quinta-feira, 19 de abril de 2012



Com a devida vénia transcrevemos dois textos, magníficos.
Um do escritor João Ubaldo Ribeiro, e outro de um dos maiores artistas que o Brasil teve e perdeu há poucos dias: Chico Anysio.
Um é o desabafo da triste situação em que o país se encontra, outro um maravilhoso “auto retrato” do menino! Espero que apreciem.



Vamos e venhamos outra vez


JOÃO UBALDO RIBEIRO

Volta e meia, toco no assunto de hoje, sempre com as mesmas opiniões. Não adianta nada, mas sei que há muita gente que pensa parecido e gosta de ver estas observações expostas novamente, com outras palavras. Não há de ser em minha geração, mas virá o dia em que nos tocaremos de vez. Morrerei cético, mas na torcida e com o fio de esperança que todos precisam carregar. Refiro-me a nós mesmos, o tão falado povo brasileiro.
Quando eu era um jovem metido a várias coisas (aliás, tão metido que, se ho¬je encontrasse um fedelho opinioso como eu era aos vinte, desapareceria do recinto assim que ele falasse e me manteria à distância, no mínimo em outro município), os brasileiros não tinham culpa pelo atraso do país, mais tarde adornado com a designação, então em uso chique, de "subdesenvolvimento". A culpa era do imperialismo norte-americano, tudo o que de ruim nos aconte¬cia era culpa do imperialismo norte-americano. Até quando a moça não queria nada com a gente, a culpa era do imperialismo, que impunha padrões de beleza masculina humilhantes e ainda obrigava a gente a usar blusão James Dean no calor de Salvador, afetar ares entediados e besuntar o cabelo com as banhas e cremes fedentinosos que inventavam para nossos penteados serem iguais, por exemplo, ao do Farley Granger. Elas, as coroas do meu tempo, hoje ficam com vergonha e fingem que esqueceram, mas caíam até em sussurrinhos indecorosos, quando esse tal Farley Granger e seu famoso penteado apareciam na tela. Legiões de compatriotas foram assim ultrajados pelo imperialismo.
Para vencer esse poderoso inimigo, mobilizaríamos as massas e faríamos a Revolução. Mas, como já assinalava o bom juízo dos antigos, ser revoltado é fácil, difícil é ser revoltoso. A maior parte dos revolucionários era mais para a revoltada e debatia temas palpitantes, tais como a existência de uma burgue¬sia nacional ou a vigência de regimes feudalistas no Nordeste, e só dois ou três gatos-pingados eram revoltosos e tentavam ir além do debate, geralmente com resultados péssimos para a saúde. A Revolução se foi, o negócio passou a ser as grandiosas Reformas de Base, que ninguém nunca soube direito de que se trataria e que agora todo mundo esqueceu de vez.

