sexta-feira, 14 de agosto de 2009

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Não atira, patrão!
Não atira!
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Um desses pisteiros – aqueles indivíduos especiais de quem já falamos em textos anteriores – que toda a semana esperava a vinda de Luanda de um daqueles grupos de caçadores muito loucos, o Sebastião, era homem já de mais de meia idade, se bem que em África sempre foi difícil saber a idade daquela gente, e até se dizia, em relação aos cabelos brancos, raros, mesmo nos sékulos, os mais idosos, que preto quando pinta, são três vezes trinta!
O Sebastião além de pisteiro era um companheirão formidável. Sempre alegre, já avô, tinha mais resistência do que muitos rapazes de vinte anos que lhe passaram por perto.
Consciente, sabia que seguir pacassas feridas dentro da mata era temeridade a evitar. Mas chega sempre o dia em que o inevitável acontece.
Depois de algum tempo de procura, seguindo trilhos já muitas vezes pisados, o encontro com a manada, ainda campo aberto, capim seco mas muito alto, que mal dava para ver as costas das pacassas correndo, o jeep avança e de cima sai um tiro que derruba um dos animais. Quando o carro se aproxima e pára, aquele reúne forças, levanta-se de novo e foge para dentro da mata sem dar tempo a que alguém volte a atirar, porque com o capim alto a visibilidade era quase nula.

No meio do capim alto, era difícil atirar!


O Ninocas, o mais maluco e alegre de todos os parceiros de caça, com uma carabina FN 9,3, uma arma possante, corre para a entrada da mata e aí estaca. Nesse local o terreno descia um pouco para uma linha de água, seca naquela época, onde por haver mais umidade, a mata se adensava. O Sebastião aventurou-se um pouco mais, e entrou uma dezena de metros. Ele era o pisteiro, quem tinha de indicar o caminho! Ninocas um pouco atrás, arma pronta a atirar. De repente a pacassa, que ferida e à espera de se vingar estava atenta, avança, pega o Sebastião, e sai lá de dentro correndo, com o Sebastião agarrado à cabeça dela e gritando:
- Aiué! Aiué! Não atira, patrão. Não atira, patrão!

Bicho bravo!


Se o patrão atirasse podia atingi-lo, claro! e todos ficaram aterrados sem nada poder fazer para acudir ao nosso Sebastião. Felizmente a pacassa depois de galopar um pouco fora da mata, deve ter-se assustado ao deparar com o jeep no seu caminho, bruscamente estaca e retrocede. Com esta parada foi o Sebastião sacudido da cabeça do bicho e safou-se! Ao passar de novo pelo caçador este desfechou-lhe um outro tiro a poucos metros de distância que a fez cair de vez. O Sebastião estava lívido, que o susto não foi p’ra menos, mas nem sequer se arranhara. Uma sorte louca. O resto do dia foi de grande risada com o não atira patrão, até hoje lembrado com uma saudade imensa daquele homem, ótimo pisteiro e coração grande e amigo. Maior foi ainda a risada quando ao fim do dia de volta à sanzala onde vivia o Sebastião, e para aí passar a noite. Este mal chega, ainda com ar de susto, corre para a mulher e diz-lhe:
- Mulhé, eu moria! Mulhé, eu moria! Quero tudo bêbo! Eu moria mêmo!

Belo exemplar! (talvez 450 a 500 kg) - (foto Sapo)

