terça-feira, 21 de fevereiro de 2012


Plagiando Teixeira de Pascoaes:” A aldeia do passado já não existe; mas vive em mim. Tenho-a intacta, cá dentro, onde se fixam todas as formas transitórias, reproduzidas numa substância espiritual.”
Talvez como a mesmo Pascoaes disse: ”o que caracterizava o povo português e o identificava como único, era a saudade.”
Saudade... de Benguela!

ANGOLA

PRIMEIROS  RECONHECIMENTOS


Os antigos diziam que o reino de Angola confinava pelo sul com o País dos Cafres, e consideravam a região para o sul do Cuanza, até ao Golfo das Vacas, como pertencendo ainda a Angola, havendo alguns, como o nosso Duarte Lopes, que estendiam os seus limites ainda mais além, até ao Cabo Negro (1).
Não se compreende muito bem em que se baseavam para esta asserção, mas deviam talvez fundamentá-la, não no papel político do Ngola, querendo dizer que a sua autoridade de Rei se estendia por todo esse vasto território, mas porque da mesma família da Ginga, e dos outros jagas que viviam na região a que chamávamos Angola e considerávamos um reino, eram aqueles que se tinham estabelecido além Cuanza, como os Quembo, Songò, Holo, Quioco, Biênos e ainda os do Humbe (2), afora várias pequenas guerrilhas que se não tinham grupado e viviam independentes, pela costa na foz dos rios, e pelo interior, formando, no conjunto, o país de Benguela, que uns queriam que tivesse o seu limite norte no rio Cuanza, outros no da Longa e o sul no Cabo Negro (3).
 Carta de 1766 - Angola e Benguela separados

