Interregno
mental
Durante
a vida, não deve haver quem não sinta necessidade de dar um “descanso” à cabeça.
Talvez por ter pouco miolo, ou escassa capacidade de armazenagem, o que é
verdade é que preciso mesmo dar uma parada de tempos a tempos.
Já
fiz isso várias vezes, em África no “mato”, tentar caçar alguma coisa, barraca
de campismo, a maioria das vezes isolando-me e gozando o sossego e a
exuberância, em mosteiros beneditinos também algumas vezes, e até quando fui
passar seis meses no interior de Moçambique, ajudando nas tarefas da Obra da
Rua, a Casa do Gaiato, e ainda, por incrível que pareça, na travessia do Rio
para Angola, à vela, quando o completo isolamento em alto mar parece que não
nos deixa pensar em nada por muito que se procure meditar.
Sempre
se sai de cabeça bem mais leve. Uma espécie de faxina geral!
O
problema é que com a idade essa faxina tem-se mostrado necessária a períodos
cada vez mais curtos. Não admira; durante a vida enchemos a cabeça de
problemas, somos implacavelmente massacrados pela vergonha, aliás sem
vergonhice que nos rodeia em todos os campos, e a “juventude”, já gasta, não
deixa grande reserva de força para aguentar.
Todos
sabemos que a televisão nos enche a casa de mentira, porcaria e pornografia,
não há anúncio nem que seja para vender batatas onde não apareça uma mulher
despida, chegando-se ao cúmulo da degradação com um anúncio, grande, que vi na
estrada, o chamado “outdoor”: em cima a marca da cerveja, a meio a garrafa e
por baixo, em letras enormes o “slogan”: “O orgasmo gostativo”!
Não
dá para acreditar que tenhamos chegado tão baixo, no tão ignóbil lamaçal da
moral e ética. Mas o cartaz lá está, e quando cruzei com ele quase parei por
não querer acreditar que tal fosse possível. Infelizmente é.
Tudo
isto, este martelar constante, somado ao descalabro e vergonha (sem vergonha!)
da política, das pseudo ações sociais, da baixaria que é a educação, da
corrupção, que por mais que nos queiramos alhear, a quem tem um espírito
combativo mas se reconhece impotente, acaba por derrubar.
Depois
duma rápida consulta via internet, e dum contato telefónico, aí vamos.
É
relativamente longa a viagem, sobretudo pelas cidades que se tem que
atravessar. Cidades com aspeto triste, total ausência de planejamento, construídas
ao longo da estrada, tudo com ar de sujeira, inúmeras lojas de venda de carros
usados, dezenas de obstáculos “quebra molas” que mais parecem obstáculos para
concurso hípico, buracos sem fim, enfim, um caminho pouco agradável, e quem vai
com espírito de descanso e silêncio, logo se sente frustrado.
Passado
Itaboraí aparece um pedágio e o motorista pensa que chegou à Alemanha!
Finalmente uma estrada boa, mesmo que tenhamos que pagar! Mentira. Uma
estradeca de duas faixas, uma em cada sentido, muita curva, quase sempre traço
duplo no chão impedindo ultrapassar, mais obstáculos, mais buracos, mais
controles eletrônicos de velocidade (50 km/hora). E ninguém se livra de
encontrar um caminhão ou um ônibus pela frente, e a paciência de que se
revestiu ao sair de casa... logo acaba.
Finalmente
chegamos à subida da serra para Nova Friburgo. O espetáculo destas serras
grandiosas, cabeços imensos emergindo cobertos de densa floresta, acalmam-nos o
ânimo.
Não
muito depois de atravessar esta última cidade, igualmente comprida e cheia de
semáforos, saímos da estrada e entramos numa “picada”! Mais um quilômetro e
pouco e deparamo-nos com o que íamos procurar: no meio daquelas paisagens, num
sossego quase total, um cantinho do céu, o Mosteiro de Santa Cruz, da ordem dos
beneditinos.
Pelas
fotos se vê que não é uma construção grandiosa, uma ostentação, mas um lugar
simples, exatamente o que procurávamos. Na imagem do Google vê-se bem o
isolamento, o lugar para meditar ou simplesmente não pensar, mas seguramente
para se estar longe do descalabro em que o mundo e toda a sociedade está
afogada e tentar deixar que a imundice e seu peso saiam da cabeça.
Antes
que algum dos monges nos venha receber já podemos dizer para nós mesmos: “A Paz
está comigo”; logo a seguir aparece o bom prior que ao nos cumprimentar nos dá
a sua benção: “A Paz esteja contigo”, mas como tudo neste Mosteiro, em latim:
“Pax vobiscum”.
