domingo, 27 de dezembro de 2009

Benguela  e ...

Falar de Angola e esquecer Benguela é pior que ir a Roma e não ver o Papa... mesmo os não crentes!

Benguela - vejam bem esta Praia Morena

Em 1657 já lá estava Benguela
(isto é para quem não sabe onde fica África, Angola e menos ainda Benguela!)

Pois é. Foi em Benguela que assentei os primeiros “arraiais” quando cheguei a Angola, casado, em 1954. Terra morena, tão cantada através de grandes poetas - é fundamental não esquecer os irmãos Lara, a Alda e o Ernesto - onde como já repeti muita vez, e não canso, era o único lugar no Mundo onde não havia pretos, nem brancos, nem mestiços: só gente! Praia, cerveja, algumas festas no tradicional Bairro Benfica, dos quintalões, das famílias tradicionais, e alegria suficiente!
O meu trabalho, com máquinas agrícolas, englobava todo o Centro e Sul de Angola o que proporcionou visitar essa imensa região, e não só as cidades como o “mato”!
Numa das primeiras viagens, lá para os lados de Quilengues fui visitar um jovem e incipiente agricultor e criador de gado, vivendo numa casa de adobe e cobertura de zinco, procurando crescer e fazer o seu pé de meia. A tomar conta não só das pessoas como do gado, uma cadela, atravessada de “Leão da Rodésia”, que estava com uns quantos filhotes, talvez com uns 30 dias. Curriculum da cadela: já bem cheia, em vésperas de parir, um leão rondou o gado aproximando-se perigosamente. A cadela, barriga cheiona, enfrentou a fera, chegou a levar uma patada que a fez voar, mas só desistiu quando o leão virou costas e foi embora! Moral da história: levámos um dos filhotes desta heroína para nossa casa!
Algum tempo depois a visita foi a Chimbe, a sul de Catabola, que se chegou a chamar Nova Sintra, mesmo que raramente alguém usasse esse nome! Um comerciante da “cidade” tinha comprado em leilão uma antiga fazenda de ingleses, abandonada, e queria cuidar dos terrenos e da casa. Uma noite passada no velho casarão, janelas sem vidros, e perto duma baixada alagada, foi o maior suplício que me lembro de ter passado: o mosquiteiro deixou uma pequena entrada aos pés da cama e o ataque das feras durante a noite, e sobretudo de madrugada, foi infernal. Por dentro, o mosquiteiro supostamente branco, estava preto, tanta era a bicharada!
Regresso a Benguela no magnífico combóio do CFB, Caminho de Ferro de Benguela. Carruagem cama, porque iria levar mais de 24 horas até ao destino. Dois leitos, um dos quais estava já ocupado por um inspetor de fazenda. Feitas as apresentações, logo de entrada o tal inspetor mostrou-se um ótimo companheiro, descontraído, divertido, sabia um monte de piadas, e fez com que a viagem fosse muito agradável. Passados uns quantos anos voltámo-nos a encontrar, dessa vez ambos a viver em Luanda, quase vizinhos, onde criámos uma bela amizade. O Alfredo Diamantino!
Há algumas histórias de Benguela que eu, desculpem, mas eu, não canso de repetir, nem que seja só para mim mesmo. Fazem parte da minha vida, dos momentos bonitos e simples que todos nós vivemos e que por isso não queremos esquecer. Os tempos não voltam, mas por vezes é bem melhor fechar os olhos e deixar fluir essas memórias do que ler um bom livro. Até porque as memórias, sabemos que não nos enganam.
A nossa casa, na Rua Fausto Frazão (está errado o nome no foto do Google), a uns quatrocentos metros daquela linda “Praia Morena”, quase na direção do “Porta-aviões”, como era o andar superior dum belo sobrado, sempre recebia uma constante e fresca aragem quando chegava a noite! 


Benguela! Rua Fausto Frazão e muito mais...
A nossa casa - o andar de cima - e a "viatura" de um só HP


Nesse tempo, ar condicionado, era artigo de que nem se cogitava. Mas aquela aragem, as janelas abertas, vinte e poucos anos de idade... era bem pertinho do paraíso!
Um dos serventes da Lusolanda, para onde fui trabalhar, o humilde e simpático António, volta e meia ia a minha casa ajudar nalguma tarefa mais pesada e, se entretanto chegasse a noite eu o levava de carona até perto da sua sanzala, Carona de bicicleta, porque carro... as finanças não davam para esse luxo. E lá ia eu pedalando, o António sentado no quadro, o “luminoso” farol iluminando o caminho! Uma noite, numa das ruas mais escuras que atravessávamos, uma intrusa cobra procurava cruzar a rua. O António quando viu a besta-fera saltou da bicicleta e, com algum desespero quis segurar-me para que não me aventurasse para tão medonho encontro! Mas eu, jovem, atrevido, decidi matar a fera; avancei com a bicicleta na mão, e sem grande dificuldade pus-lhe a roda da frente atrás da cabeça, ficando assim segura! “António! Arranja um pau!” Encontrou-se a arma, umas cacetadas na cabeça da bichinha que não nos havia feito mal algum, jogou-se o corpo da defunta para um canto da rua e lá voltou o António para o seu lugar de carona até ao destino final!
Nessa bicicleta lá íamos nós, a minha mulher de barrigão sentada no quadro, o cachorrinho, quando ainda pequeno apoiado no guidão, e quando chovia ainda a minha mulher segurava, além do nosso companheiro canino, um guarda chuva! Era um conjunto digno de nota, mas nunca ninguém se riu. Todos achavam que estava tudo certo.
Pois é. Benguela era assim. Qualquer dia voltamos lá, e um dos sonhos é voltar mesmo, fisicamente! Já sei que não está igual ao que era. Que as pessoas são outras. Que o meu amigo Antônio talvez nunca mais encontre, mas, voltar à Praia Morena, beber uma Cuca – naquele tempo ainda não havia Cuca que só foi inaugurada em 1956, só Laurentina, que era bastante ruinzinha, as alemãs Beck’s, Saint-Pauli e a holandesa Heinneken e pouco mais – e deixar as horas fluírem, sonhar um pouco... reviver!






Quem se lembra destes rótulos ?

Que bom.
Para o ano tem mais. De Benguela, Luanda, Lourenço Marques e Maputo, e de outros lugares em África. Não foi impunemente que por ali andei mais de duas décadas.
Bom Ano Novo!


N.- Se "clicarem" em cima das imagens podem vê-las ampliadas.

27.dez.09

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Quissange

Benguela. 1954.



Falar da musicalidade de África, sobretudo do ritmo dos negros, é quase pleonasmo! O africano tem o ritmo no corpo, na alma, na vida. Levou com ele essa musicalidade que lhe é congénita para todos os lugares do mundo para onde a diáspora os carregou.

Criou os blues, o jazz, o samba, o reggae, guardou em sua casa de Luanda a massemba, aquela sensacional dança das sembas, umbigadas, a rebita em Benguela, que ainda não há muitos anos se dançava em baile mandado por um marcador, às vezes em francês, como En promenade, Encore, etc., os batuques espantosos, a morna e a coladeira em Cabo Verde, a marrabenta em Moçambique, e muito mais ainda, que os eruditos de música já devem ter contado para quem se interessou em ouvi-los.

Mas há situações a que possivelmente poucos estudiosos de música tenham tido oportunidade de assistir, como eu por exemplo, na África do Sul, numa fábrica de equipamento agrícola, seção de caixotaria, de onde praticamente tudo era expedido embalado em caixotes ou grades de madeira.

Num armazém grande, meia dúzia de operários, preparavam esses caixotes. Recebiam as tábuas já cortadas, e de acordo com planos estabelecidos só tinham que as pregar para as transformar em caixas, de diversos tamanhos.

Cada homem em sua caixa, martelos e pregos para cada um. Todos em silêncio. A voz ali não fazia falta.

Um deles, à vez, dava a primeira martelada e logo em seguida, em ritmo de batuque, de dança, todos martelavam o mesmo numero de pancadas nos pregos. Quando um terminava, terminavam todos. Novo prego, novo sinal de partida, mais um pouco de batuque, e sempre por aí adiante.

Na visita que fiz a essa fábrica, acompanhado de mais oito visitantes, foi tal o meu espanto, admiração e entusiasmo por esse concerto de música que me deixei ali ficar uma porção de tempo, e acabei por me perder do grupo. Mas foi um espetáculo sensacional, e único, que não dá para esquecer.

Se fosse numa caixotaria de europeus, seis homens a martelar, ao fim de algumas horas esse pessoal deveria ficar surdo, com uma barulheira infernal, e mais os que tivessem a infelicidade de ter que os ouvir. Mas em África não era assim. Aquele martelar não era barulho, era música.

Em Benguela, no pequeno cais do caminho de ferro, cinco homens, filhos da África negra, fortes, descalços, descarregando um vagão de milho ensacado, cada saco pesando sessenta quilos. Tiravam os sacos do vagão para os colocar num caminhão.

O mesmo tipo de música dos carpinteiros da África do Sul, só que desta vez os instrumentos musicais eram os pés! Sim, os pés.

Arrastando os pés no chão, o barulho que faziam é uma espécie de sshhii, sshhii, sshhii. Difícil de explicar por escrito um som diferente. Pior ainda um ritmo para quem nada sabe de música, nem ler uma pauta! Tentem lembrar o som que faz uma locomotiva de caminho de ferro, das antigas, a vapor, que no Brasil chamam de Maria Fumaça. É algo como sshhii... ffuu... sshhii... ffuu... e aí vai o trem! No mesmo ritmo e imitando maravilhosamente essas locomotivas, assim aqueles homens iam descarregando o vagão. Um dentro do vagão para ajudar a levantar o saco que os outros colocavam nas costas. Quando todos estavam prontos um deles fazia o primeiro sshhii... com o pé, e lá iam os quatro imitando o Maria Fumaça lá da terra, começando por compasso mais espaçado para irem acelerando até ao caminhão! Tal como faz o comboio quando começa a andar!



Combóio (trem !) no interior de Angola

Fiquei ali um bom tempo, esquecido do resto do mundo que me rodeava, a apreciar este outro espetáculo, aquele ritmo incrível, inusitado, super original, que os homens faziam com a mesma naturalidade com que respiravam! Lembro que acharam graça ver-me a apreciá-los e ainda capricharam mais, se possível isso fosse! Trabalho pesado que a música aliviava e disfarçava. Quem já viu brancos fazer isto?





Estação do "CFB" em Benguela

E os Marimbeiros do Zavala? Em Moçambique, a uns trezentos quilometros para norte da capital, fica a região do Zavala, célebre pelos seus marimbeiros. Marimbas, xilofones, feitas de madeira, algumas com quase dois metros de comprimento. Instrumentos lindos, com uma elegância e beleza de fazer roer de inveja os mais renomados designers mundiais! O som, o ritmo, a musicalidade dessas marimbas é alguma coisa que precisa ser ouvido. Não dá para descrever.
Um grupo de cinco, dez, vinte homens tocando todos ao mesmo tempo as suas marimbas é um concerto inesquecível, digno de se apresentar em qualquer Carnegie ou Albert Hall por esse mundo fora. Entusiasmaria um Bach, um Mozart e até Beethoven.

Esses Marimbeiros do Zavala são já conhecidos em alguns países. Infelizmente em poucos. Quem perde é quem os não conhece, não os ouve.

Em África até o vento quando passa nas imponentes mulembas nas banzas dos sobas, agita as suas folhas ao ritmo quente e tranquilo do sol poente. Sem cadência é que não pode passar. Seria uma ofensa ao compasso do coração d’África.

Quissange é um pequeno instrumento de música africano. A descrição deste instrumento para quem nunca o viu é o mesmo que descrever o gosto de um fruto a quem também nunca o viu nem provou.
A minha primeira ida para África, para Angola, foi de navio. Avião naquele tempo, demorava dois dias, era caro, e não permitia levar mais dos que uma a duas malas, quando de navio, incluído no preço do bilhete tinha-se direito a um metro cúbico de bagagem, o que dava para muita coisa. Além de se poderem levar mobílias e até automóvel, por preço razoável. Fui no “Moçambique” um paquete misto de carga e passageiros, confortável, muito estável mesmo com mar mais instável. A viagem de Lisboa para Luanda demorava dez dias, passando ao fim de dia e meio na Ilha da Madeira, no Funchal, e seis dias depois em São Tomé.
Poucos passageiros aproveitavam aquelas escalas, sempre de muitas horas, para ir a terra. Uns porque enjoados do mar, outros por não conhecerem por ali ninguém, outros com medo que o navio depois zarpasse sem os levar, alguns porque não tinham no bolso mais do que o insuficiente para sobreviver nos primeiros tempos no destino, etc. Mas quem foi, teve oportunidade de conhecer lugares lindissimos.
A Madeira é um jardim acidentado, florido, alguns lugares mais altos com vistas deslumbrantes, comida e vinho de primeira ordem, magníficos hotéis, um clima temperado sempre muito agradável o ano inteiro e por ser uma das jóias da coroa portuguesa foi objeto de diversas tentativas de roubo por parte da Inglaterra que chegou um dia a apoderar-se da ilha. Roubou-a, ocupou-a, hasteou ali a sua bandeira, mas pouco tempo depois foi obrigada a arriar a sua arrogância e devolver aquela maravilha. Os ingleses sempre foram uns grandes sócios de Portugal!

São Tomé é outro jardim, mas um jardim em plena linha do equador. Parece um cone perdido no meio do oceano, com o seu ponto mais alto que se eleva a 2024 m. Devido ao calor equatorial tem sempre nuvens mantendo as terras baixas abafadas, muito úmidas. A temperatura não é muito elevada, mas o ambiente sempre saturado de umidade, permite que se desenvolva uma vegetação exuberante. Exuberante e luxuriante.

Quando se avista do mar aparece por cima dessas nuvens o pico, e lembra, visto de longe um imenso chapéu mexicano. Vive, mal, da agricultura, tendo já sido o maior produtor mundial de cacau. No meio das plantações nascem antúrios, begónias e outras maravilhas que se capinam para limpar o terreno! Ao longo dos caminhos daquelas plantações, sobretudo de cacau e café, cheira a baunilha, apanham-se cocos e bananas, e vê-se a água correr encosta abaixo, sempre límpida, mesmo nas épocas em que pouco chove. É inesquecível um passeio por dentro de São Tomé. É como entrar numa estufa de plantas exóticas, só que ali os únicos exóticos somos nós! Os homens.

Quando embarquei em Lisboa, fui convidado para me sentar durante as refeições à mesa do comissário, o mais antigo de todos os comissários dos navios portugueses, que poucos anos passados se aposentou. Era um homem que conhecia o mundo, por onde navegou dezenas de anos.

Naquele tempo a Europa não estava, como hoje, abastecida de frutos tropicais frescos, com exceção da banana que se cultiva em zonas temperadas como Madeira, Açores e Canárias.

Em todas as escalas o navio se reabastecia de produtos locais para alimentar passageiros e tripulação, e apresentar novas alternativas para variar e melhorar o cardápio. Chegava de manhã cedo, e zarpava à tarde. Sendo um navio de algum porte ficava fundeado em frente às capitais, e logo era rodeado de muitas e pequenas embarcações com vendedores de frutas, bonito artesanato, sobretudo na Ilha da Madeira, e com acrobatas que mergulhavam do convés superior do navio para agarrar as moedas que se lhes jogavam ao mar. Apanhavam-nas sempre já a dois ou três metros de profundidade, enquanto estas desciam oscilando lentamente para o fundo. Mesmo os passageiros que não saíam de bordo tinham com que se entreter.

Depois de sairmos de São Tomé, à noite, durante o jantar, o comissário, sabendo que alguns dos convivas da sua mesa nunca tinham estado em África, disse:

- Creio que aqueles que vêm para África pela primeira vez vão comer um fruto tropical que lhes é desconhecido. Só queria pedir-lhes um favor: que o provem e me digam a que sabe.

Ficámos curiosos, e quando serviram a sobremesa lá apareceu uma espécie de melão vermelho, que de fato alguns dos convivas nunca tinham visto. Cor bonita, muito mais que o melão de cor insípida, e quantas vezes de gosto também, e apesar de não ser muito polido cheirar a comida à mesa, havia que fazê-lo face à novidade e ao pedido do comissário. Para dar opinião sobre o paladar tem que se associar o olfato! Cheiro agradável. Provámos, e a todos soube muito bem. Era diferente. Ótima textura, fresco, sabor muito agradável. Está-se mesmo a ver que era mamão, ou papaia, como queiram.

- Digam-me lá a que sabe.

- A mim sabe-me a... flores.

- Tem graça - diz o comissário - ando por aqui há mais de trinta anos e nunca me souberam responder a esta pergunta. Realmente sabe mesmo a flores!

Foi a melhor comparação que consegui encontrar porque todo o aroma agradável normalmente provém de flores. Hoje sei muito bem que sabe mesmo é a mamão!

Algo parecido se passa com um quissange. É um instrumento tipicamente africano, só com cinco notas musicais, sem nada que se lhe possa comparar no chamado mundo ocidental, nem me consta que seja tocado em orquestras ou conjuntos mesmo os modernos. Só pelo povo simples de algumas partes de África, talvez com especial incidência na região de Benguela.

E o som? O som é produzido pela vibração de nove ou dez pequenas hastes de ferro forjado amarradas com arame recozido a uma base de madeira. Numa das bordas dessa base tem, enfiadas num arame mais forte, umas pequenas argolas de folha metálica que recebem a vibração e a transmitem numa espécie de eco. Toca-se com os polegares nessas hastes, como quem toca uma corda de violão, ficando os restantes dedos com o encargo de segurar a base de madeira que se pressiona encostada a meia cabaça, seca, que funciona como caixa de ressonância.

Deu para entender? É difícil. É ver a ilustração.

O som produzido é dolente, tranquilo e suave como a brisa daquele mar generoso de Angola que todas as tardes sopra do mar para terra.

Pouco tempo depois de ter chegado a Luanda, onde desembarquei, fui para Benguela, primeira cidade onde vivi em África. Cidade antiga, fundada em 1617, sede de Distrito, com porto pesqueiro e linha férrea, que naquela época teria poucos mil habitantes. Mar rico, o pescado daquela área era uma delícia! Cidade pequena, plana, calma, e que ficava ainda mais bonita quando a maioria das árvores que sombreavam as suas ruas se cobriam de flores. As Acácias Rubras (flamboyants) que foram tão pintadas, repintadas e cantadas pelos artistas e poetas locais! E ultimamente por visitantes poetas do Brasil!


As acácias em flor !
 

Cidade que descansava de noite com o silêncio e a brisa fresca vinda do mar.

Centro comercial com sólidas casas que estendiam a sua atividade e influência negocial pelo sertão adentro de onde compravam produtos agrícolas, como milho, massambala, feijão, cera, couros e outros e vendiam panos, alfaias, vinho, ferramentas, e muitas outras coisas. Pode-se dizer que dominavam o comércio de quase toda a metade sul de Angola.

Enquanto não aluguei casa para morar, hospedei-me num hotel que ficava no mesmo prédio do meu local de trabalho. Edifício novo, de dois pisos, sendo o térreo metade comercial, a outra metade com o restaurante do hotel e em cima os quartos. Hotelzinho simples, limpo, confortável.

Durante a noite à entrada do hotel ficava um guarda. Não havia necessidade de guardar o que quer que fosse, porque a vida era muito tranquila. A vida em Benguela era simples.

A primeira vez que me sentei numa esplanada para beber uma cerveja, ainda só importada porque não havia fabricação local, alemã ou holandesa, St. Pauli Girl ou Heinneken, as mais comuns nessa época, quando perguntei quanto devia, o criado, que não sei se alguma vez me tinha visto, traz-me um pequeno bloco de folhas em branco e um lápis.
- Para que é isto?

- P’ra pô na conta.

- Para pôr na conta de quem? perguntei brincando.

Mostrou os dentes alvissimos, rindo.

- Na conta do pátrão.

Nesse caso o patrão era eu! Toda a gente punha na conta, e no final do mês peregrinava pelas lojas onde tinha feito despesa, e pagava. Pagavam quase todos, uns com mais pontualidade do que outros, como sempre ocorreu e vai continuar. Raro alguém andar com dinheiro no bolso, e mais raros os que tinham o crédito... desacreditado. Tudo era feito na base da confiança. Imaginem como eram belos esses tempos.

Voltemos ao guarda do hotel. Talvez fosse para guardar a segurança psicológica dos hóspedes. Quem sabe? Ou como diz um poema de Neves e Sousa sobre Benguela que



os guardas da noite só guardam a noite
morna e negra, comprida noite tropical



Sékulo, preto véio, chegava silencioso ao principio da noite e com a mesma humilde mansidão ia embora de manhã.
Sentava-se em cima de um velho luando no degrau da entrada do prédio, encolhido, os joelhos quase encostando nos queixos, e envolto num também já coçado cambriquito ali ficava a noite toda.

Para não adormecer tocava no seu quissange. Música? É difícil chamar música ao que ele tocava. Talvez melodia ou ritmo. Nem isso. Simplesmente sons com uma cadência agradável mas monótona. Sempre muito igual acabava sendo incrivelmente monótono. Um chorinho triste, não o Chorinho musical brasileiro, este sim, alegre, mas, como dizia Vinícius de Morais, um chorinho de velhinho moribundo, né?

A janela do meu quarto ficava bem por cima da entrada. África, calor, no tempo em que ar condicionado estava a dar os primeiros passos no mundo dos ricos, e Angola era dos pobres, só se podia dormir com a janela toda aberta. Apesar dos meus vinte e poucos anos, boa saúde e somente algum nervosismo, normal para quem chega a um novo continente e vai começar nova vida profissional, sem conhecer vivalma naquela cidade, o sono não era tão profundo que não desse para escutar de vez em quando aqueles sons, uma espécie de gemidos, mesmo que suaves, mas sons, ininterruptos, e de timbre desconhecido. Sons que de começo até davam sono, mas o melhor som para dormir sempre foi o silêncio total, depois que se calaram as canções de ninar das nossas mães.

Acabei por ir à janela espreitar o que se passava, e ali mesmo por baixo, um vulto escondido debaixo de um pano, de formato estranho, emitia esses sons. Não disse nada, não fosse interromper a criatividade de algum génio musical, mesmo ignorado pela crítica, e adormeci.

De manhã cedo quando fui matabichar ainda ali estava o músico.

- Bom dia.

- Bom dia, pátrão.

Elogiei a sua aptidão musical, e pedi que me mostrasse o instrumento.

- Como se chama isto?

- Quissange, pátrão.



- Gostei. Toca mais um pouco para eu ver como é, toca?
Sorridente se prontificou. Deve ter sentido o mesmo orgulho de Chopin quando príncipes lhe pediam, por favor, que tocasse para eles! Eu estava curioso para ver como se fazia sair som de tão estranho objeto.

Depois de mais uma pequena exibição, interessante, perguntei-lhe se me venderia o quissange. Hesitou, mas por fim, uma nota já não sei de quantos angolares não teve dificuldade em convencê-lo.

A partir dessa noite o silêncio na rua foi magnifico. Apesar da alguma falta que faziam aqueles lamentos!

Esse quissange até hoje faz parte daquilo a que enfaticamente chamo a minha pequena coleção de recordações, curiosidades, para mim preciosidades, africanas. Meia dúzia, mas minhas, e importantes.

Já depois de estar morando na casa que aluguei, o mesmo guarda, que eu via quase todos os dias por ter o meu trabalho no prédio do hotel, acabou aparecendo com um novo quissange, feito por ele, e assim voltou a embalar as noites de outros hospedes com sono mais pesado e menos interessados em colecionar objetos curiosos.

Escrito em 1997


segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

De volta à Antártica
num instantâneo!

Para não deixar esquecer alguns dos amigos (infelizmente não captei todos) que andaram lá pelos frios do Sul! (deixámos os títulos nobiliárquicos ou profissinais de lado, e usámos qualquer ordem de nierarquias!)


 Francisco Ortiz

 André Cabral de Sousa

 Aléssio Ribeiro Souto

Rômulo Bareto Mello

Flávio Bierrenbach

Ricardo Parpagnoli

Paulo Leite Lacerda

Roberto Ramos Santos

e para fechar com chave de ouro...

Stephania Serzanick

Lamento não poder fazer mais, mas as fotos não o permitiram!
Fica para a próxima!

12.dez.09


quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Luanda !



Se a Cabral Moncada falasse...



Qualquer dia recuaremos um pouco mais no tempo, para passar uns momentos em Benguela, mas por enquanto “devido a pedido de várias famílias”, vamos revisitar a Cabral Moncada e seus primeiros arredores.
Esta rua, com menos de um quilometro de comprimento, acabava, e acaba, passado por baixo de um prédio, na rua Dom Manuel I, ao lado da Igreja da Sagrada Família, e as casas do lado de baixo davam para um belo parque, hoje muito ocupado, o Alvalade. Sem vizinhos por perto!

(Clic em cima para ver maior) A nossa casa assinalada.
Cruzando a Sá da Bandeira e por cima a Guilherme Capelo.
Por baixo "era" o parque de Alvalade


Segue uma relação dos moradores daquela rua, a contar, mais ou menos de cima para baixo, e mesmo em épocas diferentes, porque alguns dos indicados moraram, sucessivamente na mesma Casa, e de alguns mais próximos em outras duas ruas adjacentes, sempre acautelando a possibilidade de a memória estar como trapo velho, cheia de furos!
Quem morava talvez “mais longe” eram os Castro Ferreira, António e Maria da Luz. Ele o pediatra dos nossos filhos. Seguem-seo nosso medalhista olímpico, na vela, em Helsíquia, Francisco Rebelo de Andrade, o Chico d´Água e a Gracinha, Manuel e Luiza Mexia e suas seis filhas e o Luis e Ticha Ricciardi, não sei já em que cronologia, mas que moraram na mesma casa. O Fernando e Mariana Castelo Branco (Pombeiro), Sebastião e Luiza Calheiros, João e Teresinha Morais, João Cadete Leite, Zé Maria Mendonça, e no prédio na nossa frente, que mesmo em frente à nossa porta tinha uma pequena mercearia dum senhor já mais velho que os nossos filhos chamavam de “avô Mata”, e que usava a cintura das calças quase no meio do peito, e nos andares acima o Zé e Cíntia Cabral Ribeiro, Manuel Maia do Vale, Zé e Isabel Parestrelo, Tono e Nani Oliveira Lima com as seis filhas, Carlos Baião, Eurico e Isabel Burguete, Manecas e João Bernardo Leiria, família Sá Machado, e, lá em baixo, já onde curva para a rua Guilherme Capelo morou ainda o Neves e Sousa!
Além do nosso clã que contribuía com mais dez habitantes! Nem vale a pena dizer quantos filhos tinha cada casal. Primeiro porque eu já faria grande confusão, e sobretudo porque, de fato, aquela rua era uma alegria de criançada!
A meio da rua, onde ficava a nossa casa, começava a Avenida Sá da Bandeira com o Alfredo Helena Diamantino e a grande família Melo Vieira, Carlos e Fernanda, um pouco à frente o João e a Stusia Macedo a seguir o Martim e a Maria Dornellas com seus dez filhos! Não vamos mais em frente nesta avenida porque daríamos a volta à cidade apesar de dois ou três quarteirões adiante lá terem morado o António e a Ana Ravara Belo, antes de irem para Nova Lisboa!
Não posso é esquecer o Zé Neto e a Arlete, na rua Guilherme Capelo – hoje avenida Nkumah – meu grande amigo e grande companheiro de caça, e seus quatro filhos.
Como não ter inúmeras recordações deste tempo e dessa rua! Tantos amigos ao lado uns dos outros, amizades que se cultivavam sem qualquer cerimónia e muita freqüência, e que ainda hoje, mais de quarenta anos passados, muitos deles continuam a fazer parte inseparável da nossa família!
Era uma festa alguns jantares em nossa casa. Não cabiam mais de 30 a 34 e assim nunca se podia convidar os amigos todos, mas por partes, o que aumentava a nossa alegria, porque mais “festa” levávamos para casa. Melhor ainda nas noites em que se organizava uma sessão de fados! Ahhh! Que maravilha. Ainda tenho as gravações dos bravos cantadores e cantadeiras, de 1964. Volta e meia, as fitas K-7 já muito velhas, ainda me deliciam a ouvir aquela noitada, que normalmente terminava dia claro, os convivas saindo com óculos escuros, não exatamente por causa do sol, mas ... dos copos! Uma noite cantaram a Maria da Luz, a Zé Fezas, o Manel Teixeira de Abreu, a Minela e o Nestor Costa Figueira, o Zé Perestrello, herdeiro autêntico do Marceneiro, e até a Teté Rebelo de Andrade nos deu um ar da sua graça. A meio da noite continuavam a entrar mais amigos que não queriam perder a farra, sobretudo a Isabel e o Eduardo Cruz de Carvalho que sabia onde desencantar o guitarra e o viola profissionais para melhorar o sabor castiço dos amadores!

Zé Parestrello, Fernando Fezas, Eduardo e Isabel Cruz de Carvalho, "?",
Becas e Jorge Jonet, Isabel Perestrello, e de costas... adivinhem!

Pepe... (de Vitoria, Espanha, Don Vitoriano Arizti e a dona da casa!

E o “carraço” que comprei, meio desfeito, em Portugal, levei para Luanda, restaurei e passou a ficar ao serviço dos militares que iam chegando para cumprir “a guerra”? Morris Minor 1932, conversível, parecia um carrinho de criança, mas andava! Serviu a tantos, sobretudo aos que estavam no interior, ou embarcados, e quando em Luanda. um carro, mesmo que não ultrapassando os 40 km/hora – no pique da aceleração! – fazia as suas delícias e lhes dava independência. Lembro de vários “utentes”, a começar pelo Manel Teixeira de Abreu, o primeiro a fazer toda a sua “guerra de caneta” com o que os seus filhos chamavam o “jeepinho”, um capelão paraquedista, Pe. Frederico (?), que nunca mais vi, o amigo de infância e imediato de um navio patrulha, Eurico Burguete e seu comandante que... talvez... se chamasse Almeida Ribeiro, mas a memória já não garante nada! E outros. O “aluguer” do carro era simples: “Como o levas... devolves! Se avariar nas tuas mãos, conserta!” Nunca avariou!

A "grande máquina"! O Vitor Castanheira Nunes (arganilense até à medula) e um dos meus "patrões" oimpática José Manuel Martins


Um belo dia a casa ao lado da nossa ficou vaga e ali se foi instalar o quartel dos Voluntários. Uma força montada com o pessoal que teve que fugir do interior, sobretudo das fazendas ocupadas ou destruídas. Gente brava mas sem preparação militar. Uma manhã ouço um tiro de carabina, mesmo ali; saio e vejo um dos tais voluntários meio paralisado de espanto! “Estava a limpar a arma” mas... havia “esquecido” um bala na câmara! Não lhe atravessou os miolos, talvez porque os não tivesse, e foi espetar-se no teto da nossa varanda!
Em 1974 os Voluntários foram dispensados, acabou essa organização e como os novos vizinhos tivémos o comando do FNLA! Beleza. Em guerra com o MPLA, ainda, volta e meia havia tiroteio, de metralhadora, entre soldados dos dois Movimentos. Era a hora em que lá em casa todos se deitavam no chão à espera do fim dessa troca de gentilezas, que chegou ao ponto de meter bazucadas pelo meio.
Mas nada disso nos tirou o que de bom e durante mais de 10 anos se viveu naquela rua; e não foram mais anos porque entretanto estivemos também três anos e meio em Lourenço Marques, a Maputo de hoje, de onde há também boas histórias para contar.
Fica para uma das próximas!
Enquanto ali morámos, dez anos seguidos, nasceram, SÓ, mais o João, a Joana, o Tiago e o Lourenço. E chegou!


11.dez.09






quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

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Resquícios congelados

e de volta a Luanda
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Antes de voltarmos a enfrentar o calor de Luanda, pequenas reflexões congeladas!
Uma delas é que aquele maravilhoso gelo azul pode ter muito mais de 2 ou 3.000 anos. Perfuração de gelo, na base francesa, alcançou profundidades onde o gelo tem 800.000 anos! Tudo isto para estudar o aquecimento global, mas de qualquer modo já imaginaram o chiquê de um whisky com essa idade? Não é pra qualquer um!
Outro “detalhe” – importante – que ficou por descrever, e pode ajudar a futuros viajantes no famoso Hércules: a bordo foi instalado, lá bem no fundo, um “toalete químico”! Vôos de 3 e 6 horas sem possibilidade de... seria um Deus nos acuda. O grande problema era alcançar esse lugar! Os passageiros que viajavam no centro do avião, onde as pernas da esquerda e da direita se entrecruzavam, não deixavam espaço nem para barata passar! Assim, sair da parte da frente e enfrentar essa travessia era um exercício de puro malabarismo. Agarrados, unhas e dentes aos suportes superiores, pousando os pés onde os passageiros com sorriso nos indicavam – em cima dos bancos – ao fim de extenuante jornada alcançava-se aquele indispensável destino! Tudo isto servia como treinamento físico, mas deixava os menos atletas um tanto desgastados!

Quando por fim terminou, no Rio, o vôo que veio de Punta Arenas, só com uma parada técnica em Pelotas, toda essa ginástica não foi suficiente para os pés deixarem de inchar! Cheguei com eles elefantesiados! De qualquer forma é bom que repita: se surgir outra...
Bem, voltemos a Angola, onde estávamos antes desta refrigerante aventura ao continente austral.
Depois de revisitada a rua Bernardim Ribeiro, em Luanda, onde nasceram, no mesmo ano de 1960 três lindas gatinhas que vão fazer cinqüenta anos – e continuam lindonas! – vamos andar um pouco para trás no tempo e lembrar a casa onde morámos antes dessa.
Na rua Vereador Ferreira Diniz. Vejam o mapa abaixo. Ficava no Bairro do Miramar. E fica, porque não só ainda lá está, como a rua não mudou de nome. Nessa casa nasceu o Francisco, em 1958. Casa pequena, mas quando se vasculham as memórias daqueles tempos sempre se encontra muita coisa para recordar! Até da casa.





Ali por perto moravam os Lagrifa, Teresa e Gui Pinto Basto, Purinha e Agostinho Funchal, Marrecas Ferreira, Leonor e Vasco da Câmara, Isabel e Jorge Viegas, e alguns outros que a memória não atina em encontrar, e ainda, na rua de trás, o Jorge Vieira, um dos maiores futebolistas portugueses de todos os tempos, que tinha sido o “capitão perfeito” do Sporting! Em 1958 era inspetor de vendas da Cuca, onde eu trabalhava também.
Com o nascimento de mais um neto, já o terceiro, de Portugal vieram os avós maternos para contemplar e gozar aquela nova vida! Este avô, de quem já escrevi um muito curioso episódio passado quando ele fora governador da Horta, nos Açores, terminando a universidade de Coimbra em 1923, foi o capitão da “Briosa”, a equipa da Acadêmica, que disputou uma final com o Sporting, capitaneado pelo famoso Jorge Vieira. Tinham-se passado 35 anos e nem um deles conseguia já reconhecer o outro, muito menos esperar, de sopetão, encontrá-lo no meio da rua, e em África! Quando os re-apresentei... foi uma festa! Caíram nos braços um do outro, deixaram as respectivas famílias, e sumiram! Só tarde entrou o vovô em casa! Tinham ido tomar uma cerveja, jantado e ainda sobrava conversa e recordações daqueles futebóis, e sobretudo daquele encontro em que o Sporting venceu por 1-0.
Enquanto permaneceu em Luanda, quase todos os dias se encontravam o Jorge Vieira e o Dr. Paes de Almeida, e recomeçava o papo: “Oh! Jorge Viera! E aquela jogada que você fez...”
O primeiro encontro foi praticamente a dois, mas depois havia uma porção de curiosos que se deliciavam a ouvir os dois velhos amigos a recordar lances dos tempos em que muitos, como eu, não eram ainda nascidos!
Por qualquer razão o governador de Angola, Horácio de Sá Viana Rebelo, estava nessa altura ausente. Assumia nessas ausências um dos secretários provinciais.
Na função, um senhor também formado em Direito, Coimbra, colega de curso do juiz Paes de Almeida, outro companheiro dos tempos “velhos”, que não perdiam ocasião de se encontrar e conversar como dois garotões ainda de capa e batina!
Quando o conheci tinha um já longo passado, toda a sua vida profissional em África, na carreira administrativa, e chegado ao topo da carreira como Inspetor Superior, e era o Secretário de Estado da Administração do Governo de Angola.
Por ser homem de bem e honra, logo no principio da sua vida pública sofreu tremenda injustiça ao ser enganado por um outro funcionário administrativo, ladrão, que por artifícios transferiu para sua responsabilidade um desfalque intencionalmente praticado. Teve dificuldade em se livrar do processo que o marcou em inicio de carreira.
Já perto dos sessenta anos, cabia-lhe assumir o governo na ausência do governador, por ser o mais antigo na função. Quando assim investido, o que aconteceu algumas vezes, cumprimentava os amigos:
- Luis de Vasconcellos, uterinamente governador de Angola!
Gozador, alegre, bem disposto, inteligente, tinha muita estória para contar, e com muita graça e facilidade contava e criava a sua piada.

Um outro colega seu na carreira administrativa do ultramar, era o Inspetor Sousa Santos, homem sisudo, pouco ou nenhum sentido de humor. Tinha mais dois irmãos, todos muito bem na vida, mas cada um com seu sobrenome diferente. Chamava-se um Sousa Machado, o outro Machado Sousa.
Que era estranho, isso era. Como o Dr. Luis de Vasconcellos era homem vivido e conhecia bem os três, curioso com a diferença dos nomes, alguém um dia lhe perguntou se sabia o porquê dessa coisa.
- Então, é simples: sendo o Sousa Machado mais velho, de início estava o pai por cima. Com o Machado de Sousa, era a mãe que estava por cima e o pai por baixo. Com o Sousa Santos o pai... não estava!
Como se pode imaginar, o colega Inspetor Sousa Santos, não gostou da graça e deixou de lhe falar!
Lembranças ligadas à rua Vereador Ferreira Diniz. 1958.
Um grande e muito simpático amigo que fez parte da equipa portuguesa de hipismo que ganhou uma medalha nas Olimpíadas de Berlim em 1936, pai duma bela prole de 13 filhos, o Marquês de Funchal, quando visitava os filhos em Luanda, tinha para comigo uma simpatia que me comovia. Volta e meia, depois do jantar ia dar a sua volta a pé e gostava de passar em nossa casa para dar dois dedos de conversa, sentados no fresco da varanda da frente! Pessoa encantadora, sempre alegre, quando chegava a meio da rua começava, sem barulho, a fazer uns gestos para me chamar a atenção. Se não estava mais ninguém em nossa casa ela avançava e ali ficávamos num belo bate papo! Se outros se tivessem antecipado, o nosso querido amigo, silenciosamente dava meia volta e sumia!
Foi nessa época que dois GRANDES caçadores lisboetas passaram uma pequena época em Angola: o Chico Manolete e o João Salgado, de quem já contei um famoso “duplo aos veados” que até hoje devem continuar de ótima saúde.
Do livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”:

O "baixinho"... do lado direito, e o dono da fazendinha de café, o segundo a contar da esquerda.

Um dos mais suis generis dos tais inspetores de cacimbo, (aqueles que visitavam Angola na época mais fresca para ver os seus negócios) homem sereno, amável, companheiro modesto e alegre, magro e comprido, dois metros de altura, nariz suficiente, foi o Chico Manolete! Figura especial. Manolete foi a alcunha, apelido no Brasil, que lhe puseram quando ele um dia entrou numa garraiada. Já com alguns copos no bucho, enfrentou bravamente o valente garraio, e tanto sucesso fez que os aficionados que assistiam à corrida acharam que estava parecendo o grande matador espanhol, Manolo Rodriguez, El Manolete, e aplaudiram-no entusiasmados: Olé! Manolete! Ficou o Chico Manolete. Pois este chegou também a sentir o fogo de uma paixoneta por Angola, ao ponto de querer comprar uma fazenda para plantar café! Numa visita relâmpago que fez a esta região, aos Dembos, tempo de chuva, o carro galgando subidas com dificuldade e descendo, mesmo sem querer, aquelas ladeiras barrentas, teve uma noite que dormir na mesma cama com o amigo que o levara. Eu. Não havia outra naquela casa simples, de madeira, perdida no mato. Era a cama do dono da casa, que a dispensou aos visitantes e possível comprador da sua xitaca, mini fazenda de café. Chico, muito pudico, com medo que durante a noite o amigo tivesse alguma desagradável atitude sonambulista, em sua opinião sempre pouco aconselhável e nada cristã, colocou entre os dois o travesseiro! A cama já era estreita para um, colchão caído para o centro. Imagine-se com dois e mais um travesseiro pelo meio! Mas foi o jeito!


Este Manolete também participou de algumas caçadas e começou a ficar animadissimo. Num dos fins de semana em que acompanhou uma das várias equipes de malucos da caça, presenciou uma cena diferente: em vez de caçarem a tiro, atirando-se em vôo de cima do jeep em andamento, estes caçaram à mão dois filhotes de chacal (Canis adustus?), espécie rara na região onde foram encontrados! Rolaram pelo chão, sujaram-se todos, riram, divertiram-se, e acabaram por levar os filhotes para Luanda, que mais tarde foram enviados para um Zoológico em Nova Lisboa, hoje Huambo.

O chacal (canis adustus)


Como nesse dia ainda se caçou um belo javali, carne deliciosa, o nosso Chico Manolete, achou que cada vez que tivesse apetite de carne de caça, era só ir dar uma voltinha, de preferência à noite quando era mais difícil encontrar fiscais de caça!
Caçar à noite era proibido, como é de calcular. Mas o entusiasmo por vezes é mais forte do que qualquer lei, ou lógica. O Chico tinha nesse tempo um pequeno furgão, Austin, amarelo, gema de ovo, talvez o único dessa horrível cor em Luanda, o que o identificava a quilometros de distância. Talvez o tipo de carro menos indicado para ir à caça. Mas era o que ele tinha. De vez em quando passava em nossa casa depois do jantar. Parava o carro na rua, tocava a buzina e sem sair do carro:
- Vamos num instante ali à estrada de Catete apanhar um javali!
- Chico, além de não serem mais horas para caçar, javali nem os olhos dá à noite!
- Então vamos caçar outra coisa!
Acabávamos por “caçar”, na nossa varanda, mais um bate papo, talvez um café.
Mas era assim há mais de meio século. Em Angola.


01.Dez.09