Imagine-se como foi aquele serão! Não faltou carne nem bebida! Sebastião foi dignamente elevado à dignidade de Grande Forcado, cheio de banga!
A maioria destas caçadas acontecia quase sempre nos fins de semana. A região onde o Sebastião morava e que tão bem conhecia, ficava a menos de cem quilometros para norte de Luanda, na chamada faixa costeira. Saía-se da cidade cerca do meio dia de sábado. Uma hora e meia depois atravessava-se o rio Dande, onde perto da foz havia uma fazenda de palmar. Paragem quase obrigatória, nessa fazenda bonita, bem organizada, as ruas ladeadas por laranjeiras que davam o que deviam ser as melhores laranjas do mundo. O administrador deixava que se apanhassem quantas quisessem, o que ajudava a matar a sede durante a caça. Ali ao lado, na foz do rio, um imenso viveiro natural de magníficas ostras. Contratava-se um trabalhador da fazenda para as ir apanhar no domingo de manhã, que no regresso da caça, se levariam para casa.
Normalmente dois sacos cheios delas! Em Paris custariam uma fortuna! Ali uma gratificação ao apanhador que ficava todo contente e nada lhe custara. Tanta coisa boa naquela terra à disposição de quem quisesse!
Pode ser difícil de acreditar mas em Moçâmedes havia uma variedade de mexilhão, que chegava a atingir trinta e mais centímetros de comprimento! A parte comestível parecia um ovo estrelado! Mas era mexilhão! Delicioso. As conchas eram tão bonitas, parte transparente como madrepérola, que se guardavam depois dentro das casas como objeto de decoração. Lindas.
Voltemos à caça.
Mas o Ninocas... hiii! O Ninocas e seu irmão Antoninho! Duas figuras de legenda nas caçadas, sobretudo às pacassas! Todo o fim de semana, fizesse chuva ou sol lá iam estes dois, sempre com alguns agregados, às pacassas! Caçavam bem, mas sobretudo transformavam qualquer caçada no maior, no mais alegre e descontraído acontecimento. Muito bem dispostos, maluquissimos, quando avistavam uma peça de caça corriam com o jeep em qualquer terreno, fosse ele plano, esburacado, pedregoso ou com precipícios! O carro voava, tombava, os passageiros apesar de ficarem com pernas e braços cheios de decorativos hematomas, aquela inesquecíveis marcas arroxeadas, miraculosamente não eram projetados para fora, mas não desistiam nunca da perseguição. Entrava-se com o carro na mata, donde tantas vezes depois se viam em séria dificuldade para o tirarem de lá, rasgavam-se nos espinhos, não só os retos mas aqueles horríveis em unha de gato” que esfacelava as roupas e os braços que apanhasse, mas nada disso tinha mais importância do que caçar!
Outro fim de semana. Saída de Luanda já tarde, num sábado. Desta vez a região da caçada era a caminho do interior lá para os lados de Zenza do Itombe, onde haveria, haveria, uma baixada cheia de caça! Dois jeeps, do Ninocas e do Antoninho, sete malucos dentro, chegam já ao anoitecer perto da tal baixada. Chovia um pouco, e tinha chovido bem durante o dia, mas jeep é jeep e pode sair da estrada. De repente, como sempre acontece nos trópicos, é noite, acende-se o farolim à procura de olhos que brilhem. Nada. Não andaram muito e logo um dos jeeps se atola na lama. Engata os dois diferenciais, marcha reduzida, um pouco atrás, um pouco à frente, o carro vai-se enterrando cada vez mais. Toda aquela área, de baixada, com a chuva que tinha caído nos últimos dias, estava um lamaçal só. Noite escura como breu. O outro jeep, um pouco afastado, é chamado com o foco do farolim. Não pode chegar muito perto para não se atascar também. Passa-se uma corda de um para o outro, experimenta-se rebocar, quebra a corda, e por fim acaba o segundo jeep por ficar de barriga na lama! Os dois imobilizados. Noite, mas cedo ainda.
Única solução: vamos passar aqui a noite e de manhã se vê o que fazer. De repente voltava a chover que Deus a mandava, a única vantagem para deixar os mosquitos quietos. Jeep é coisa desconfortável. Quatro dentro de um e três no outro de onde nem sair podiam para esticar as pernas porque a chuva não parava. Perspectiva para o dia seguinte safarem os carros era fraca, mas naquele momento nada mais podia ser feito.
Ninguém conseguia nem dormitar. O incomodo era mais do que permitia a fraca força humana, sendo ainda preciso considerar que os jeeps tinham capotas mas não tinham janelas!
E assim se passou a noite toda. Quando os primeiros alvores da manhã que se avizinhava permitiu fazer o ponto da situação todos meteram mãos à obra para saírem dali. Corta paus, levanta uma das rodas com o macaco, coloca paus por baixo, levanta outra, repete, e por aí vai! Uma canseira que só o entusiasmo das caçadas consegue aguentar!
Safou-se o primeiro carro e a seguir, com a ajuda deste, o segundo.
Acabou a caçada!
Todos mais mortos do que vivos a única coisa que conseguiram caçar foi um belo matabicho em Zenza do Itombe antes de voltarem para casa tão moídos como café para máquina Expresso! Mas foi ótimo. Ninguém se lamentou.
As noites de sábado para domingo eram sempre passadas no maior desconforto, procurando cada qual dormir um pouco dentro do jeep ou no chão, duro e irregular. Impossível. Mas a paixão pela caça tudo justificava e perdoava. Depois do pôr do sol no sábado, normalmente já com alguma peça de caça abatida procedia-se ao seu preparo. Quantas vezes junto à cubata onde vivia o Sebastião e parte da sua família. Esfolava-se o bicho, dividia-se a carne pelos moradores da sanzala, acendia-se o fogo e preparava-se ali um jantar opíparo! Carne de caça, uma delicia, temperada com sal e vinho tinto, e como acompanhamento raras vezes mais do que pão, um pouco de pirão ou umas batatas a murro. À sobremesa as laranjas do Dande. Para beber o mais usual era cerveja ou vinho de garrafão, daquele, do bom, com capacete de gesso, e tudo o que sobrava, e era sempre quantidade apreciável, era reserva do Sebastião, cuja provisão nunca faltava. E ficavam-se horas esquecidas sentados junto ao fogo depois de comer, conversando, ouvindo, contando e repetindo histórias de outras caçadas, estórias e lendas que os pisteiros e até os sobas vinham por vezes compartilhar e contar sob um céu estrelado e tranquilo. Sunguilando. Todos sempre ofereciam as suas cubatas - palhotas de pau a pique - para que lá dentro pernoitassem também os patrões, o que alguns aceitavam, enquanto outros preferiam deitar-se debaixo de alguma árvore, esticados (?) num banco do jeep, ou simplesmente junto ao fogo, dormitando umas escassas horas sob o efeito da ceia e da cerveja, acordando normalmente todos empenados!
Ainda noite, levantar de novo, procurar esticar as pernas, massagear as costas doloridas pela falta do colchão, pescoço meio torcido, passar um pouco de água na cara, reavivar o fogo para preparar um café, e de volta para cima do jeep continuar a caçada.
O nascer do dia nos locais de caça é mais uma imagem que o tempo não apaga.
Uns bons anos mais tarde, viémos a saber, com um desgosto imenso, que o nosso querido Sebastião, no meio daquela horrível guerra civil havia sido morto, envenedado, por um dos grupos rivais! Se a guerra é uma imoralidade, guerra civil consegue ser bem pior, o que é difícil, e mais grave ainda quando se matam inocentes que nada têm a ver com as desmedidas ambições dos chefes de qualquer dos lados.
Volta e meia uma lágrima teima em sair para refrescar as boas lembranças de um homem bom, simples, amigo.
Mas falar dele é trazê-lo um pouco de volta à vida.
(continua...)
in "Contos Peregrinos a Preto e Branco", de Francisco G. de Amorim, 1998





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