Depois
desta singela apresentação, e de ficarmos a saber o nome de cada um, conduz-nos
a um dos quartos de hóspedes. Simplicidade e sobriedade monástica, onde não foi
esquecido o cuidado e atenção com que recebem um estranho que ali vai procurar ninguém
sabe bem o que, com a porta a abrir-se para o exterior, e a mata em frente.
Um
leito, um lavabo, um armário e uma mesa! Mas jamais trocaria isto por uma suite
de luxo nos insolentes e demagógicos hoteis, por exemplo em Dubai ou Las Vegas!
O
ambiente do Mosteiro inserido no meio das montanhas, rodeado de mata, do lado
do nascente dois imponentes morros de granito (inselbergs, da “família” do Pão
de Açucar), salpicados com centenas ou milhares de bromélias que parece estarem
ali para proteger o isolamento dos monges na sua silenciosa e humilde vida de
trabalho, oração e estudo.
Bromélia das rochas
Quando
o dia rompe nada consegue calar os bandos de maritacas. Sobrevoam o Mosteiro,
pousam na cobertura da torre e ali ficam um pouco em animada gritaria ou sonora
conversa! Mais modestos são os canários, os anus pretos, os bem-te-vi e alguns
outros quase a cantar em gregoriano para não interferir nas orações.
O
tempo aquece e a floresta cala-se. No calor os animais refugiam-se nas sombras,
talvez durmam a sua sesta. O raro manso grasnar dum pato refrescando-se no
pequeno lago, e essa quietude começa a retirar-nos da cabeça o acumulo dos
ruídos da cidade, da televisão, a fazer-nos esquecer que há jornais e notícias
e que o mundo não parou. Conseguimos até esquecer a banditagem que continua a
querer destruir o país!
Um
refúgio na biblioteca, pequena mas recheada de livros sobre teologia e
filosofia, assuntos que não só não fomos procurar como nem capacidade temos
para os enfrentar. Um ou outro livro de história prende a nossa atenção, e no
centro do silêncio que pássaro algum se atreve a romper, devagar uma sensação
de bem estar nos vai envolvendo.
Chamada
para as refeições. Na mesma o silêncio só quebrado pela leitura que um dos
irmãos faz algum livro da história da igreja ou dos santos padres.
Comida
simples mas oferecida com amor fraterno. Uma delícia.
A igreja, simples e bonita, vista do lado de
dentro do mosteiro
No
fim da tarde volta a algazarra da passarada. Regressam ao poiso depois do dia
de “trabalho”. Lá longe, junto com os patos e galinhas, o balir dum carneiro no
comando do rebanho, ou uma troca de opiniões entre o galo chefe e alguma
galinha de posição elevada!
Cai
a noite e um martelar constante, ritmado, incessante, chama a nossa atenção.
Estaria alguém a trabalhar? Não podia ser porque o martelo não parava. E assim
ficou mesmo depois de me ter recolhido.
De
manhã quis saber se havia algum “carneiro hidráulico” a elevar água para o
Mosteiro. “Não, não temos, mas já pensámos nisso.” – “Então que ruido era
aquele, ontem à noite, que parecia alguém a martelar mas não parava?” – “É um
sapo. O sapo tambor!”
Tenho
ouvido muito sapo. Mas como aquele, nunca! E fiquei, mentalmente, a cumprimentar
o ritmo do bichinho!
Três
dias neste isolamento, no silêncio, só quebrado quando precisava esclarecer
algum detalhe, respeito que devemos para quem nos recebe tão
fraternalmente, ausência total de
televisão e rádio, as orações dos monges sempre em latim, o canto gregoriano, o
clima de montanha onde a humidade do ar ao meio dia fica em 20 ou 30%, tudo
isso contribui para a Paz que procurávamos.
O
único “senão” que me obrigou a ficar menos tempo foi a quantidade de degraus
que tinha que subir e descer: do quarto para o refeitório, deste para a igreja,
depois para a biblioteca, volta, repete, e a meio do dia as minhas pernas já
fraquejam demais!
No
último dia acordei novo! Sentia-me muito bem. A cabeça estava aliviada. Mas
como ainda houve que subir e descer umas quantas vezes, as pernas e a coluna
queixavam-se!
Foi
uma curta vivência. Mas valeu muito a pena, e fica a vontade de repetir.
Quem
sabe? Vontade não falta. E o Mosteiro continua com as portas abertas para os
que procuram o seu refúgio.
Bem
hajam.
08/11/2012