segunda-feira, 21 de junho de 2010

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CASOS  DE  POLÍCIA



Quem não teve na vida uma ou diversas andanças com a polícia, no seu país ou até mesmo no estrangeiro? Polícia da cidade, em Portugal simplesmente PSP, a polícia de segurança publica que no Brasil é PM, polícia militar, de trânsito em Portugal, rodoviária no Brasil, de fronteiras ou federal, lá ou aqui, tanto fazendo que o aqui seja lá como vice versa, guarda fiscal nas alfândegas, e outras tantas variantes.
Tem muita variedade, ou especialidade de polícia, como ainda a judicial ou civil, e até, mesmo disfarçada, a secreta e os bufos.
Em países de primeiro mundo a polícia há já muitos anos é composta só por elementos com educação e cultura, e salário correspondente. Polícia competente.
Noutros, o caso não é bem assim, e tempo houve, que com a graça de Deus vai pertencendo ao passado, em que em Portugal se dizia que polícia era três furos abaixo de cão! Não que exatamente o fosse, mas onde havia fumo sempre houve fogo. Também por lá se dizia que só ia para polícia quem não sabia fazer mais nada.
De uma forma um quanto genérica, em países onde a polícia não representa a verdadeira autoridade constituída, a lei do teórico direito igual para todos, sem prepotência, ela é detestada. Também é mal paga, e talvez por isso mesmo quantas vezes se arroga uma força, que a farda lhe não confere, de que assim mesmo abusa.
Sempre houve polícias magníficos, cumpridores, zelosos, conscientes, educados, pobres, mas por menor que a nódoa seja o pano não está mais limpo. E ninguém jamais soube ao certo qual o tamanho da nódoa!
No entanto há polícias que ficam na memória.


O famoso "cara d'Aço"


Há mais de meio século, em Lisboa houve um, no trânsito, sem qualquer graduação, conhecido pelo Cara d’Aço. Não sorria, nem dava colher de chá, era temido mas tempo respeitado e admirado. Correto e incorrupto.
O Cara d’Aço quando aparecia, ou o motorista tinha tudo em ordem, ou não havia presidente, ministro ou general que conseguisse escapar das suas multas. Sempre justas, e assim indiscutíveis.
Durante a guerra, lá pelos anos 1940-44, com a tremenda dificuldade de combustível generalizada, em Portugal, os carros particulares só podiam circular às quartas e sábados. E além disso ainda tinham que previamente adquirir senhas, que sem elas não se abasteciam. Era o racionamento. Limitadissima quantidade por cada carro e por mês. Nos restantes dias só taxis, carros de serviços públicos ou de alguns particulares que, com autorização especial os utilizavam em serviço do Estado.

Ilídio Azevedo era um técnico de máquinas agrícolas, funcionário do Estado, autorizado a usar o seu carro, oficialmente, em serviço. Um carrinho pequeno dos anos trinta, descapotável, daqueles que além de abrir a capota ainda deitava o pára-brisas para a frente. Uma gracinha de carro.

Descia uma das principais avenidas de Lisboa, e lá estava o Cara d’Aço imperturbável no controle do pouco trânsito da época. Manda-o parar, com educação o cumprimenta e pede-lhe os documentos.

Ilídio, ar gozador, investido da importância que o poder andar no seu carro supostamente lhe daria, foi tirando da carteira todos documentos que carregava consigo e colocando-os alinhados em cima do pára-brisas, deitado sobre o capô. Bilhete de identidade, livrete do carro, licença de caça, carteira profissional, cartão de sócio do Benfica, e de outras agremiações desportivas ou culturais, e mais uns tantos outros deixando para o fim a tal licença que lhe permitia circular todos os dias, convencido que estava a levar grande vantagem sobre o polícia. Este, continuando a observar os outros poucos carros que circulavam, aguardava imperturbável o final da gracinha do motorista.
Tudo muito bem exposto e alinhado, o Cara d’Aço, sem baixar os olhos para aquela exibição, olhando bem nos olhos do motorista, diz-lhe com ar tranquilo e seco:
- Muito obrigado. Tome atenção que a sua licença de circular vence amanhã. Boa tarde.

