Coisas dos mares de
Angola
Vamos esquecer por uns momentos as políticas e as epidermes, e pensar um pouco naquela geografia do Atlântico sul, costa ocidental.
Já tantas vezes cantei aquelas águas, e a atração que elas exerciam sobre os meus genes de marinheiro, que um dia, com sacrifício financeiro, acabei por me fazer ao mar.
Se o tivesse feito sem qualquer dificuldade, o gozo seria incomparavelmente menor, se é que há gozo naquilo que nada nos custa, como pouco existe num encontro com as chamadas mulheres fáceis!
Só se aprecia em profundidade aquilo que nos apareceu primeiro através de sonhos, e destes, mal nós sabemos às vezes como, através de muita luta e perseverança, à sua concretização.
Um dia consegui concretizar o sonho de navegar à vela, naquela baía de Luanda e nos mares que a circundam, rumo ao norte até à foz do Dande, e sul ao paradisíaco Mussulo, chamado de ilha, como a Ilha de Luanda, mas que de ilhas pouco têm. Lugares de encantamento que o homem, qualquer homem, vai destruindo com velocidade rápida, sem que no amanhã os nossos filhos e netos possam sequer vir a compreender como era possível achar tudo aquilo uma benção da natureza.
A vela, apesar daqueles apelos, estava pouco desenvolvida em Angola, que tudo tinha para ser um grande centro deste desporto, onde não é necessário ser-se milionário para o praticar. Uma prancha de madeira, leve, que muita ainda se encontra por Angola fora, uma vara a fazer de mastro e uns panos.
Aos muxiluandos não há que ensinar coisa alguma neste aspeto, eles sabem muito bem como fazê-lo. Há só que os estimular, a eles também, e todos os que não sendo da samba, podem tirar do mar um prazer imenso.
Que ajuda podia ser dada para criar mais interesse pelas coisas do mar, quer seja vela, pesca, ou simplesmente praia?
Aquele mar sempre a cutucar na minha cabeça, com mais força do que gostosos quifunes, como a dizer-me faz alguma coisa, desperta essa gente que ainda não aproveita todas as maravilhas que, de graça, lhes oferece!
Um belo dia acordei com a idéia de organizar em Luanda um “Salão Náutico”, à imagem do que se fazia mundo afora, reduzido, como é óbvio à escala de país pequeno.
Enquanto matutava nisto, fui perguntando a outros aficionados do mar o que achavam da idéia. O primeiro perguntou-me se estava louco, porque fazer uma coisa daquelas em Angola era o mesmo que pregar no deserto. O segundo não ficou muito fora da mesma linha de raciocínio. Finalmente o terceiro foi bem mais objetivo: este gajo deve estar doente! Se matematicamente menos por menos dá mais, três vezes menos deveria dar muito mais!
E com o patrocínio do banco, para quem estava a fazer este trabalho de relações públicas, meti mãos à obra. Os primeiros contatos com gente ligada a atividades com o mar não foram muito promissores, mas aquela velha história de dizer ao segundo que o primeiro tinha abarcado a idéia com entusiasmo, e de ninguém querer ficar para trás, em pouco tempo os expositores já brigavam por melhor posição dentro do espaço conseguido para este evento, a estrutura do que se tornaria mais tarde o Hotel Panorama na Ilha de Nossa Senhora do Cabo de Luanda, a seguir ao Clube Naval, em cima da baía, olhando a cidade. Um lugar de eleição. Espetacular.
Não sei porque motivo as obras desse hotel estiveram embargadas durante muito tempo (seria alguma briga pela posse do terreno?), e a construção não tinha mais do que as estruturas de concreto em dois andares, além duma área externa, cimentada, que deve depois ter sido uma magnífica esplanada.
Compareceram construtores de barcos, entre eles um famoso, que tinha o estaleiro na Ilha, e que só o seu nome ter dito que sim, arrastou todos os outros, que apresentou uma traineira de pesca em estado de meia construção, tendo levado até carpinteiros para ali trabalharem durante a semana que durou o Salão. Também se expôs um belo dongo que os pescadores da ponta da Ilha, amável e alegremente cederam, com todo o seu equipamento de pesca dentro, e que só isso foi um sucesso, motores marítimos, desde os menores outboards aos grandes para embarcações de pesca, material de segurança no mar, material de pesca, fabricantes de velas, lojas de modas com roupa de praia, material de campismo, o que se puder imaginar relacionado ao mar, como pesca desportiva e comercial, vela e motor, surf, lazer, elegância e até alimentos enlatados que o mar fornecia.
Não faltaram maquetes dos navios das companhias de navegação, sempre uma atração para grandes e pequenos, e até um hobbista que construía pequenas réplicas de navios antigos foi descoberto na cidade e apresentou talvez uma dúzia de trabalhos lindíssimos.