Poupando-nos um retrospecto que não traria nenhuma novidade, o que te¬mos é o que está aí. Todo mundo sabe como é ruim a situação do Brasil em carga tributária, em saúde, em educação, em transportes, em segurança pú¬blica, em trânsito urbano, em aplicação da justiça, em saneamento básico e, en¬fim, em praticamente todas as categorias concebíveis. Não lembro um só dia, nos anos recentes, em que uma grande tramoiá, um desvio de dinheiro espetacular ou um roubo sem precedentes não seja matéria dos noticiários. Ninguém mais presta atenção direito, confunde tudo e o resultado final é uma espécie de monturo na cabeça da gente, que se amontoa espantosamente a cada dia.
Os partidos políticos não são nada, nem em matéria de crenças e princípios, nem de qualquer outra coisa; não há ideais, há interesses. Não são partidos, são bandos ou, sem esticar demais a metáfora, quadrilhas rapineiras, que não pensam nos interesses do país, mas na aquisição de poder e influência geradora de riqueza. Os homens públicos, dentro ou fora dos parlamentos, em todos os níveis, parecem não conseguir escapar à malha corruptora que abafa o Estado em todas as esferas. E, de qualquer forma, injustiça ou não, a palavra "político" é hoje quase sinónima de ladrão.
Mesmo quando não há ilegalidade, há indecência, há recursos a eufemismos cínicos e trapaças engenhosamente maquiladas de manobras legítimas e o fato é que o Estado, sustentado pelos impostos mais altos do mundo, conti¬nua a ser sugado de todas as maneiras, fraudado de todas as formas. Roubam parlamentares, roubam administradores, roubam funcionários, roubam todos. Para lembrar somente um exemplo mais recente, averba liberada para a reconstrução de Teresópolis, não deve ter sido suficiente, já que nada se fez. Aliás, li que instalaram algumas sirenes. Mas deviam ser de qualidade inferior, porque várias falharam. Isso é o que dá, quando se libera verba sem prever a taxa de corrupção aplicável por praxe.
É pensando nessas coisas que vem uma saudadezinha do imperialismo, era bem melhor, pensem aí. Agora a gente matuta, matuta, e chega à desagradável conclusão de que sempre quisemos botar a culpa do nosso atraso, do subdesenvolvimento ou que outros males nossos citemos, em alguém diferente de nós. A mania vem diminuindo um pouco, mas até hoje é comum um cidadão indignado discursar no boteco, espinafrando o brasileiro - o brasileiro não obedece à lei, o brasilei¬ro é malandro, o brasileiro não tem educação, o brasileiro isso e aquilo. Brasileiro, quem? Ele não, e os outros sim?
Parece sempre necessário lembrar que somos todos brasileiros e envolvidos na vida bra¬sileira, Há quase duzentos anos, somos donos exclusivos disto aqui e nunca fizemos por onde honrar a imensa riqueza que herdamos, mas, ao contrário, instauramos desigualdades monstruosas, assaltamos a fazenda pública e fomentamos o atraso à custa do prejuízo geral e do ganho dos privilegiados. Somos nós os responsáveis pelo que está aí, nada disso se fez, ou se faz, por geração espontânea, fomos nós. Cabe repetir a verdade, já cediça, de que os corruptos não são marcianos, são também brasileiros como nós, aqui paridos e criados. Portanto, vamos e venhamos, pode ser chato, mas a evidência se impõe, não é possível fugir dela. Toda árvore boa produz frutos bons, e toda árvore má produz frutos maus. Uma árvore boa não pode dar frutos maus, nem uma árvore má dar frutos bons. O autor destes dois últimos pensamentos foi até um pouco lembrado nesta Páscoa, embora bem menos que o coelho.

JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.



Chico Anysio


Vou fazer um apelo. É o caso de um menino desaparecido. Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.
É um menino normal, ou seja: subnutrido desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram pra pedir.
Calado demais pra sua idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.
Parece ser menor carente, mas, se é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender a ser criança-problema. Anda descalço por amor à bola. Suas roupas são de segunda mão, seus livros são de segunda mão e tem a desconfiança de que a sua própria história alguém já viveu antes.
Do amor não correspondido pela professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de "Romeu e Julieta", sem nunca ter lido a história.
Foi Dom Quixote sem precisar de ler Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto Braga. De seu, tinha uma árvore, um estilingue zero quilómetro e um pássaro preto que cantava no dedo e dormia em seu quarto.
Tímido até a ousadia, seus silêncios gritavam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma.
 
Trajava, na ocasião em que desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto.
Mas usava calças curtas de caroá, suspensórios de elástico, camisa branca e um estra¬nho boné que, embora seguro pelas orelhas, teimava em tombar pró nariz.
Foi visto pela última vez com uma pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado. Se bem que, sonhador de jeito quê ele é, não duvido nada.
Sequestrado, não foi, porque é um menino que nasceu sem resgate.
Como vocês vêem, é um menino comum, desses que desaparecem às dezenas todas os dias.
Mas se alguém souber de alguma notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim.


Lindo!

20/04/2012







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