Virou costas e deixou o engraçadinho ali especado, ao lado do carro, cara de bobo. Ele que esperava gozar com o polícia acabou ficando enxovalhado, catando de volta à carteira toda a papelada. O mais curioso é que ele nem fazia idéia que a licença ia caducar! Se fosse apanhado dois dias mais tarde teria o carro apreendido e pagava multa, que era pesada!

Naquele tempo, e naquelas circunstâncias da guerra os carros eram poucos, e a sensação geral era que o Cara d’Aço conhecia todos os carros e todos os motoristas. Ele só mandava parar alguém quando sabia - ou pressentia? - que alguma coisa não estava em perfeita ordem. Era um sujeito incrível, e impecável.
A uma senhora, metida a fina, a chic, que circulava em Lisboa, já depois da guerra, num vistoso carro americano conversível, com matrícula estrangeira, que depois de entrar em Portugal só podia circular no país durante três ou seis meses, o Cara d’Aço um dia pediu-lhe os documentos, que estavam em ordem. Mas fez um aviso:
- A senhora tome atenção porque o prazo para circular em Portugal termina em dez dias.
A dona chic entrou no carro, ar arrogante, e seguiu. O marido seria gente importante e nisso ela confiava. Se ele nela, que se andava a pavonear pela cidade... isso é outro papo que não vem agora para o caso. Nas vésperas de caducar o prazo que a lei concedia, o Cara d’Aço manda de novo pará-la e sempre com a mesma cara, e a mesma postura, educado:

- Não esqueça que só pode circular em Portugal mais dois dias. Bom dia.

Três dias depois, vem a senhora, o carro aberto, ar de grande madame, descendo a avenida. Ali estava também o nosso Cara d’Aço!

Manda parar o carro, pede os documentos, o prazo tinha expirado!
- Minha senhora: este carro está apreendido!
A senhora corou, berrou, blasfemou, mas o carro ficou ali mesmo e ela teve que seguir a pé! Apesar do marido importante ninguém a livrou da lei.



O Osório



Em Luanda, na fábrica de cervejas da Cuca trabalhou em tempos um pedreiro, rapaz novo, português, que mal sabia assinar o seu nome. Nem como pedreiro bom era, e como pessoa podia até ser ótimo, mas burro que nem um tijolo. Um belo dia despediu-se da empresa e não apareceu mais. Também não fez falta. Passaram-se meses e um dia tive que ir ao aeroporto, nem sei já o que fazer, mas qualquer coisa muito rápida. Parei o carro em frente à entrada, onde não era permitido estacionar. O estacionamento era ali mesmo ao lado, só contornar o passeio, mais umas dezenas de metros, mas como não havia movimento de aviões, o que supõe o aeroporto vazio de gente e carros, pareceu-me que não faria grande mal parar ali mesmo por uns momentos. Um polícia aproximou-se, tentou aprumar-se e disse:
- V.Exa. não pode estacionar aí.
- Eu não vou estacionar. Não demoro nada. Vou só ali dentro perguntar a que horas chega o vôo X.
- Mas não pode. Aqui não pode parar.
Como não valia a pena insistir com o polícia, fui para o estacionamento. Quando saí do carro e olhei melhor para o dito representante da autoridade, vejo-o sorrindo para mim e reconheci aquela cara, mas não sabia de onde.
- Eu conheço você, não conheço?
- Trabalhei na Cuca como pedreiro. Sou o Osório.
É verdade. Só podia ser ele mesmo! Aí a exclamação de espanto foi mais forte do que a musculatura que devia manter a minha boca fechada e acabou saindo o que não queria:
- Realmente, Osório, você só mesmo na polícia!
Penso que ele recebeu isto como um cumprimento, porque ficou com um sorriso idiota estampado na cara!
Era muito assim na polícia, e por esse mundo afora ainda tem alguns osórios, uns bem piores do que este que ainda mostrou os dentes com um sorriso. Idiota, mas sorriso. Felizmente é uma espécie, em muitos lugares, em vias de extinção!

in "Contos Peregrinos a Preto e Branco, de 1998

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