Falou-se com o comando naval. Um almirante simpático que se prontificou a colaborar, mandando ir de Portugal dois grandes quadros com amostras de cordas e nós feitos na velha Fábrica Nacional de Cordoaria, que no fim da festa eu quis guardar mas... o almirante também, e pendurou na sua sala. Talvez ainda lá estejam até hoje! Quem sabe?
Tinha que se fazer um logotipo, um emblema, para anunciar e dar a conhecer o que ia acontecer. Para isso procurei o arquiteto do banco, expliquei-lhe o projeto e que queria um emblema. Ele, sarcástico e gozador diz-me:
- Um peixinho à vela, hein?
Eu não achei muita graça à observação porque estava levando aquele trabalho muito a sério, e respondi-lhe no mesmo tom:
- Sim. E com um motor de popa no cu!
De repente, naquela instantânea troca de gracejos, eu vi o emblema, rabisquei-o num papel e
- É isso mesmo. Um peixinho à vela com um motor no cu. Fica completo. Boa! Olhe! Agora desenhe isso bonitinho que é a sua arte!
Saiu um emblema, cartaz, ótimo. Fez sucesso e as pessoas quando o viram exposto iam-se interessando pelo que estava para acontecer.
Inauguração, dia 15 de Agosto de 1970, feriado da cidade que em tempos mais antigos se chamou São Paulo da Assunção de Luanda.
Fiz questão de convidar o Governador Geral para inaugurar este 1º Salão Náutico de Angola, que procurou declinar o frete. Insisti e ele acabou por dar o seu acordo desde que não houvesse discurso, e que não se demorasse lá dentro mais do que uns dez minutos. Combinado. Tudo pronto, dia e hora certos, chega Sexa. Autoridades, sabendo que ia o Governador Geral, não faltou uma só! Pudera.
Eu, responsável por aquela festa, à entrada para o receber. Mal se abre a porta do carro, o Governador olhou para mim e fez-se sinal, em silêncio, de que não havia discurso. Confirmei. Cumprimentou-me, ou antes, eu o cumprimentei, claro, nada de inverter as hierarquias, mesmo coloniais, e a seguir aqueles muene-mputus todos vieram também saudar o chefe, que não sei se teria muito defeitos, porque só falei com ele duas ou três vezes, uma delas esta, e sempre se mostrou um homem simpático.
A seguir aos cumprimentos agarra no meu braço e disse:
- Vamos dar uma volta rápida.
Interessou-se por tudo quanto ali estava, e acabou por se demorar mais de hora e meia, o que foi para mim um prémio (deixemos as políticas de lado). Se ele se interessou, o público em geral deveria corresponder do mesmo modo. E assim foi.
O policiamento e a guarda de tudo quanto estava exposto, durante as horas em que ficava aberto ao público, ficou a cargo do grupo de Escoteiros Marítimos de Angola, garotos entre os oito e talvez catorze anos, todos muito bem fardados, simpáticos, eficientes. (Nota: havia escoteiros de todas as cores!)
Um dongo em Luanda. Início séc. XX
Foi feito um catálogo da exposição, com nome e anúncios dos expositores, história de algumas maquetes, da fábrica de cordas, etc., que era vendido aos visitantes pelo preço de custo. O dinheiro arrecadado revertia inteiramente para a obra dos escuteiros.
No dia seguinte os jornais noticiaram o acontecimento com termos elogiosos, mas um jornalista, de “A Província de Angola” no final na notícia colocou uma observação desagradável:
"Se o banco... é que organizou este evento porque receber dinheiro pelos catálogos? Devia também oferecê-los."
Telefonei para o chefe da redação e comentei o assunto.
- Escreva para o jornal a explicar que a verba se destina aos escuteiros, que nós publicamos.
Sem prática de polémica nos jornais, assim foi feito, e no outro dia lá vinha
Recebemos do banco... a carta que a seguir transcrevemos.
E no final a mesma observação do jornalista:
"Continuamos sem entender porque o banco não ofereceu os catálogos."
Liguei de novo para o jornal:
- Já não me lembrava que não adianta discutir com quem tem acesso diário ao jornal e pode dizer o que lhe apetece. As minhas armas são outras: enquanto eu estiver neste banco, e sou eu que destino as verbas de publicidade, nem mais um cêntimo irá para o vosso jornal. Passe bem.
Era o principal jornal de Angola. Mas até eu sair daquela terra, não lhe foi dada nem mais uma linha de publicidade
Cada um luta com as armas de que dispõe, além de que amor com amor se paga!
de "Loisas da Arca do Velho" de Francisco G. de Amorim, 2001, inédito !
25.fev.10
Nenhum comentário:
Postar um comentário