quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

.
Resquícios congelados

e de volta a Luanda
.
Antes de voltarmos a enfrentar o calor de Luanda, pequenas reflexões congeladas!
Uma delas é que aquele maravilhoso gelo azul pode ter muito mais de 2 ou 3.000 anos. Perfuração de gelo, na base francesa, alcançou profundidades onde o gelo tem 800.000 anos! Tudo isto para estudar o aquecimento global, mas de qualquer modo já imaginaram o chiquê de um whisky com essa idade? Não é pra qualquer um!
Outro “detalhe” – importante – que ficou por descrever, e pode ajudar a futuros viajantes no famoso Hércules: a bordo foi instalado, lá bem no fundo, um “toalete químico”! Vôos de 3 e 6 horas sem possibilidade de... seria um Deus nos acuda. O grande problema era alcançar esse lugar! Os passageiros que viajavam no centro do avião, onde as pernas da esquerda e da direita se entrecruzavam, não deixavam espaço nem para barata passar! Assim, sair da parte da frente e enfrentar essa travessia era um exercício de puro malabarismo. Agarrados, unhas e dentes aos suportes superiores, pousando os pés onde os passageiros com sorriso nos indicavam – em cima dos bancos – ao fim de extenuante jornada alcançava-se aquele indispensável destino! Tudo isto servia como treinamento físico, mas deixava os menos atletas um tanto desgastados!

Quando por fim terminou, no Rio, o vôo que veio de Punta Arenas, só com uma parada técnica em Pelotas, toda essa ginástica não foi suficiente para os pés deixarem de inchar! Cheguei com eles elefantesiados! De qualquer forma é bom que repita: se surgir outra...
Bem, voltemos a Angola, onde estávamos antes desta refrigerante aventura ao continente austral.
Depois de revisitada a rua Bernardim Ribeiro, em Luanda, onde nasceram, no mesmo ano de 1960 três lindas gatinhas que vão fazer cinqüenta anos – e continuam lindonas! – vamos andar um pouco para trás no tempo e lembrar a casa onde morámos antes dessa.
Na rua Vereador Ferreira Diniz. Vejam o mapa abaixo. Ficava no Bairro do Miramar. E fica, porque não só ainda lá está, como a rua não mudou de nome. Nessa casa nasceu o Francisco, em 1958. Casa pequena, mas quando se vasculham as memórias daqueles tempos sempre se encontra muita coisa para recordar! Até da casa.





Ali por perto moravam os Lagrifa, Teresa e Gui Pinto Basto, Purinha e Agostinho Funchal, Marrecas Ferreira, Leonor e Vasco da Câmara, Isabel e Jorge Viegas, e alguns outros que a memória não atina em encontrar, e ainda, na rua de trás, o Jorge Vieira, um dos maiores futebolistas portugueses de todos os tempos, que tinha sido o “capitão perfeito” do Sporting! Em 1958 era inspetor de vendas da Cuca, onde eu trabalhava também.
Com o nascimento de mais um neto, já o terceiro, de Portugal vieram os avós maternos para contemplar e gozar aquela nova vida! Este avô, de quem já escrevi um muito curioso episódio passado quando ele fora governador da Horta, nos Açores, terminando a universidade de Coimbra em 1923, foi o capitão da “Briosa”, a equipa da Acadêmica, que disputou uma final com o Sporting, capitaneado pelo famoso Jorge Vieira. Tinham-se passado 35 anos e nem um deles conseguia já reconhecer o outro, muito menos esperar, de sopetão, encontrá-lo no meio da rua, e em África! Quando os re-apresentei... foi uma festa! Caíram nos braços um do outro, deixaram as respectivas famílias, e sumiram! Só tarde entrou o vovô em casa! Tinham ido tomar uma cerveja, jantado e ainda sobrava conversa e recordações daqueles futebóis, e sobretudo daquele encontro em que o Sporting venceu por 1-0.
Enquanto permaneceu em Luanda, quase todos os dias se encontravam o Jorge Vieira e o Dr. Paes de Almeida, e recomeçava o papo: “Oh! Jorge Viera! E aquela jogada que você fez...”
O primeiro encontro foi praticamente a dois, mas depois havia uma porção de curiosos que se deliciavam a ouvir os dois velhos amigos a recordar lances dos tempos em que muitos, como eu, não eram ainda nascidos!
Por qualquer razão o governador de Angola, Horácio de Sá Viana Rebelo, estava nessa altura ausente. Assumia nessas ausências um dos secretários provinciais.
Na função, um senhor também formado em Direito, Coimbra, colega de curso do juiz Paes de Almeida, outro companheiro dos tempos “velhos”, que não perdiam ocasião de se encontrar e conversar como dois garotões ainda de capa e batina!
Quando o conheci tinha um já longo passado, toda a sua vida profissional em África, na carreira administrativa, e chegado ao topo da carreira como Inspetor Superior, e era o Secretário de Estado da Administração do Governo de Angola.
Por ser homem de bem e honra, logo no principio da sua vida pública sofreu tremenda injustiça ao ser enganado por um outro funcionário administrativo, ladrão, que por artifícios transferiu para sua responsabilidade um desfalque intencionalmente praticado. Teve dificuldade em se livrar do processo que o marcou em inicio de carreira.
Já perto dos sessenta anos, cabia-lhe assumir o governo na ausência do governador, por ser o mais antigo na função. Quando assim investido, o que aconteceu algumas vezes, cumprimentava os amigos:
- Luis de Vasconcellos, uterinamente governador de Angola!
Gozador, alegre, bem disposto, inteligente, tinha muita estória para contar, e com muita graça e facilidade contava e criava a sua piada.

Um outro colega seu na carreira administrativa do ultramar, era o Inspetor Sousa Santos, homem sisudo, pouco ou nenhum sentido de humor. Tinha mais dois irmãos, todos muito bem na vida, mas cada um com seu sobrenome diferente. Chamava-se um Sousa Machado, o outro Machado Sousa.
Que era estranho, isso era. Como o Dr. Luis de Vasconcellos era homem vivido e conhecia bem os três, curioso com a diferença dos nomes, alguém um dia lhe perguntou se sabia o porquê dessa coisa.
- Então, é simples: sendo o Sousa Machado mais velho, de início estava o pai por cima. Com o Machado de Sousa, era a mãe que estava por cima e o pai por baixo. Com o Sousa Santos o pai... não estava!
Como se pode imaginar, o colega Inspetor Sousa Santos, não gostou da graça e deixou de lhe falar!
Lembranças ligadas à rua Vereador Ferreira Diniz. 1958.
Um grande e muito simpático amigo que fez parte da equipa portuguesa de hipismo que ganhou uma medalha nas Olimpíadas de Berlim em 1936, pai duma bela prole de 13 filhos, o Marquês de Funchal, quando visitava os filhos em Luanda, tinha para comigo uma simpatia que me comovia. Volta e meia, depois do jantar ia dar a sua volta a pé e gostava de passar em nossa casa para dar dois dedos de conversa, sentados no fresco da varanda da frente! Pessoa encantadora, sempre alegre, quando chegava a meio da rua começava, sem barulho, a fazer uns gestos para me chamar a atenção. Se não estava mais ninguém em nossa casa ela avançava e ali ficávamos num belo bate papo! Se outros se tivessem antecipado, o nosso querido amigo, silenciosamente dava meia volta e sumia!
Foi nessa época que dois GRANDES caçadores lisboetas passaram uma pequena época em Angola: o Chico Manolete e o João Salgado, de quem já contei um famoso “duplo aos veados” que até hoje devem continuar de ótima saúde.
Do livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”:

O "baixinho"... do lado direito, e o dono da fazendinha de café, o segundo a contar da esquerda.

Um dos mais suis generis dos tais inspetores de cacimbo, (aqueles que visitavam Angola na época mais fresca para ver os seus negócios) homem sereno, amável, companheiro modesto e alegre, magro e comprido, dois metros de altura, nariz suficiente, foi o Chico Manolete! Figura especial. Manolete foi a alcunha, apelido no Brasil, que lhe puseram quando ele um dia entrou numa garraiada. Já com alguns copos no bucho, enfrentou bravamente o valente garraio, e tanto sucesso fez que os aficionados que assistiam à corrida acharam que estava parecendo o grande matador espanhol, Manolo Rodriguez, El Manolete, e aplaudiram-no entusiasmados: Olé! Manolete! Ficou o Chico Manolete. Pois este chegou também a sentir o fogo de uma paixoneta por Angola, ao ponto de querer comprar uma fazenda para plantar café! Numa visita relâmpago que fez a esta região, aos Dembos, tempo de chuva, o carro galgando subidas com dificuldade e descendo, mesmo sem querer, aquelas ladeiras barrentas, teve uma noite que dormir na mesma cama com o amigo que o levara. Eu. Não havia outra naquela casa simples, de madeira, perdida no mato. Era a cama do dono da casa, que a dispensou aos visitantes e possível comprador da sua xitaca, mini fazenda de café. Chico, muito pudico, com medo que durante a noite o amigo tivesse alguma desagradável atitude sonambulista, em sua opinião sempre pouco aconselhável e nada cristã, colocou entre os dois o travesseiro! A cama já era estreita para um, colchão caído para o centro. Imagine-se com dois e mais um travesseiro pelo meio! Mas foi o jeito!


Este Manolete também participou de algumas caçadas e começou a ficar animadissimo. Num dos fins de semana em que acompanhou uma das várias equipes de malucos da caça, presenciou uma cena diferente: em vez de caçarem a tiro, atirando-se em vôo de cima do jeep em andamento, estes caçaram à mão dois filhotes de chacal (Canis adustus?), espécie rara na região onde foram encontrados! Rolaram pelo chão, sujaram-se todos, riram, divertiram-se, e acabaram por levar os filhotes para Luanda, que mais tarde foram enviados para um Zoológico em Nova Lisboa, hoje Huambo.

O chacal (canis adustus)


Como nesse dia ainda se caçou um belo javali, carne deliciosa, o nosso Chico Manolete, achou que cada vez que tivesse apetite de carne de caça, era só ir dar uma voltinha, de preferência à noite quando era mais difícil encontrar fiscais de caça!
Caçar à noite era proibido, como é de calcular. Mas o entusiasmo por vezes é mais forte do que qualquer lei, ou lógica. O Chico tinha nesse tempo um pequeno furgão, Austin, amarelo, gema de ovo, talvez o único dessa horrível cor em Luanda, o que o identificava a quilometros de distância. Talvez o tipo de carro menos indicado para ir à caça. Mas era o que ele tinha. De vez em quando passava em nossa casa depois do jantar. Parava o carro na rua, tocava a buzina e sem sair do carro:
- Vamos num instante ali à estrada de Catete apanhar um javali!
- Chico, além de não serem mais horas para caçar, javali nem os olhos dá à noite!
- Então vamos caçar outra coisa!
Acabávamos por “caçar”, na nossa varanda, mais um bate papo, talvez um café.
Mas era assim há mais de meio século. Em Angola.


01.Dez.09

4 comentários:

  1. olá, acabo de receber este mail e como bom filho da cidade jardim, das acácias, informo que o tal Magalhães do ténis é meu "tio" e vive em Évora.

    um abraço

    Paulo Barros
    919 288 132
    pavafeba@gmail.com

    ResponderExcluir
  2. O Magalhães é o Mário, um dos muitos desta grande família.
    Da minha idade e meu companheiro de ténis foi um outro irmão, o Betinho, que também jogava muito bem.
    O outro companheiro do ténis, "desconhecido", é o Pompeu, que muitas vezes fazia par com o Mário.

    ResponderExcluir
  3. É o Mário Magalhães, irmão do meu amigo e companheiro de ténis Betinho, também grande jogador.
    O "desconhecido" é o Pompeu, que muitas vezes fez par como Mário.

    ResponderExcluir
  4. Ruca Vaz
    Muito obrigado pelas suas informações. Lembro agora, muito bem do Pompeu, aliás do nome, porque dele não havia esquecido.
    Havia um Ruca na Lusolanda - Raul Martins da Silva. Conheceu?
    Francisco Amorim

    ResponderExcluir