segunda-feira, 11 de julho de 2011



(Continuação – 2)

Historia da residência dos Padres da

Companhia de Jesu em Angola...


CAPITULO 4.° - DA AMISADE ENTRE O GOVERNADOR E O REI DE ANGOLA E DA OCASIÃO POR ONDE SE QUEBROU


Mandou o Governador ao Rey a embaixada e presente que El Rey Dom Sebastião lhe mandava por hum homem portuguez que hia por embaixador, e por outro natural de Congo criado em Portugal de nome Dom Pedro da Silva que levava o prezente. Folgou muito o Rey com o presente e a embaixada especialmente por saber que o Governador vinha com poder não para lhe fazer guerra, mas para o aiudar nas suas. Despachou bem a Pedro e mandou a El Rey de Portugal algumas manilhas de prata e cobre, peças, e pedaços de hum pão a que chamão quicongo, muito prezado entre elles por ser o verdadeiro sândalo. Desta prata mandou El Rey Dom Anrique fazer hum Cálix que está em Belém.
Pasou o Governador da ilha Loanda a terra firme, fez huma povoação, deu ordem de governo com vereadores e mais oficiaes de iustiça. Deu prin¬cipio a hum ospital, e misericórdia. A primeira Igreia que fez, dedicou ao mártir S. Sebastião conforme a suas doações, ordenarão se logo as con¬frarias do Santíssimo Sacramento e de São Sebastião cuias festas se sole¬nizavam com muito aparato, andando os mordomos em santa porfia a quem o faria melhor (1). Estava em tanta paz com o Rey de Angola que andavão os Purtu-guezes tão seguros pello Reyno como se andarão em Portugal, nem avia quem levantasse olhos para hum Português por saberem amizade de seu Rey com o Governador e que sem os nossos não podia viver. A esta amizade respondia bem por sua parte o Governador dando-lhe socorro para suas guerras como foi quando lhe mandou 50 portuguezes os quaes desbaratarão hum imigo do Rey como se dirá no capitulo 7°. Durou esta amizade 5 ou 6 annos e chegou a tanto que pedio o Angola ao Governador posesse na sua cidade de Cabaça hum capitão dos portuguezes e crioulos de São Tomé com o qual corressem no negocio da iustiça, e assi mandou o Governador a hum parente seu por nome Pedro da Fonseca por capitão.

Sobre gravura em madeira - sem data

A ocasião de que o demónio se aiudou para destruir esta paz e samear a discórdia que até agora dura, e tem lançadas raízes pêra durar muitos anos, foi esta. O Capitão com licença dei Rey prendeu a hum certo por-tuguez que avia mais de 25 anos que andava em Angola. O preso acabou por peitas com o fidalgo que o tinha a cargo, o soltase. Solto elle detriminou vingarse do capitão e de todos os portugueses, e feio por este modo. Poise ter com o Rey e disse lhe que era seu cativo e como a tal o mandase ferrar, e que lhe descubriria hum grande segredo. Espantado o Rey de homem por-tuguez, e christão lhe dizer taes palavras, mandou chamar seus conselheiros, e diante delles lhe fez descubrir o segredo o qual era que o Governador lhe vinha tomar seu Reyno, e minas de prata e para iso tinha ia na cidade da Cabaça 40 soldados com seu capitão, e muita pólvora, e outros 40 vinhão por caminho. Ao dia seguinte forão chamados todos os portuguezes, pola iustiça mor, e diante dos principaes do Reyno ouvirão o testemunho que contra elles dera o malvado traidor. Ficarão atónitos, e querendo dar rezões em contrario lhes foi respondido se recolhessem a suas casas até ver o que se faria. Tomou logo o Rey conselho aserca do modo com que os mataria per manha e traição do qual se dirá abaxo no capitulo oitavo (2).
CAPITULO 5.°. CUSTUMES DOS NATURAES DE ANGOLA

ASSI NA PAZ COMO NA GUERRA

Os custumes desta nação he deficultoso sabellos, assi por não terem uso de letras nem livros por onde se poderao saber como por andarem ate agora os portuguezes em guerra, nem terem com elles pasifica comunicacao que durasse muito tempo. Pelo que apontaremos somente alguns mais notorios e geraes, deixando outros para quem gozar em Angola do tempo da paz quieta.
Entre os Sobas, cuio numero (falando dos que sao conhecidos) he de setecentos e trinta e seis, ha alguns que tem outros Sobas menores debaixo de seu mando. Sao todos mui obedesidos pelo rigor com que tratao seus vaçalos. Asi o Rey como os Sobas tem todos muitas mulheres, e entre ellas huma principal. Sao estas filhas de outros Sobas as quaes comprao por numero de peças e por esta via estao entre si mais unidos, e sao em suas guerras e pretensoes mais aiudados. Porem quanto esta rezao mais se funda no proveito temporal, e respeito umano, tanto mor impedimento he pera a conversao e bem de suas almas que nao sofre no estado de matrimonio mais que huma soo molher. Desdo Rey ate o mais pequeno Soba tem hum Go-vernador a que chamao Tendala que ouve as partes, e lhe faz iustica. Chiambole he o capitao mor da guerra. Tem outros oficiaes menores. Aos mais fidalgos da casa do senhor chamao Macotas.
Tem o demonio tiranizada esta pobre gentalidade, e todas as mais terras vezinhas nesta imensa Etiopia (3) por via dos feiticeiros que lhes mete em cabeça mil agouros e superstições. Vao visitar os lugares onde tem os idolos com taes figuras que bem mostrao a quem representao. Mas segundo se vee parese nao terem nos coracoes muito arreigada a afeicao a seus idolos. Porque tanto que os convidao com o santo Baptismo e lhes declarao os misterios de nossa santa fee, sem muita deficuldade se rendem, e os aceitao.
As oracoes nao se lhes ensinao na sua lingoa por ser curta em vocabulos, e por essa causa serem muito ambiguos e de sinificacoes emcontradas. A doutrina se lhes ensina em portuguez com hum lingoa que lha vae declarando como sempre o costumarao os Padres da Companhia os quaes derao principio a conversao deste gentio, e oie a conservao e levao por diante como se ve na ilha Loanda, e terras vezinhas. De Deus verdadeiro tem alguma noticia confusa ainda que o nao onrrao com culto par¬ticular. Chamaolhe Zambiampungo que quer dizer Senhor do Ceo que tem poder sobretudo. As pessoas que tem experiencia da terra, entendem que nao avera firme e universal conversao desta gentilidade, senao quando Deus for servido tirar della per guerra o nome de Rey natural e sogeitala com poderosos presidios a coroa de Portugal.
São muito inclinados a feiras, e para comprarem barato, e venderem caro, tem tantas manhas que nenhuma nação lhes faz ventagem. Dinheiro de metal não corre entre elles, tudo he comutação dando huma cousa por outra. Em algumas feiras comprão mantimentos por capões, em outras por pedras de sal. Os portugueses comprão as cousas meudas por empondas que são terças de palmilha. Nas feiras comprão peças por panos de preço, por tafetá, damasco, veludo, alcatifas, margarideta, vinho e outras mercadorias de Portugal e da índia.
A quantidade de escravos que cada ano se tira de Angola he mui grande, com se vê dos muitos que se levão a Portugal, e muitos maes pera o estado do Brasil, e minas das índias de Castela, como também dos muitos contos de renda que da saqua delles tem a fazenda de sua Magestade. Destes o numero dos que são cativos em guerra, he nada em compa-ração dos que se comprão em feiras, às quaes feiras os Reys, e Senhores de toda Etiópia mandão vender seus escravos, e este trato he entre elles antiquíssimo e sempre usado, servindose de peças em lugar de dinheiro pêra comprarem vestidos, e o mais que hão mister. As cauzas e titolos mais uzados por onde os Senhores possuem, e vendem a outros pretos por cativos são estas: primeiro quando algum vassalo faz traição ao Senhor, e se lhe quer levantar com o estado ou comete crime com as molheres do Senhor, elle morre e toda a sua geração fica cativa. Segundo, assi os Reys como os Sobas tem todos certo numero de escravos repartidos por diversas aldeãs que seus antepassados lhes deixarão, e elles vão acrecentando com guerras e compras. Dos filhos destes usão por dinheiro e mandão vender nas feiras como está dito.
Quanto a paga de tributos, correm imediatamente com o Rey alguns Sobas poucos, e esses os mais poderosos. Todos os mais correm com os Senhores particulares; nem sofrem serem nisto imediatos a seu Rey, nem ao de Portugal, quando se vem pera nos, e dão por razão, que elles não podem per si tratar com seu Rey, e muito menos com o de Portugal, pello que querem ter Senhores, que conheção, e que em suas demandas e pre-tenções seiâo seus valedores diante do Rey.
O capitão ou soldado que tem Soba, pode tirar delle muito proveito, a saber, maça, azeite, vinho da terra pera os de sua casa, galinhas, capados, etc. Também podem mandar semear e recolher por seus escravos em terra de seu soba legumes e outros mantimentos. Porem quanto rende hum Soba a seu Senhor não se pode por agora saber até que soieitandose a terra de todo El Rey de Portugal, faça foral com moderado tributo que cada Soba aia de paguar. Peças não pagão cada anno, senão cousa muito pouca, mas copia dellas pagão de muitos em muitos annos. Nem sofrem que os tirem de seus antigos custumes, nos quaes seus antepassados e elles nacerão, e viverão sempre. Pello que alguns Portuguezes que avexarão a seus Sobas com lhes pedirem peças em tempos extraordinários derão occasião a nos ornarem avorrecimento, e tratarem de se levantar como oie em dia o estão quasi todos. Tem outro custume obrigatório o Senhor dalgum Soba, que guando o Soba lhe paga tributo, hade gastar com elle hum bom pedaço, em vinho, cedas, e panos finos, como he de 20 peças que lhe traz, hade gastar valia de sete, ou oito. Donde se entende quão grande e excessivo gasto El Rey nosso Senhor tomaria sobre si, se deitasse mão dos Sobas deste Reyno, os quaes como he dito são em numero setecentos e trinta e seis, afora outros de que ainda se não sabe, pois conforme a este custume se obrigava a sostentar huma riquíssima alfândega de todo género de sedas, e outras cousas de preço de Portugal, e da índia para satisfazer a tanto numero de Sobas quando lhe viessem pagar seus tributos.
Quanto aos custumes do tempo da guerra, El Rey de Angola nunca se acha nas batalhas. Quando ha de fazer guerra manda aos Sobas lhe dem certo numero de frecheiros até emcher a copia que lhe parece bastante. Entrega esta gente ao capitão mor do Reyno a que chamão Chiambole, com avsoluto poder no que toqua a guerra. E pera a administração da iustiça manda com elle o Tendala. Se no arrayal aserta algum triste sonhando de gritar itá itá, que quer dizer guerra, guerra, da que tomâo os outros mao aguouro e lhe cortão a cabeça. Assi como o campo vai marchando, tem o Rey por horas recado de quanto nelle passa, e quão longe está do imigo. Quatro ou cinco dias antes daquelle em que sabe se ha de dar a batalha, se aparta de suas molheres, e se recolhe só em huma casa da qual ninguém sabe parte se não hum vasalo de quem se fia que lhe leva de comer.
Dada a batalha o Chiambole (que sempre procura porse em parte donde possa escapar) vai dar conta ao Rey. E inda que ficasse desbaratado nunca da esta ma nova, mas conta como formou seus esquadrões, e quão esforçadamente peleiarão os da parte do Rey. Ordinariamente repartem sua gente em três esquadrões, no do meio vae o Chiambole, nos das ilhargas outros capitães, na dianteira os mais esforçados, como aventureiros a que chamão Gunzes.
As armas ofensivas de que usâo são arco, azagaja, e cutello, e os mais valentes trazem somente huma até duas frechas, e tem grande tento em não perderem o primeiro tiro, porque se o perdem com tanta ligeireza he sobre elles o imiguo, que lhe não deixa embeber a segunda frecha, antes o derruba e lhe corta a cabeça.
Armas defensivas nenhumas tem, toda sua defensão põe em sanguar que he dar saltos de huma parte pera outra com mil trejeitos, e tanta ligeireza que possam escapar da frecha e pilouro que aponta nelles. Deste modo peleiâo mui esforçadamente com os Portuguezes, ainda que em campo razo nunca levão a melhor. Mas acolhemse a suas fortalezas que são matos espeços em tempo que tem folha, de dentro dos quaes tirando sem serem vistos fazem comumente mais dano aos nossos. E he ia aguora tão grande seu atrevimento por algumas vitorias, que em semelhantes lugares por nossos pecados alcançarão (1) que aquelles que dantes fugião somente do soo dos arcabuzes, oie se atrevem a peguar delles e tiralos das mãos aos soldados.
Quando são desbaratados não fogem pera hum lugar onde reformam o campo, mas cada hum se acolhe pera a sua terra, e nesta fugida fazem mais dano huns aos outros do que os nossos lhes podião fazer, porque os que vão detrás pera segurarem aiuda vão matando, e decepando sem doo, com seus cutelos a quantos diante de si encontrão e lhes empedem a fugida. E assi tição os campos semeados de mortos e com pedaços de seus corpos as fragas, e rochedos, pelos quaes com cego medo se arremeção.
Peleiâo melhor nas suas terras que nas de outros senhores e quando são dos nossos acometidos fazem a vâoguarda menos rezistencia, mas de¬pois arretirada dos nossos carreguão com todo o peso da guerra, e metem aos nossos em mor aperto. Pelo que os capitães experimentados sempre põe a gente de mais esforço e melhor armada na retaguarda.

(1) Esta primeira povoação na terra firme em frente da ilha de Luanda, era a vila, futura cidade, de S. Paulo, cuja fundação data de 25 de Janeiro de 1576. O Padre Garcia Simões em carta de 7 de Novembro desse ano, assim refere a fundação: «Já estamos em hum sitio que no principio se offereceo a muytos ser mais cómodo para nossa povoação que outros. Tem nelle o Governador feito hum forte de taipa e assestada sua artilheria e he hum monte que entra com huma grande [ponta] pello mar, na qual ponta estamos situados por ser bom sitio». Citado Boletim, página 348. Cf, Ruela Pombo, Paiih Dias de Novais e a Fundação de Luanda, página 66.
(2) A traição do português, que neste passo e adiante no capítulo oitavo se refere, e também consta do Catálogo dos Governadores de Angola, escrito do s-éculo XVIII, qualifica-a Lopes de Lima de torpe e vergonhosa lenda, por a não ter encontrado nos escritores coevos, como Garcia Mendes de Castelo Branco e Domingos de Abreu de Brito. De facto, nem Garcia Mendes nem Abreu de Brito contam essa traição; mas Lopes de Lima não conhecia este nosso manuscrito, coevo daqueles acontecimentos. Lopes de Lima, Ensaios, Parte I, páginas XH-XIL Cf. Felner, Angola, página 141.
(3) Etiópia vem da palavra grega Aithiops, que significa “rosto queimado, moreno”.

09/07/2011














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