terça-feira, 2 de março de 2010

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Orquídeas e
"Focinho de Porco"


Talvez em 1963, no tempo em que trabalhava para a Cuca, fui em serviço a S. Tomé, onde só tinha passado umas escassas horas durante as escalas que ali faziam os navios entre Lisboa e Angola. Desta vez ia ensinar o pessoal de alguns bares a lidar com cerveja de barril, que pretendíamos enviar também para aquela terra.
“Curso de Tiradores de Cerveja”, bastante badalado na pequena cidade de São Tomé, que passava a ter possibilidade de beber cerveja “a copo, de barril ou à pressão”, as imperiais, os finos, os chopes. No fim de cada aula sempre havia cerveja de borla para os clientes. Era necessário treinar os tiradores! Profissionalmente correu muito bem, e foi um trabalho proveitoso.
Como era obrigado a ficar uma semana na ilha, por causa dos vôos para Luanda, o tempo sobrava e procurei visitar um pouco daquela exuberante terra, sobretudo as plantações de cacau que não conhecia. Os meus cicerones eram ótimos. Amigos e colegas de estudo, um deles até do meu curso, fizeram questão em mostrar-me os mais ínfimos e especiais detalhes. Andámos muito, e vimos muito.
O verde ali é uma coisa! Exatamente sob o equador, calor e umidade certos, só não cresce o que não se deixa crescer. As ilhas de São Tomé e o Príncipe, podem considerar-se uma estufa com cerca de novecentos quilometros quadrados! Tudo aquilo é uma estufa... enquanto não se desmata!

Antúrios que se jogavam fora!
O que mais me impressionou nas plantações de cacau foi ver como se limpava o terreno. Tudo quanto crescia por debaixo das árvores era capinado: desde capins e plantas infestantes ou indesejadas de variadas espécies, a antúrios, lírios, begônias, orquídeas e outras plantas com flores e frutos dum exotismo maravilhoso, as imensas orquídeas cresciam agarradas aos troncos das árvores de sombreamento. Uma beleza. Passámos por caminhos abertos no meio dos cacaueirais ladeados com baunilheiras, planta também da família das orquidáceas, cujo perfume nos fazia pensar estarmos entre uma perfumaria e uma fábrica de bolos.

Begónias (dobradas)

Antes de sair de São Tomé fiz questão de pedir ao governador que me recebesse. Não foi difícil. O tal “Curso de Tiradores de Cerveja” fora comentado, e numa cidade com uma meia dúzia de milhares de habitantes, até um espirro se fica sabendo mesmo antes de ser dado! Sexa concedeu-me uns rápidos minutos pensando que eu ia ao beija mão.
- Senhor Governador, vou daqui impressionado. Esta terra é maravilhosa. Pena que viva quase exclusivamente do cacau. Exporta também um pouco de café, mas no fundo vive do cacau que enriquece meia dúzia de magnates lá em Portugal, e destrói sistematicamente uma riqueza natural que lhe podia dar muito dinheiro.
Sexa deve ter pensado que estava na presença de algum lunático. No mínimo um chato metido a esperto. Continuei.
- Eu vi capinar antúrios e lírios debaixo dos cacaueiros, que ficam no chão a apodrecer, quando na Europa se paga muito dinheiro por estas flores. São Tomé, e certamente o Príncipe, onde tenho pena de não ter podido ir, são estufas naturais. Podem-se produzir belíssimas flores exóticas o ano inteiro e vendê-las por bom dinheiro nos mercados ricos da Europa e Estados Unidos. Viver só do cacau, cultura quase exclusiva, está escrito nos livros, que acaba sendo um desastre no dia em que a cotação internacional baixar, além de esgotar as terras.
Sexa escutou e... boa tarde, passe muito bem!

Orquídeas que podiam ser de mil variedades

Falei sobre isto com muita gente. Com os meus amigos, técnicos, que mais não eram do que empregados dos donos das roças, para quem o único interesse era o chorudo lucro que dali lhes chegava todos os anos aos bolsos, lá... longe. Um dos maiores proprietários, e das melhores terras, tal como acontecia em Angola, Moçambique e ali em São Tomé, era o Banco Nacional Ultramarino, que cresceu imensamente à custa da sua política monetária de agiota. Criado para desenvolver a agricultura das colónias, os juros dos seus empréstimos foram sempre de tal montante que os agricultores que caíram nessa esparrela acabaram por ter que entregar as terras ao banco. Este, financiava-se a custo zero de juros! Pudera, o dinheiro era dos depositantes. Mas enfim, tinha previsto não falar de problemas políticos ou sócio-económicos neste texto, porque os considerandos poderiam levar a muitas páginas mais. Enfim, preguei no deserto. Estava bom assim. Para quem?

De todo aquele exotismo acabei colhendo umas hastes lenhosas com uns cinco a seis milímetros de espessura, de onde saíam uns frutos, não comestíveis, que nunca havia visto nada similar. Imagine-se uma pêra, bem amarela, cor viva, lisa, agarrada à haste não pela ponta estreita mas exatamente pelo lado oposto, ao contrário do caju, sem pedúnculo, bem encostada ao caule. Isso, assim, ao contrário. Imaginem ainda que a pêra não estava pendurada, como as que todo a gente conhece, nem de cabeça para baixo. Ficavam praticamente em posição horizontal. Da parte mais larga saem uma espécie de orelhas gordas, duas a três, parte integrante do mesmo fruto, e por isso com a mesma cor. Em cada haste, com uns sessenta a setenta centímetros de comprimento, o tamanho com que as colhi, entre três a quatro daqueles frutos. Conhecem a cara daquela boneca da tv a Piggy? Lembram-se dos Três Porquinhos? Algo da mesma família! A verdade é que lá em São Tomé tudo quanto consegui saber sobre esta planta é que lhe chamavam Focinho de Porco.
Colhi uma braçada, talvez uma dúzia destas hastes, lindíssimas, que guardei no hotel com o maior cuidado para chegar com elas intactas, a Luanda. No regresso a casa carreguei-as sempre na mão.
No aeroporto, quase a embarcar, um indivíduo desconhecido aproximou-se:
- Bonito, isso. Onde o senhor arranjou?
- Apanhei no mato. Na roça... lá debaixo do cacau.
Olhou, remirou:
- Interessante. Como se chama?
- Não sei. O único nome que me souberam indicar foi “Focinho de Porco”.
O sujeito franziu a testa, deu meia volta e desandou. Quem estava por perto começou a rir disfarçadamente. Eu, achei estranho, mas não só não entendi o que se estava passando como nem me interessava entender. Fiquei quieto, aguardando que me chamassem para o vôo.
Logo a seguir um outro indivíduo que estava por ali pergunta-me:
- Sabe quem era aquele homem?
- Não faço idéia. Nunca o vi antes.
- É o comandante da polícia.
- Muito bem. E depois?
- Aqui chamam-lhe o “Focinho de Porco”!
As flores, aliás os frutos, chegaram a Luanda em ótimas condições e, durante anos, sim, duraram anos, sempre fizeram um grande sucesso nas jarras de flores lá de casa.
Na jarra, a única coisa que se trocava era a folhagem verde que compunha o arranjo, por cima da qual aqueles lindos focinhitos de porco pareciam participar, interessados, em tudo quanto se passava na sala de nossa casa.
Orgulhosos, talvez agradecidos, porque finalmente alguém lhes reconhecera a beleza e valor, que pelos vistos, depois disto ninguém mais o fez.
Que pena. E São Tomé que tanto precisa que se faça algo pelo seu povo, que vive uma miséria grande.
Os “focinhos de porco”, os antúrios, os lírios, as orquídeas e tantas outras maravilhas, que além de terem um preço compensador, exigem boa qualidade e quantidade de mão obra, que não falta naquela terra, talvez ajudassem a minimizar o problema.
Quem sabe?

N.- Isto foi escrito antes de se ter declarado a descoberta de petróleo naquela terra. São Tomé pode viver agora melhor, mas o que é habitual é que o rendimento do petróleo fique com meia dúzia, e promova, com muita rapidez, a corrupção. Que Deus permita isto não venha a acontecer ali! O rendimento da produção agrícola, neste caso de flores, pode ficar nas mãos de centenas ou milhares de trabalhadores.
Alguém, algum político está interessado nisso?

Do livro “Loisas da Arca do Velho”, por Francisco G. de Amorim (inédito)

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