Pela tradição entre os indígenas, parece ponto assente que um jaga Quingurí desavindo-se com a família na Lunda, abalou com os seus partidários na direcção de Quimbundo, passando as nascentes do Cuanza e seguindo para o norte pela sua margem esquerda, foi acampar no Libolo, onde depois de algum tempo de permanência, resolveu passar o Cuanza e procurar o Governador Geral a quem se apresentou e ofereceu os seus serviços. Estes foram aceites, fixando-se-lhe a residência na Lucamba, sítio que ficou assim chamado por as sementes que deram ao Quinguri, e ele lançou à terra, nada terem produzido, por não prestarem.
Governava então Angola D. Manuel Pereira Forjaz e devia ser ele o governador D. Manuel que a tradição indígena diz que recebeu o Quinguri, não só porque foi a partir de então, que os jagas antigos inimigos nas guerras de Paulo Dias, passaram a ser os nossos auxiliares, como foi durante o seu governo, que o valente Baltasar Rebelo de Aragão se propôs fazer a viagem ao Monomotapa, ou talvez a travessia da África, para o que, certamente, muito deveria ter concor¬rido as informações do Quinguri, junto a outras que já então se tinha do interior, por muitos dos nossos o terem percorrido, quer seguindo o curso do Cuanza, quer desembarcando em algum ponto da costa e internando-se para negociarem.
Como já ficou referido, a costa de Angola para o sul do Cuanza, já antes da ocupação de Luanda era explorada pelos portugueses, pois, em 1546 já iam ao rio da Longa no reino de Benguela resgatar cobre, e Paulo Dias de Novais, em 1586-87, mandou Lopes Peixoto ocupar Benguela a Velha, certamente com o fim de aí desenvolver o resgate com os indígenas, tendo sido infeliz, como sabemos. Depois desta data e durante alguns anos, nos documentos que se tem encontrado, em nenhum há referências às relações que se deveriam ter estabelecido por todo o litoral para o sul, com os indígenas, e, contudo, não resta dúvida que existiam, porque, em 1600 ou 1601, o Governador João Furtado de Mendonça foi ao sul, à Baía das Vacas ou Baía da Torre, com ses-senta homens, para negociar com os indígenas, o que não teria feito, se não tivesse informações do resultado de expedições anteriores; que o animaram a tentar um resgate em maior escala (4).
Da tripulação, como já se disse, fez parte um inglês Andrew Battell e por ele sabemos que foi de bom rendimento essa viagem, trocando-se contas de vidro por vacas e carneiros (5), “bigger than our English sheep” e por “madeira chamada Cacongo que se assemelhava ao pau Brasil”. A quantidade de gado era tal, que em dezassete dias tinham adquirido quinhentas cabeças e o Governador, em mais de dez dias, carregou três navios. As contas de vidro com que se fazia o negócio eram azues e de uma polegada de comprimento, e o gentio dava uma vaca por quinze contas.
Citando, apenas por curiosidade, a informação de Andrew Batell de que os indígenas “they are beastly in their livingy for they have men in womens apparel, whom they keep among their wives”, registamos a sua observação de que as serras que encontrou no seu percurso, constituíam uma cordilheira que vinha desde as montanhas de Cambambe, que tinham minério de cobre em grande quantidade, que os indígenas não trabalhavam senão na parte que precisavam para obter os seus adornos, que para as mulheres consistiam em colares no pescoço e pulseiras nos braços e pernas.
Battell tornou a participar de outras viagens de negócio pela costa e, de uma delas, o mestre da embarcação vendo um grande arraial indígena nas margens do rio Cuvo, desejoso de averiguar o que era, aproximou-se e soube que se tratava de um acampamento de jagas. Entrando em relações, desembarcou com o Battell e os portugueses que levava, fazendo largo negócio, enchendo o navio de escravos, que compraram a real, quando em Luanda se não obtinham por menos de doze mil réis (6).
Battell como se vê, não ia só, nem teve outros ingleses a acompanhá-lo, pois que os não cita, mas sim portugueses, alguns mulatos, segundo diz, e de concluir será também que não sendo negociante e apenas um degredado e estrangeiro, não teria o capital necessário para manter à sua custa uma armação e trabalhava por conta de qualquer português. A viagem não era, pois, de sua iniciativa, mas um facto corrente, de há muitos anos já entre portugueses.
Da descrição que faz, averigua-se que estiveram, ele e os portugueses, durante cinco meses com o jaga auxiliando-o nas suas guerras e fazendo negócio, e tendo o navio fundeado em Benguela Velha, fizeram três viagens a Luanda para levar a carga que tinham resgatado. Quando regressaram pela quarta vez, não encontraram o acampamento do jaga mas foram ter, ele sempre com os portugueses e nunca só, com o soba Mofarigosat, nome bastante estropiado e de impossível identificação, que os não quis deixar sair, mas os portugueses conseguiram demovê-lo deixando-o a ele, Battell, por ser inglês, como refém.
Fugindo da embala deste soba, foi para Dala Cachibo, onde encontrou de novo o jaga da viagem anterior, com quem andou bastantes meses, até que, depois de muitas marchas, foi parar ao nosso conhecido soba Langere, próximo de Cambambe.
Verifica-se de tudo o que fica referido que a costa pelo menos até Benguela, e o interior, quando mais não fosse, na parte do Amboim, Seles e o curso do rio Cuvo, eram percorridos pelos nossos comerciantes para o seu negócio, não sendo de admirar que chegassem ao Bailundo e Bié.
Como se sabe, também por tradição indígena, o território desde o Bié até além do Humbe, talvez ao Cuanhama, constituiu o importante sobado do Humbi-Inéné (7), que aliado dos Ngolas, tinha decidido prestar a estes auxílio contra nós (8), o que não conseguiu levar a efeito, por a isso se opor o seu vassalo, soba do Bié. O que levaria este a tomar essa atitude? Não seriam as relações que mantinha com os portugueses que frequentavam a sua embala, fazendo negócio, que o impediram de auxiliar o Ngola? Que outro motivo poderia haver a não ser este?
Nenhum. Foram, sem contestação possível, as relações com os portugueses que impediram não só o auxílio a prestar ao Ngola, como determinaram a rebelião do soba do Bié e a sua independência do Humbi-Inêné. E, possivelmente, foram eles que mais tarde encaminharam o Quinguri, na sua passagem pelo Bié, a apresentar-se em Cambambe, pedindo para ser recebido pelo Governador Geral a-fim-de lhe fixar local para residir.
Muito embora não tenhamos notícia de qualquer outro porto para o sul de Benguela, frequentado pelos nossos comerciantes, é contudo certo que o Cabo Negro nos aparece em mais de um documento, como um ponto conhecido, tudo indicando que as nossas tentativas ou buscas de novos resgates ou explorações, teriam talvez atingido as suas proximidades.
Havia então necessidade de conhecer muito detalhadamente toda a costa da África, quer ocidental, quer oriental, pelo que foi mandado executar um reconhecimento geral, encarregando o da costa ocidental a Belchior Rodrigues, pelo regimento de 4 de Janeiro de 1613, que para esse fim se lhe deu (9), e do qual se verifica que, embora se mandasse efectuar do Cabo de Boa Esperança, ou do mais perto dele que pudesse ser, para Angola, navegando de dia e surgindo de noite, a parte que verdadeiramente interessava era a da Cafraria, até o Cabo Negro. Reco-mendava-se que se examinasse com o maior cuidado todos os surgidoros, as braças dos seus fundos, a qualidade deles, as fontes e ribeiros em que se podia fazer aguada, desenhando-as com diligência e fazendo os cálculos das suas situações, para o que se mandava empregar as novas agulhas de Luís da Fonseca Coutinho e as tábuas de João Baptista Lavanha, que também foi na expedição (10), donde podemos concluir que do Cabo Negro para o norte já havia notícias mais detalhadas da costa, e, possivelmente, os seus portos tivessem sido desenhados, como se pedia para os do Cabo de Boa Esperança até ao Cabo Negro.
Vê-se do exposto que, quer a costa desde o sul da foz o Cuanza ao Cabo Negro, quer o interior, principalmente na parte da bacia do mesmo rio, eram já bastante percorridos pelos nossos comerciantes em fins do século XVI e começo do século XVII.
Os jagas que se espalharam pelo interior e com quem os nossos se relacionaram, arranjavam nas suas incursões escravos e gado que lhes vendiam. Estas boas relações nem sempre garantiam um bom e leal acolhimento, e podemos calcular as dificuldades que seria necessário remover para realizar naquela época uma viagem pelo interior e, mais do que as dificuldades removidas à força de tenacidade, o que essas viagens representavam de energia, de audácia, de confiança em si pró-prios, da parte dos que a elas se afoitavam.



“Jagas” – “Relação do Reino do Congo", de Pigafetta

E tudo isto era o sonho de uma riqueza! Iam para o cobre e para o gado de Benguela, mas todos eles tinham o sentido fixo na prata de Cambambe, naquela serra enorme toda de prata a reluzir, de que o Cafuxe e o Ngola não deixavam que nos aproximássemos!
O cobre de Benguela era um desvio, era para entreter. Não podendo ir a Cambambe, andávamos à roda, sempre atentos à espera de uma aberta.
Mas tínhamos que lá ir, e agora era já a Corte de Madrid interessada no negócio, pois fora governar Angola João Rodrigues Coutinho, levando os mais extraordinários poderes e recursos de tropas para efec¬tuar a conquista de Cambambe.
Desta vez seria certo. Os padres jesuítas também iam, pois gostavam muito do Governador João Coutinho que era muito bom e cujas virtudes e artes nós já conhecemos. A sua fama espalhara-se por toda a parte e quando até do Congo vinha gente para se alistar nas tropas, fiada nos benefícios que lhes prometiam, o Governador Coutinho mor¬reu, estando tudo preparado para a guerra. Os jesuítas que tinham tomado um interesse especial no assunto, fizeram recair a escolha do substituto em Manuel Cerveira Pereira, seu afeiçoado.

Manuel Cerveira Pereira – Fundador de Benguela

Fez-se a guerra e Cambambe conquistou-se, mas a prata, como já vimos, por mais escavações que se fizessem na serra, não apareceu. Manuel Cerveira Pereira, o realizador da proeza parecia sucumbido, mas não era para o seu espírito deixar-se possuir do desânimo; não havia prata, era certo, mas a culpa não era dele, pois nunca o afirmara. E, entretanto, tendo ouvido a um ou outro sertanejo, referirem-se à quantidade de manilhas de cobre que usavam as pretas de Benguela nos braços e nas pernas, passou a garantir, como se ele próprio lá tivesse ido ver e já o tivesse explorado, que havia muito cobre em um ponto determinado e que só ele conhecia.
Ao mesmo tempo, chegou a Luanda o Governador efectivo D. Manuel Pereira Forjaz, e um dos seus primeiros actos foi mandar Manuel Cerveira Pereira preso para Lisboa e a Corte que resolvesse sobre as acusações que lhe eram feitas.

(1) Dapper, Description de l’Afrique pág. 361.
(2) Henrique de Carvalho, “O jagado de Cassange e Expedição portuguesa ao Muatiânvua”; Capelo e Ivens, “De Angola á contra-costa” e “De Benguela ás terras de Iacca”.
(3) É muito possível que pelo facto da donataria de Paulo Dias se estender além Cuanza até Benguela Velha, se acostumassem a incluir toda a região no reino de Angola.Cabo Negro: a norte da foz do Rio Cutato, cerca de 35 milhas – náuticas – a sul de Namibe.
(4) Tem-se feito muita confusão com a Baía da Torre e a Baía das Vacas. Lopes de Lima (Ensaios, livro 3.°, parte 2a, nota (i) a pág. 29), criticando a Relação da Conquista de Benguela, diz que a Baía da Torre está a treze léguas ao sul daquela onde foi fundada a cidade de Benguela e que o autor da Relação, sendo mais guerreiro que geógrafo, errou neste ponto. Assim, para Lopes de Lima, a Baía da Torre seria a de S. Francisco. Luciano Cordeiro (Benguela e o seu sertão nota a págs. 8 e 9) não vendo motivos para se pôr em dúvida a ciência do autor da Relação, cita a opinião de Pimentel, que arruma a Baía da Torre na mesma latitude, com pequena diferença de minutos, em que está Benguela e a da Castilho, que encontrando um erro de 22' para menos, nas latitudes observadas por Pimentel, supõe que a Baía da Torre é a actual dos Elefantes. Andrew Battell, cujas aventuras foram pela primeira vez publicadas por Samuel Purchas em 1613, e portanto antes de escrita a Relação, diz-nos que depois de terem estado numa baía que estava a 12°, foram para a Baia das Vacas, que é a que os portugueses chamam Baía da Torre, “becanse it that a rock like a tower” e aí, »we rode on the noríh side of the rock in a sandy bay» que deve ser a actual de Benguela, parecendo assim que a das Vacas ou da Torre era a do sul da «rock like a íower», talvez a de S. Francisco. Anexos, doc. n.° 24, referido.
Nota:- Com a denominação de “Vacas” só resta hoje (2012) a ponta que separa a Caota da Baía Azul. Mas tudo leva a crer que a mencionada Baía das Vacas seria a Baía Azul, muito mais abrigada que qualquer outra.
(5) É bom frizar que a primeira referência que se encontra a vacas e carneiros é nesta viagem a Benguela. Battell que percorreu o Congo e toda a Angola, só em Benguela refere a existência de carneiros, que achou melhores ou pelo menos tão bons como os ingleses. Dapper quando descreve o reino de Benguela regista a informação de que as vacas eram também tão boas ou melhores que as francesas. Não se conhecendo comparação alguma feita por português dos carneiros e das vacas de Benguela com as do seu país, talvez se possa concluir que o mo¬tivo era por não os poderem comparar, visto serem oriundos de Portugal, possivelmente levados ainda antes de Paulo Dias, quando os colonos de S. Tomé iniciaram as suas explorações pela costa para o sul do Zaire.
(6) Ravenstein, Adventures cit., § III.
(7) Capelo e Ivens, “De Angola à Contra-Costa", tomo I, pág. 214.
(8) Seria talvez no tempo do Ngola Kiluanji Kia Ndambi, que Ravenstein nos diz que foi um grande guerreiro e levou as suas incursões pelo Cuanza muito próximo do mar, deixando assinalado com uma insandeira o ponto aonde chegou.
(9) Biblioteca da Ajuda, cod. 5t-VIII-2ï, fí. i55 a i58 e 160/1—“Regimento de q. ha de usar Belchior Roiz que V. Mag.e hora manda ao descobrimento da terra da Cafraria» e «Regimento q. parece se deve guardar no descobrir e descrição da costa, do cabo Negro té o de boa esperança”.
(10) No cód. acima referido, a fls. 63 e 64 e 78 a 89, encontra-se o regimento e instruções para o uso das agulhas, que mostravam o verdadeiro merediano em qualquer paragem sem nenhuma diferença de nordestear e norestear como te agora fizerão todas as outras...

In “ANGOLA - APONTAMENTOS SOBRE A OCUPAÇÃO E INÍCIO DO ESTABELECIMENTO DOS PORTUGUESES NO CONGO, ANGOLA E BENGUELA” – Extaídos de documentos históricos. Coligidos por Alfredo de Albuquerque Felner. Coimbra. Imprensa da Universidade. 1933



20/02/2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário