organizadas impôs
um referendo. A Lei do
Parlamento foi recusada por 93%
dos votos. A dívida, contraída por
alguns, não seria paga por
todos. Era preciso zerá-la e
recomeçar.
E teve início a investigação sobre as responsabilidades. Altos executivos e gerentes dos bancos foram
para a cadeia. Os banqueiros que puderam, fugiram, como ratos de um barco à deriva. Ao
mesmo tempo, decidiu-se redigir uma
nova Constituição, capaz de proteger
a nação de outros aventureiros.
Por toda
parte, organizavam-se as gentes. Em cada distrito, uma assembleia.
Participativa e consciente de que a Coisa Pública deveria ser tratada com
atenção e cuidado. Entre pouco mais de 500 candidatos, sem prévia filiação
partidária (os antigos partidos tornaram-se suspeitos), elegeram-se 25
representantes. Foram eles que, ouvindo as assembleias locais, autônomas em
relação ao Estado e aos partidos, construíram uma nova Carta Magna, a ser
aprovada em outro referendo popular. Regulação e controle, palavras esquecidas,
retornaram, devidamente valorizadas. A primeira consequência foi a renacionalização
dos bancos, baseada no conceito de que o dinheiro de todos é muito importante para ser deixado em mãos de poucos.
Aquele povo mostrou que, por vezes, como
dizia E. Morin, o improvável acontece. Demitiu-se um governo. Refez-se o Parlamento. Exercitou-se a
autonomia. Foi escrita uma nova Constituição, preocupada com as pessoas e não
com os dinheiros. E a prosperidade voltou, atestada por bons resultados em 2011
e 2012.
Uma revolução. Pacífica e democrática.
Mas realizada há tantos séculos e numa terra tão
longínqua... Talvez por isso se fale tão pouco dela e dos maravilhosos eventos
que aconteceram na bela Islândia. Uma ilha da “utopia.”
Daniel
Aarão Reis é professor
de História Contemporânea da UFF
20/11/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário