domingo, 27 de março de 2011


Grandes Homens – 3

Ainda Silva Porto e o seu tempo


Não vale a pena repetir que Silva Porto foi um grande sertanejo, homem honesto, trabalhador, que, enquanto sempre português, conseguiu um bom entendimento e amizade com praticamente todos os sobas de Angola. No século XIX.
Muito choram alguns ignorantes, a “desgraça” que foi para o povo das “colônias” portuguesas os “500 anos de colonialismo”!
Até 1890 Portugal tinha alguns lugares fortificados, que talvez não ocupassem um por cento do território! Para circularem e comerciarem pelos outros noventa e nove, tinham os “pombeiros” que pagar tributo aos sobas, por vezes tributos pesados, quando não assaltados e roubados de toda a sua “fazenda”! O próprio Silva Porto sofreu um violento ataque à sua libata em Belmonte, tendo ficado gravemente ferido, mesmo sendo, com o mais velho sertanejo Guilherme José Gonçalves, “homens de reconhecida capacidade, e que os povos têm muita consideração.”
A região do Bié pode considerar-se o centro geográfico de Angola. Planalto, com altitude média de 1.200 metros, daquela região nascem quase todos os rios que banham o país, o que permitia estabelecer ligações fáceis (?) em todos os sentidos.
Já vimos que Livingstone chamava mulatos aos comerciantes portugueses, incluindo o “chefe do bando”! Tinha alguma razão nisso, porque naquele tempo, entre 1843 e 1846 foi possível fazer uma lista dos “moradores-comerciantes” que viviam no Bié. Cerca de cem. Cinquenta e quatro eram negros, quarenta mestiços e somente seis brancos. Todos sabiam ler e escrever e haviam adotado algumas “regras européias”, como por exemplo usarem calças! “Nestas paragens dão o nome de brancos a todas aquelas pessoas que vestem calças, sem exceção de cor e menos de condição, é bastante para isso possuir alguma fazenda.” Bastava esta “indumentária” para serem reconhecidos como comerciantes e brancos! (Alguém imaginaria isto possível em colônias inglesas?)
Coisa curiosa, porque, um século mais tarde, sobretudo em Luanda, passou a usar-se o termo “calcinhas”, aplicado ao indivíduo africano, vaidoso, normalmente ignorante, mas que queria parecer “evoluído”! Será que o termo virá do século XIX ou XVIII?
Boa parte destes comerciantes, brancos ou não, recebiam as primeiras letras ensinadas pelos “professores” ambaquistas! Homens inteligentes, da região de Ambaca, onde foi grande a ação missionária.
Escreve Francisco Castelbranco, na sua História de Angola (Luanda, 1932), que “o ambaquista é ladino e manhoso. Conta-se que “tendo os ambaquistas que dirigir uma representação ao governo contra certa autoridade provincial, ao assiná-la se levantou a dificuldade de quem o faria primeiro, porque nenhum queria figurar à cabeça; resolveram então inscrever as suas assinaturas em circunferência de círculo, que mostra bem a manha de que são dotados!”
Sensacional.
Esta capacidade do português conviver com outros povos mereceu do grande sociólogo Gilberto Freyre o conceito de luso-tropicalismo, de que se aproveitou Salazar para justificar a continuação do tempo colonial. E criou na maioria das cabeças africanas, que Gilberto Freyre teria, quase, incentivado o colonialismo! Ignorantes!
Mas há outro “retrato” dessa convivência. Está escrito num relatório enviado à coroa portuguesa em 1776, pelo então governador do Piaui, João Pereira Caldas, que “encontrou uma região tipicamente brasileira, misturada, miscigenada, sem distinções de raças e cores”. E mais: “Neste sertão, por costume antiqüíssimo, a mesma estimação têm brancos, mulatos e pretos, todos, uns e outros, se tratam com recíproca igualdade, sendo rara a pessoa que se separa deste ridículo sistema.” (Laurentino Gomes, em “1822”).
Voltemos ao Bié. Nos primeiros anos após a abolição da escravatura, que Portugal decretou para todo o império em 1836, o movimento comercial no Bié caiu muito, e entre 1840 e 1846, a situação dos comerciantes era de extrema penúria, “vivendo os descendentes de portugueses ao desamparo, vestidos à moda gentílica, sujeitos a serem vendidos, como têm sido a maior parte deles pelo gentio!” (segundo Joaquim Rodrigues Graça, sócio e talvez amante da famosa D. Ana Joaquina dos Santos Silva, uma das mais poderosas comerciantes e traficantes de Luanda, em “Expedição ao Muatayânvua”, 1848). Só lentamente se recuperou o comércio, com marfim, urzela (1), cera, e a goma copal (2), sendo os dois primeiros os de maiores valores. E um pouco de óleo de palma e couros.
A “fazenda”, que era a “moeda” usada nas trocas comerciais no interior, era quase composta de zuartes, fazenda de lei (esta constando de quatro variedades todas de fraca qualidade: chita ordinária; crumadel ou coromandel, chita indiana); tapulins ou mabala, nomes brasileiros para uma espécie de tecido de algodão; birola, fazenda de algodão importada de Inglaterra para o Brasil e daqui reexportada para Angola e manguina (também inglesa e reexportada), pintados, lenços, riscado, algodão cru, baeta (tecido caro mais utilizado para presentes ou tributos), missangas, coral verdadeiro e falso, campainhas e outras miudezas, armas lazarinas e reúnas (3) e pólvora.
No entanto os tecidos representavam mais de 37% do total.
Ainda voltaremos a Silva Porto e o seu tempo.

(1) – Urzela: uma espécie de líquen tintorial – Rocella tinctorica – que fornece uma bela cor azul-violácea.

(2) – Goma copal: é uma resina vegetal, de alta qualidade, usada para fabricar vernizes, sendo chamada em Angola também de Kausi.
(3) – Lazarina era uma arma de fuzil comprida e de pequeno calibre, primeiro de fabrico português, mais tarde belga e por fim em Inglaterra. Trazia gravada a legenda “Lazaro Lazarino Legitimo de Braga” enquanto fabricada em Portugal e na Bélgica. Por fim chamada de "reúna".

15/03/11

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